O assédio religioso é uma característica do segundo turno das eleições de 2022, marcado pelo aumento exponencial no número de relatos de ameaças de expulsão, perseguição, coerção explícita e propagação de fake news dentro da igreja evangélica.

 

por Carolina Azevedo
27 de outubro de 2022 - Le Monde Diplomatique
 

O assédio religioso é uma característica do segundo turno das eleições de 2022, marcado pelo aumento exponencial no número de relatos de ameaças de expulsão, perseguição, coerção explícita e propagação de fake news dentro da igreja evangélica. Apesar de representarem parte expressiva do eleitorado de Bolsonaro – de acordo com levantamento do Datafolha, seis em cada dez evangélicos pretendem votar no presidente no segundo turno –, aqueles que discordam da posição da maioria frequentemente encontram problemas ao expressar opiniões. 

Eduardo Lima, de 19 anos, faz parte da Igreja Adventista do Sétimo Dia, vertente protestante histórica que “teoricamente, não é de direita nem de esquerda, é do alto”. Mas, na prática, os últimos quatro anos vêm mostrando o contrário: “você pode ser pró-bolsonaro, mas professores de teologia ou pastores que não concordam com isso acabam sendo isolados, retirados de seus cargos.”

Foi esse o caso do pastor Edson Nunes, destituído de seu cargo como pastor sênior da comunidade adventista Nova Semente, em São Paulo, sob alegações de “problemas teológicos” após envolvimento em polêmicas relacionadas a pautas como feminismo e direitos LGBT. Criticado pelos setores mais conservadores da comunidade, ligados à extrema direita e à ideologia olavista, o pastor permanece sem cargo definido na comunidade. 

Eduardo conta também o caso de seu pai, que prega na igreja em que frequentam. “Ele recentemente fez um sermão falando sobre como podemos estar tão atrelados às nossas ideias de um messias que nos deixamos levar pelo mal, usando o exemplo da Alemanha nazista, onde a Igreja Adventista entregou judeus para o Estado porque Hitler surge como um vegetariano que defende a família e os valores tradicionais. No intervalo entre o primeiro culto e o segundo, ele foi advertido de que estava dando um sermão comunista.”  

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Fundamentalismo político-religioso e a pauta de costumes

Já tendo considerado se desligar da igreja por ocorrências do tipo, a família de Eduardo vê a associação de evangélicos com o bolsonarismo como algo nefasto. “Já em 2018 eu via que o que Bolsonaro fala não tem nada a ver com a bíblia, é uma coisa hedionda para mim, um pecado enorme.” 

Tal utilização da religião na defesa de pautas políticas e para o convencimento da população representa uma expressão do fundamentalismo político que ganha força no Brasil desde 2018, explica Magali Cunha, jornalista, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. 

“Nós sabemos que a América Latina tem um elo cultural muito forte com o cristianismo, por conta da colonização e do alinhamento da Igreja Católica com isso. Então, com o avanço dos evangélicos, essa pauta da religião vai, com muita força, para a esfera pública, e isso tem sido instrumentalizado pelos fundamentalismos político-religiosos. É pela religião que se referenda a pauta conservadora, de costumes.” 

Bianca Daebs, assessora da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (Cese) e membra da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, concorda que as pressões feitas por membros das igrejas evangélicas têm também como motivação a pauta moral. “A pauta moral sustenta toda essa discussão. A nossa matriz social é muito racista, existem as questões de classe e sobretudo as questões patriarcais. As mulheres são as mais perseguidas dentro desse contexto, a tentativa de botar a mulher no lugar que a sociedade projetou para ela. Todas essas questões sustentam esse poder patriarcal instituído sobretudo nas religiões, que é um domínio privilegiado do poder patriarcal”. 

Sônia Mota, diretora executiva da Cese e pastora na Igreja Presbiteriana Unida – que também pronunciou-se contrariamente a Bolsonaro em assuntos como a pandemia da Covid-19 e os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo – relata desconforto ao defender pautas relacionadas à defesa de Direitos Humanos.

“Nas igrejas locais, nós pastores percebemos incômodos crescentes e cada vez mais explícitos por parte de grupos da membresia das igrejas. Lamentavelmente, a propaganda bolsonarista tem sido mais eficaz do que as mensagens das igrejas sobre justiça social, direitos e misericórdia.  Grupos fundamentalistas crescem em quase todas as igrejas. Em grupos de Whatsapp, há apelos, pressões para que grupos progressistas recuem e não se posicionem, para evitar dissensões. Como pastora, sinto-me muitas vezes sem apoio, porque há uma ‘chantagem’ em cima da figura pastoral.  Sinto que esperam que você silencie, recue. Parece, no entanto, que sempre somos nós que temos que ceder.”

Sônia também lembra que silenciamentos e perseguições dentro das igrejas não são um fenômeno de hoje: “Para ficar na história mais recente, é só buscar a cumplicidade de muitas igrejas quando, na época da ditadura militar, grupos cristãos eram perseguidos”. Assim como ela, Magali Cunha afirma: “Eu, que sou pesquisadora há muitos anos do campo evangélico, só vi algo parecido com isso nas minhas pesquisas sobre a ditadura militar. Vimos perseguições, delações, gente que foi presa, morta, torturada, exilada, por conta de perseguições dentro das igrejas. Não vi nada parecido a não ser agora, é algo muito semelhante.”

Resistência

“Se, por um lado, há perseguição, por outro, também existe muita resistência”, finaliza Sônia. Muitos grupos, sobretudo de mulheres, vêm se organizando nos últimos quatro anos como forma de resistência ao bolsonarismo dentro das igrejas evangélicas. “Existem dois mitos”, explica Magali, “primeiro de que os evangélicos são extremistas conservadores. Historicamente eles têm uma tendência conservadora no campo da religião, assim como as outras religiões, católicos, judeus, espíritas e islâmicos. Existe o conservadorismo como predominância mas existem também os grupos que são progressistas, ideologias mais abertas. O segundo é a falácia de que evangélico não pode ser de esquerda, que é pecado, algo que também se propaga no interior das igrejas, e isso não é verdade.” 

Segundo Eduardo, “o que a igreja faz mancha o evangelho, então, para muita gente da minha idade, a primeira associação vai ser: igreja evangélica é bolsonarismo, porque ela se vendeu. A igreja evangélica não é historicamente antidemocrática, mas o bolsonarismo consegue ver que esse é um grupo de pessoas que não está sendo atendido por ninguém e consegue mobilizar isso.”

É contra isso que surgem grupos como ​​a Cese, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e a Católicas pelo Direito de Decidir. Esses e outros grupos partem de dentro da igreja para defender o Estado laico, a democracia, a liberdade de expressão e os direitos de minorias no meio religioso. 

Saiba mais sobre o assunto ouvindo a série especial, “Não bote fé nas fake news”, uma parceria com a Cese que aborda o fenômeno das fake news e seus impactos entre as comunidades de fé e a democracia brasileira.

 

fonte: https://diplomatique.org.br/so-vi-algo-parecido-com-isso-na-ditadura-militar-o-assedio-eleitoral-nas-igrejas-evangelicas/


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