Hoje, o direito ao aborto é uma garantia em toda a Austrália. Isso não foi conquistado por meios parlamentares, no entanto, mas por militantes e solidariedade sindical.
LAIRA VIEIRA
Anti-escolha, pró-morte
Antes da reforma, a criminalização do aborto não impedia as mulheres de obter o procedimento – mas as expunha a um risco mortal. De acordo com Stefania Siedlecky, médica pioneira, professora e feminista, “mulheres que tivessem recursos poderiam procurar um médico qualificado. Caso contrário, eles procuravam alguém menos qualificado ou tentavam fazer o aborto elas mesmas”. Como ela explica, o risco era consideravelmente maior para as mulheres da classe trabalhadora, e o aborto “permaneceu a maior causa de morte materna na Austrália até a década de 1970”.
“O establishment estava menos preocupado com os fetos, e mais preocupado em disciplinar as mulheres e mantê-las presas às estruturas familiares patriarcais.”
Esta situação não incomodou as autoridades. Em Melbourne e Sydney, políticos, líderes religiosos e burocratas estatais fecharam os olhos para um florescente mercado negro de abortos. Os policiais corruptos protegiam os médicos que cobravam preços altos, em troca de propinas. Surpreendentemente, as mesmas autoridades também submeteram mulheres indígenas a esterilizações forçadas. O establishment estava menos preocupado com os fetos e mais preocupado em disciplinar as mulheres e mantê-las presas às estruturas familiares patriarcais.
Nas décadas de 1950 e 1960, o longo boom econômico do pós-guerra lançou as bases para a mudança ao atrair as mulheres para a força de trabalho, aumentando suas expectativas e concedendo-lhes uma independência econômica sem precedentes. A taxa de participação da força de trabalho de mulheres casadas aumentou de 8,6% em 1947 para 18,7% em 1961, depois para 32,7% na época do censo de 1971.
Ao mesmo tempo, o salário das mulheres era legalmente menor do que o dos homens. Os cuidados infantis eram caros ou inexistentes, e o sexismo e o assédio eram desenfreados. Embora a pílula tenha se tornado disponível em 1961, as mulheres ainda enfrentavam barreiras consideráveis no acesso à contracepção. As mulheres enfrentavam uma contradição crescente. À medida que seu poder econômico e sua independência cresciam, isso colocava em destaque o establishment jurídico e político sexista. O resultado foi um crescente movimento feminista.
Não é difícil ver por que os partidos Liberal e Nacional se opuseram à reforma, dado seu conservadorismo da Guerra Fria, apoio a “valores familiares tradicionais, e estreita conexão com igrejas de direita e organizações da sociedade civil. Embora os defensores do direito ao aborto encontrassem aliados na esquerda do ALP ( Partido Trabalhista Australiano), a direita do partido era dominada por católicos conservadores que se opunham violentamente à reforma.
Além disso, a partir do final da década de 1960, grupos religiosos e defensores da moral financiavam generosamente organizações antiaborto. Por exemplo, em 1969, a Igreja Católica estabeleceu o Direito à Vida (RTL). No início da década de 1980, um membro do Right to Life Australia (RLA) – uma ramificação mais militante – explicou seu projeto honestamente:
“Já que você não pode entrar em clínicas de aborto com metralhadoras atirando nas pessoas para parar de matar bebês, você deve usar meios democráticos.”
Por outro lado, libertários civis, advogados, médicos, e estudantes inicialmente lideraram a luta pelo direito ao aborto. Enquanto os primeiros defensores do direito ao aborto geralmente se concentravam em desafios legais e reformas parlamentares, no final da década de 1960, a Austrália estava se polarizando politicamente. Centenas de milhares aderiram às marchas moratórias, pedindo o fim da Guerra do Vietnã. Enquanto isso, as organizações de esquerda cresceram rapidamente ao lado dos sindicatos e do movimento pelos direitos das terras indígenas e pelos direitos civis.
Em 1970, inspiradas pela onda de luta e esforços semelhantes no exterior, feministas radicais se uniram para fundar o WLM. O WLM insistiu em desafiar abertamente o sexismo e se recusou a considerar o aborto um tabu. Em vez disso, insistiu que as mulheres deveriam ter remuneração igual e direito sobre seus próprios corpos, o que significava acesso à contracepção e ao aborto. O WLM não teve medo de perseguir essas demandas com protestos militantes. Graças a essa determinação, na década de 1970, o WLM liderou a luta pelo direito ao aborto.
Da reforma legal à libertação das mulheres
Antes de 1970, as contestações à proibição do aborto giravam em torno de processos judiciais ou reformas parlamentares. Por exemplo, em maio de 1969, dois médicos compareceram perante a Suprema Corte de Victoria após terem sido presos e acusados de realizar um aborto. O juiz Clifford Menhennitt ouviu o caso e absolveu os médicos com base no fato de que o aborto era necessário para preservar a mulher de um sério risco à sua vida e/ou à saúde física e mental. Essa decisão – conhecida como a decisão Menhennitt – tornou-se um precedente histórico estabelecendo que alguns abortos eram legais.
Então, em maio de 1970, o governo de Nova Gales do Sul enviou o infame “Esquadrão do Aborto” para invadir a clínica de aborto Heatherbrae, em Bondi. A polícia prendeu cinco funcionários sob a lei antiaborto. Em outubro de 1971, o tribunal distrital absolveu todos os funcionários do Heatherbrae, e proferiu uma decisão semelhante à de Menhennitt em uma decisão conhecida como decisão de Levine.
No entanto, o caso de destaque inflamou ativistas pró-aborto. No ano entre maio de 1970 e 1971, o WLM convocou seis grandes manifestações. Para começar, esses esforços se concentraram na reforma legislativa. Em 20 de abril de 1971, ativistas do WLM apresentaram uma petição com nove mil assinaturas ao parlamento de Nova Gales do Sul. No entanto, o parlamento negou-lhes permissão para apresentar a petição, com setenta e nove ALP e políticos conservadores votando contra, e apenas quinze deputados trabalhistas votando a favor. Posteriormente, os principais ativistas do WLM concluíram que as perspectivas de reforma parlamentar eram muito pequenas.
“A Brigada SLUT (uma gíria para vadia, em inglês, mas que é o acrônimo de Sisters in Liberation Union of Terrorists) – na ala mais militante do WLM – pintou sinais nas casas de parlamentares trabalhistas antiaborto, informando seus vizinhos sobre sua posição.”
Os grupos que compunham o WLM de Sydney responderam de várias maneiras. A Brigada SLUT (Sisters in Liberation Union of Terrorists) – na ala mais militante do WLM – pintou sinais nas casas de parlamentares trabalhistas antiaborto, informando seus vizinhos sobre sua posição. De acordo com a integrante do WLM, Sue Wills, “a intenção era humilhar esses homens onde moravam, não onde trabalhavam e poderiam se esconder atrás da máscara do cargo público”.
Partes mais moderadas do movimento enfatizavam a educação, produzindo material impresso voltado para crianças em idade escolar ou organizando reuniões públicas e debates. Em um desses eventos em março de 1972, a líder feminista Germaine Greer debateu com líderes religiosos e intelectuais, na prefeitura de Sydney diante de uma audiência estimada de cinco mil pessoas que inundaram a rua.
Em dezembro de 1972, Gough Whitlam – um defensor público do direito ao aborto – foi eleito primeiro-ministro, aumentando as esperanças de mudança legislativa mais uma vez. No entanto, quando o parlamento federal debateu a reforma das leis de aborto em 1973, parlamentares da direita católica trabalhista, invocaram o “voto de consciência” para derrotar a medida. Eles foram apoiados por conservadores e uma grande mobilização de grupos RTL.
Isso criou um debate no WLM. Muitos argumentaram que as decisões do judiciário – como as feitas por Menhennitt e Levine – eram mais propensas a produzir resultados mais seguros para as mulheres, do que mudanças legislativas. Por não alterarem a lei, as decisões judiciais não levantaram a perspectiva de que restrições onerosas fossem impostas ao acesso ao aborto, incluindo prazos obrigatórios ou a exigência de que mais de um médico aprovasse o procedimento.
Feministas mais radicais argumentaram que dar aos médicos o direito de permitir o aborto “medicalizou” a questão. Embora as mulheres pudessem se beneficiar disso, isso não lhes dava controle sobre seus corpos. Em vez disso, delegou esse controle a médicos que atuavam como porteiros. Em vez disso, esses ativistas insistiram que a legalidade de um aborto deveria depender apenas da decisão da mulher.
Ativismo amplia acesso ao aborto
Em resposta a esses impasses parlamentares, o movimento pró-escolha voltou-se para o ativismo político, bem como o ativismo comunitário e de saúde, visando melhorar o financiamento e o acesso aos serviços de aborto. A Women’s Abortion Action Coalition continuou a organizar comícios para revogar as proibições ao aborto, enquanto o WLM encorajou as mulheres a fazer declarações públicas sobre seus próprios abortos, para remover o estigma. As feministas também ajudaram milhares de mulheres que buscavam abortos mais seguros, ajudando-as a viajar para Melbourne e Sydney, e encaminhá-las para clínicas particulares. Em Queensland, a Children by Choice conseguiu que as mulheres viajassem interestadualmente.
Ficou claro que a campanha estava nadando com a maré. Apesar dos retrocessos no parlamento, a partir de 1973, o governo Whitlam desenvolveu uma série de políticas que beneficiaram as mulheres. Por exemplo, Whitlam aumentou o financiamento para centros e refúgios para mulheres, permitiu que mães solteiras acessassem os benefícios dos pais, introduziu o divórcio sem culpa, e removeu o imposto sobre vendas de contraceptivos de 27,5%. Outras reformas social-democratas introduzidas por Whitlam, como seguro de saúde público e ensino superior gratuito, beneficiaram as mulheres. De fato, em julho de 1975, o governo de Whitlam permitiu que mulheres que fizeram abortos “legais” reivindicassem um desconto do Medibank, para a maior parte dos custos.
Essa combinação de ativismo feminista e reforma governamental ajudou a desestigmatizar o aborto, reforçando o consenso de que deveria ser seguro, disponível e acessível. Já em 1970, uma pesquisa Gallup informou que 57% da população concordava que o aborto deveria ser legal “em todas as circunstâncias” ou “em casos de dificuldades excepcionais, sejam físicas, mentais ou sociais”. Isso representou uma oscilação de 9% desde 1968. Apenas 11% se opuseram à legalização do aborto. Essas mudanças na opinião pública fizeram com que a questão se tornasse cada vez mais uma fardo político para a direita.
Rebatendo a retaliação
Apesar do progresso do início a meados da década de 1970, as organizações de direita e antiaborto não desistiram. Depois que o governo de Whitlam foi removido em 1975, o novo governo da Coalizão Liberal-Nacional de Malcolm Fraser cortou o financiamento para os serviços das mulheres e atacou o Medibank.
Em 21 de março de 1979, o deputado conservador Stephen Lusher, deu um passo adiante e moveu uma moção para acabar com os descontos do Medibank para o aborto. Os membros do WLM e ativistas pró-escolha responderam convocando comícios em todo o país. Essas mobilizações acertaram em cheio. Muitos parlamentares temiam que negar esse subsídio financeiro a seus eleitores mais pobres pudesse prejudicar suas chances de reeleição. Como resultado, a moção de Lusher falhou por 62 votos à 52.
A batalha mais difícil, no entanto, seria em Queensland, então dominada pelo governo de extrema direita de Joh Bjelke-Petersen. Em 1979, a primeira clínica de aborto de Queensland abriu suas portas. Apenas um ano depois, a RTL fez campanha para que ela fosse fechada, e o governo de Bjelke-Petersen respondeu com um novo projeto de lei que proibia o aborto, a menos que a vida da uma mulher fosse imediatamente ameaçada. Pior ainda, proibiu as mulheres que viajam interestadualmente para obter um aborto. Alguns políticos trabalhistas de direita apoiaram o projeto, assim como a RTL, que se mobilizou com uma marcha “Celebrate Life” e transmitindo o batimento cardíaco de um feto pela rádio comercial.
Grupos pró-escolha realizaram comícios desafiando as proibições de marchas impostas por Bjelke-Petersen. Eles ganharam o apoio do Conselho de Comércio e Trabalho de Queensland (TLC), que emitiu uma declaração declarando que “a questão da interrupção da gravidez deve ser a decisão da mulher e de seu médico”.
Diante dessa demonstração de força, o governo Bjelke-Petersen recuou. Foi uma vitória retumbante e reforçou a mudança na opinião pública. Em maio de 1980, uma pesquisa da Women’s Weekly relatou que 94% das mulheres australianas acreditavam que o aborto deveria estar disponível em certas circunstâncias, enquanto 62% achavam que deveria estar disponível sob qualquer circunstância .
Sindicatos, mulheres trabalhadoras e aborto
Em meados da década de 1970, cerca de 50% da força de trabalho da Austrália eram sindicalizados. De acordo com o Australian Bureau of Statistics, entre 1970 e 1975, a filiação feminina dos sindicatos cresceu 50%, enquanto a filiação masculina aumentou apenas 12%. Em 1980, 31,9% dos sindicalistas eram mulheres.
Isso não significava que os sindicatos apoiassem automaticamente o direito ao aborto. Muitas vezes, a posição de um sindicato sobre essa questão refletia uma divisão mais ampla entre a esquerda e à direita do movimento trabalhista. A partir de 1971, por exemplo, a Federação de Trabalhadores Construtores de Nova Gales do Sul, liderada pelos comunistas, apoiou manifestações pró-escolha. Em 1974, lutou pela licença-aborto, bem como pelas licenças de paternidade e maternidade.
Outros sindicatos demoraram mais para atualizar sua posição ou vacilaram depois de fazê-lo. Em 1980, por exemplo, o Commonwealth Public Server’s Union (CPSU) adotou uma política pró-escolha antes de descartá-la alguns anos depois. Em 1982, os conservadores do sindicato das enfermeiras fizeram uma campanha pedindo às enfermeiras que se recusassem a ajudar abortos usando pressão psicológica
“O vasto poder social e político dos sindicatos – exemplificado pelas greves em massa que eles conduziram para salvar o Medicare – foi um fator decisivo para conquistar e salvaguardar o direito ao aborto.”
No entanto, o ativismo feminista e o número crescente de mulheres nos sindicatos pressionaram o movimento trabalhista a adotar uma postura pró-aborto. No final da década de 1970, o Conselho Australiano de Sindicatos (ACTU) apoiou os serviços de planejamento familiar. No congresso de 1981, a ACTU aprovou uma moção expressando seu apoio ao aborto livre, seguro e legal por 528 votos a 392. O vasto poder social e político dos sindicatos – exemplificado pelas greves em massa que levaram a salvar o Medicare – foi um fator decisivo para conquistar e salvaguardar o direito ao aborto.
A luta pelos direitos ao aborto não acabou
Embora as mulheres australianas tenham obtido acesso ao aborto nos anos 1970 e início dos anos 1980, na maioria dos casos, foram décadas antes que os estados removessem o aborto de seus código criminal. E embora seja improvável uma ofensiva da direita contra o direito de escolha na Austrália, os grupos RTL permanecem ativos. Durante todo o tempo, o acesso ao aborto diminuiu à medida que os custos diretos aumentaram, muitas vezes devido à privatização.
No entanto, há mais no legado do WLM do que o direito de escolha. O WLM foi além de garantir direitos legais e políticos para as mulheres. Eles também lutaram por plena liberdade social e econômica, exigindo cuidados infantis gratuitos 24 horas por dia; cuidados de saúde totalmente financiados com fundos públicos; bem-estar e educação; e igualdade de remuneração, na lei e na prática. Eles lutaram por um futuro em que o trabalho de cuidar da criação da próxima geração fosse arcado pela sociedade como um todo, e não desproporcionalmente pelas mulheres. O WLM, em sua forma mais radical, lutou para libertar as mulheres de todas as normas opressivas de gênero e sexo. Se queremos defender as vitórias do WLM hoje, também devemos nos inspirar em sua visão utópica.