Era muito religioso, era pastor e por causa desse cargo sempre aconselhávamos juntos casais. Nas nossas sessões orientávamos as pessoas a viverem em paz sem violência e que se respeitassem. Falávamos do amor ao próximo do cuidado, mas a nossa vivência era diferente
Fórum Mulher - Moçambique
Um terço das mulheres (33%) em idade adulta alguma vez sofreram violência física, independentemente da idade, nível de escolaridade, tipo de emprego, nível de rendimento e estado civil. O perpetrador da violência contra a mulher tende a ser alguém com quem ela teve uma relação amorosa. 62% das mulheres indicaram ser o actual esposo/parceiro e 21% indicaram ser o ex-esposo/parceiro. Cerca de 14.5% é perpetrada pelo padrasto ou madrasta. [1]
Dulce Catarina, actualmente Directora Executiva da Amudeia, membro do Fórum Mulher, faz parte do grupo de mulheres que viveu de perto e sentiu os efeitos da violência perpetrada pelo seu próprio parceiro. O ciclo só se quebrou quando ela decidiu sair do casamento e perder o tão “prestigiado” status de casada. Nesta curta entrevista, Dulce partilha connosco os contornos do seu casamento e como uma simples decisão mudou sua vida.
FM: Quem é Dulce e qual é a sua história?
DC: Eu chamo-me Dulce Catarina Aníbal Narciso, tenho 36 anos de idade, casada mas num processo de divórcio. Casei me quando tinha 28 anos de idade, tivemos três filhos e vivíamos juntos. Mas, com o andar do tempo, as coisas começaram a mudar. Meu marido trabalhava na Liga dos Direitos Humanos com a Dra. Alice Mabote. Conhecia bem as questões de direitos, igualdade e género.
Era muito religioso, era pastor e por causa desse cargo sempre aconselhávamos juntos casais. Nas nossas sessões orientávamos as pessoas a viverem em paz sem violência e que se respeitassem. Falávamos do amor ao próximo do cuidado, mas a nossa vivência era diferente.
FM: pelo perfil do seu parceiro, pode-se entender que todas as condições estavam criadas para um casamento feliz?
DC:. Sim, havia condições, mas a realidade em casa era bem diferente. Vivemos bem nos primeiros anos do nosso casamento, mas depois as coisas foram mudando. Começou a violentar- me. Tinha hora e tempo definido para falar e atender o celular. Privou-me de falar e sair com minhas irmãs. E batia-me. Sempre dizia que não tinha medo porque ainda que eu metesse a queixa nada ia acontecer lhe porque ele é jurista e trabalhador na Liga dos Direitos Humanos.
FM: Em algum momento procurou ajuda para quebrar o ciclo?
DC: Não é fácil procurar ajuda e contar que seu parceiro te bate. Só procurei ajuda quando senti que já não dava. Eu fui violentada por muito tempo e permaneci calada porque queria proteger meu casamento. Mas acabei procurando na minha família. No princípio até desacreditaram em mim, pela forma de ser do meu parceiro, dizia que não era possível um homem como ele ser agressivo, e de facto, ele era aparentemente calmo e na rua era muito diferente daquilo que vivíamos em casa. Mas no final sempre dizia para ter paciência porque lar é assim mesmo, que tinha que proteger e cuidar do meu casamento. Os discursos não mudavam.
Mais tarde procurei ajuda na igreja. Por ele ser um pastor nós tínhamos uma imagem a zelar. A igreja também me aconselhou a ter paciência orar muito que tudo ia passar. Disseram que eu devia proteger a imagem do meu marido que era um pastor muito respeitado. Instruíram a ficar calada e cuidar da minha família, mas ninguém imaginava os horrores que eu vivia. Sempre que ele chegava a casa era pavoroso para mim e para as crianças que viviam aquelas coisas feias.
Já procurei ajuda na LDH, liguei para a Dra. Alice Mabote, Directora executiva da LDH na época, e ficou de tomar uma acção mas não chegou a me dar retorno. Não tive apoio la e isso lhe deu forca, dizia que não lhe ia acontecer nada e que conhece bem as leis. Numa das vezes chegou a usar taco de golfe para me bater, e partir meu carro.
FM: Donde surgiu a iniciativa de denunciar, considerando que tanto a família assim como a igreja recomendavam a ter paciência?
DC: Eu fui formada como para-legal pelo Fórum Mulher. A situação em que eu vivia me deixou com problemas de auto estima, eu deixei de gostar de mim mesma. Não gostava de me olhar no espelho. E tinha ate vergonha de andar nas ruas. Minha mãe via meu sofrimento, ela também era activista e sabia que o que eu vivia era violência. Ela me apoiou bastante. Me encorajou a tomar uma decisão, tive que fazer uma escolhe entre continuar casada e ser violentada todos dias ou perder o status e viver uma vida digna.
Cansada da violência que vivia e estimulada pelo aprendizado que vinha tendo na Amudeia, membro do Fórum Mulher, eu tomei a decisão de denunciar. Eu fui dizer basta. Quando o processo iniciou ele saiu de casa, deixando-me la com as crianças. O caso foi seguindo no tribunal e ele foi condenado a apagar me uma indemnização de 2.000,00 meticais e uma pensão para os filhos, mas mesmo assim não deu esse valor.
FM: De que forma as acções formativas do Fórum Mulher foram uteis nessa fase da tua vida?
As acções de formação do Fórum Mulher também mexiam comigo. Eu estava exposta a informações sobre violência e direitos humanos das mulheres e nunca pensei que aquilo pudesse acontecer comigo, mas quando dei por mim eu era mais uma vítima de violência domestica.
Encontrei apoio no FM e na minha mãe, decidi ir denunciar e o caso seguiu normalmente, embora a indeminização que lhe foi dada seja pouca e não a tenha recebido. Hoje aconselho a todas as mulheres a olharem primeiro para si mesma. A não derem ouvidos a conselhos sobre paciência. Se dependesse da igreja eu ainda estaria a viver com a pessoa que por pouco ter-me-ia tirado a vida ou me ferido mais do que feriu. A Amudeia, membro do Fórum Mulher, serviu como alicerce. Hoje estou num processo de divórcio e o ciclo de violência se quebrou. Faco minhas encomendas e ganho meu próprio dinheiro. Sou uma mulher independente.
[1] PLANO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA BASEADA NO GÉNERO – 2018-2021, pag. 7.