Quase lá: Breve relato sobre raça, racismo e escola

O racismo é um mal que afeta negativamente toda a sociedade. Ações dessa natureza, com intuito de ferir e magoar, são implementadas por um pequeno grupo.
 
Correio Braziliense

artigo publicado em 25/08/2022 06:00

violencia contra pobres negrosLÉO BENTO - Professor de Social Studies da Camino School, mestrando em educação e história pela PUC-SP e um dos autores do Manual da Escola Antirracista

O projeto de exclusão social das populações não brancas vem de longe. Em se tratando do Brasil, a largada se dá quando essas terras nem tinham o nome que conhecemos hoje. De qualquer forma, a necessidade do colonizador por mão de obra fez com que indígenas fossem escravizados e posteriormente africanos e seus descendentes fossem trazidos através do tráfico Atlântico nas mesmas condições lamentáveis - uma subalternização que se tornou um negócio a gerar fortuna para muitos empreendedores da época.

Naquele período ali que vai do século 16 até meados do 19, a Igreja Católica, seguida das suas ramificações protestantes no Ocidente, vão definir por meio de interpretações deturpadas do texto bíblico quem tem alma — e, portanto, poderia ser salvo — para assim gozar de "boa vida" nos reinos dos céus. A partir desse olhar, brancos estariam aptos a serem salvos, assim como os indígenas convertidos poderiam alcançar a graça, mas africanos e seus descendentes padeceriam da maldição que foi lançada por Noé a um de seus filhos. Segundo a crendice desses religiosos, a África seria o território para onde Cã, amaldiçoado pelo pai, migrou. Logo, os povos africanos, descendentes dele por associação, poderiam ser escravizados.

Essa breve explicação foi disseminada ao longo de séculos para fundamentar a escravidão moderna. A partir do segundo quarto do século 19, com diversas invenções e avanços tecnológicos que colocariam a humanidade em uma posição até então nunca imaginada, o cientificismo passou a ser a nova fonte de explicação das diferenças dos fenótipos entre seres humanos. Logo, uma série de teorias raciais foram elaboradas e consecutivamente, seguiu-se a hierarquização das raças e etnias.

Intelectuais brasileiros como Silvio Romero, Roquete Pinto, Oliveira Viana, João Batista de Lacerda, Artur Ramos, Monteiro Lobato, entre outros, tentavam achar uma solução para o problema das elites brasileiras que queriam um país avançado. Mas como fazer isso com a maioria da população negra? Antes mesmo do término da escravidão, que já se apresentava inevitável, foram criadas políticas públicas, de imigração de italianos e alemães em sua maioria para o sul e sudeste do país — tal movimento foi expressivo no término do século 19 e no posterior. A ideia era que essa população recém-chegada pudesse ocupar a vaga de trabalho nas áreas rurais, nas quais pessoas recém-saídas da escravidão deixariam vagas, entrando na ainda incipiente indústria que engatinhava no país.

Resolvido o problema da mão de obra, essa turma de intelectuais vai se debruçar ainda sobre as possibilidades de embranquecer ainda mais o povo brasileiro. Uma das hipóteses levantadas por alguns deles seria a de que a miscigenação faria com que a população se clareasse até um ponto no qual a população negra deixasse de existir.

Essas formulações foram enraizadas na sociedade brasileira, assim como as ideias de Gilberto Freyre que inovou ao romper com a explicação de raça para diferenciar povos e fenótipos diferentes, trazendo a cultura como principal ponto de partida. Com isso, a ideia de democracia racial foi criada, apresentando o Brasil para o exterior como um oásis racial, onde as diferenças conviveriam de forma alegre e harmônica.

No entanto, os dados organizados em pesquisas socioeconômicas ao longo do século 20, quando feita a análise considerando o recorte racial, apontam há muito tempo que as desigualdades sociais possuem estreita ligação com a divisão feita na sociedade e que passa pelo fator racial. Assim, é inegável que a partir de todas as formulações produzidas para explicar os horrores da escravidão e a parcial inclusão de negros e indígenas na República, muitas vezes como cidadão de segunda categoria, introjetaram na sociedade como um todo a ideia de inferioridade de indivíduos não brancos.

Essa construção histórica se reflete diretamente no ambiente escolar, pois a inferiorização do negro e do indígena está introjetada nas estruturas da nossa sociedade e em certa medida compôs não apenas o imaginário, mas o que foi (e é) ensinado em nosso sistema educacional. Romper com essa ideia de inferioridade precisa ser a meta da instituição de ensino comprometida com uma sociedade justa.

Para isso, faz-se necessária uma série de medidas que precisam envolver gestão, educadores, estudantes e famílias. Visto que a reprodução do racismo em nosso fazer cotidiano também se dá muitas vezes no núcleo familiar. O primeiro passo a ser dado é assumir que somos criados numa estrutura racista, logo haverá reprodução dessa mazela no ambiente escolar.

É urgente que gestores e educadoras/es participem de formação continuada sobre letramento racial de uma maneira significativa. Muitas vezes, pode gerar desconforto, mas é uma forma de identificar como o racismo é reproduzido mesmo que de forma inconsciente. Ouvir pessoas negras comprometidas com as relações raciais também é uma forma para compreender onde erramos muitas vezes como sociedade ao inferiorizar quem é diferente do padrão branco, então estabelecido como ideal.

Outro passo pode ser a alteração do currículo e a absorção de temas que apresentem as populações afro-indígenas e suas contribuições para a sociedade brasileira de forma positiva. Isso vai se refletir em sala de aula, pois, ao se comprometer, educadoras e educadores poderão trazer essas alterações para o cotidiano, impactando positivamente todos os estudantes.

Em suma, o racismo é um mal que afeta negativamente toda a sociedade. Ações dessa natureza, com intuito de ferir e magoar, são implementadas por um pequeno grupo. Outros reproduzem de forma inconsciente. Há uma grande maioria que atua de forma apática e nega haver questões dessa ordem na sociedade. Logo, precisamos agir coletivamente de forma a erradicar essa mazela de nosso meio e a escola deve ser o melhor ambiente para dar os primeiros passos nessa direção.

 

Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...