Envolvidos na violência golpista em Brasília poderão ser punidos criminalmente, mas o direito penal, sozinho, não resolverá o problema do radicalismo no Brasil.
A violência golpista na Praça dos Três Poderes no domingo (08/01) em Brasília despertou clamores por punição exemplar aos bolsonaristas envolvidos. O ataque visava abrir caminho para uma intervenção militar, conduta grave que poderá ser enquadrada pelo Judiciário como crime contra o Estado democrático de direito, com pena de até 12 anos de prisão.
Mas a força da lei não deverá suficiente para conter o extremismo de direita no país, hoje enraizado em setores da sociedade e além da figura do ex-presidente Jair Bolsonaro. Como a própria esquerda costuma reconhecer, a prisão não é solução eficaz para problemas complexos.
Nos últimos anos, diversos pesquisadores dedicaram-se a compreender o que motiva e como funciona a extrema direita brasileira, analisando, por exemplo, sua intersecção com redes sociais, a relação com a precarização do trabalho, seu efeito nas políticas públicas e as oportunidades existentes para diálogo.
E há um consenso entre esses especialistas: o que se observa no Brasil não é uma exclusividade nacional, mas um fenômeno conectado a dinâmicas globais e movimentos de extrema direita de outros países. Basta lembrar da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, ou da tentativa de invasão do Reichstag (sede histórica do Parlamento alemão) em agosto de 2020.
Diante dessa ameaça comum, alguns países vêm desenvolvendo políticas públicas para lidar com o extremismo de direita que vão além das necessárias medidas de segurança e da persecução criminal dos envolvidos. Incluem também ações multissetoriais, nas esferas de educação, mídia, saúde mental e apoio a famílias, com duplo objetivo: construir resiliência na sociedade para prevenir que novas pessoas tornem-se extremistas, e tentar desradicalizar os já inseridos nesses movimentos.
Algumas dessas iniciativas aproveitam experiências passadas com outros tipos de extremismo, como o jihadista ou o neonazista, e foram adaptadas para as particularidades da extrema direita contemporânea. Conheça algumas delas.
União Europeia
A ocorrência de movimentos de extrema direita em diversas nações da União Europeia (UE) levou a Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, a criar em 2011 a Rede de Conscientização sobre Radicalização (RAN, na sigla em inglês). Nela, especialistas de diferentes temas e países trocam experiências sobre como prevenir e combater diversas formas de extremismo, inclusive o de extrema direita.
O objetivo é mapear as organizações radicais e seu desenvolvimento e identificar soluções que possam ser aplicadas na prevenção do fenômeno e na reintegração de extremistas violentos – um banco de dados reúne mais de 200 práticas que se mostraram promissoras.
Muitos desses especialistas trabalham em entidades civis em seus países e são contatados por familiares de pessoas radicalizadas ou em processo de radicalização.
A RAN tem uma equipe em Amsterdam dedicada integralmente à coordenação da rede e é financiada pela UE. O grupo fornece treinamento e consultoria a órgãos de países do bloco, e suas conclusões são levadas em conta pela UE na definição de estratégias para lidar com o extremismo.
Entre os temas trabalhados, estão formas eficientes de comunicação para contestar ideias extremistas, o papel dos professores para identificar sinais e prevenir a radicalização de jovens, o trabalho de autoridades de segurança e investigação, o apoio a familiares de extremistas e abordagens de saúde mental.
Alemanha
A Alemanha tem um longo registro de políticas de educação e conscientização sobre o extremismo, derivado da experiência nazista e da preocupação em evitar sua repetição.
Mesmo assim, autoridades alemãs vêm identificando alta do extremismo de direita entre militares e policiais e debatendo como lidar com juízes e servidores públicos de extrema direita. Em dezembro, uma grande operação policial prendeu 25 pessoas que pretendiam lançar ações violentas para tentar derrubar o governo alemão.
Em 2020, após a tentativa de invasão ao Reichstag, o governo alemão aprovou um plano com 89 medidas para enfrentar o extremismo de direita, que abrange também o combate ao racismo e ao antissemitismo. O programa recebeu mais de um bilhão de euros (R$ 5,5 bilhões) para serem gastos de 2021 a 2024, e busca ampliar a cooperação entre autoridades de segurança, o Judiciário e entidades civis, além de fortalecer a pesquisa e a prevenção.
Um dos eixos da estratégia instrui o próprio governo alemão a dedicar mais energia para identificar ideias extremistas na polícia, nas Forças Armadas e em agências públicas, e divulgar relatórios anuais sobre o tema. Outra linha é financiar programas conduzidos por entidades civis para ampliar a conscientização dos cidadãos sobre o tema e identificar e combater o discurso de extrema direita em plataformas digitais.
Uma entidade civil alemã de referência dedicada a pesquisar radicalização e desradicalização é o Instituto Alemão de Estudos sobre Radicalização e Desradicalização (Girds, na sigla em inglês).
Noruega
Outra nação europeia que tem tradição de políticas para conter a extrema direita é a Noruega. O país criou, nos anos 1990, o primeiro programa do mundo para desradicalização de extremistas, que inspirou iniciativas semelhantes na Alemanha e na Suécia.
Em 2011, um supremacista branco norueguês de 32 anos assassinou 77 pessoas, o que levou o país a rever e fortalecer sua estratégia para lidar com o tema. Três anos depois do ataque, a Noruega publicou seu plano nacional contra a radicalização, definindo ações para diversos ministérios e setores da sociedade.
Em seguida, o governo do país anunciou que financiaria a abertura de um Centro para Pesquisa do Extremismo na Universidade de Oslo, com o objetivo de compreender a extrema direita e prevenir que ela conquiste mais apoiadores, que se tornou uma das referências mundiais no tema.
O plano norueguês envolve, entre outros, a capacitação de professores para identificar e lidar com jovens em risco de se tornarem extremistas e o oferecimento de apoio aos pais, por meio de parcerias com entidades civis. Os currículos escolares também fortaleceram o ensino dos valores democráticos e da participação.
Estados Unidos
A eleição de Donald Trump, em 2016, marcou uma guinada à direita na política americana que acabou transformando o Partido Republicano e favorecendo movimentos extremistas, como os Proud Boys, e desaguou na invasão do Capitólio. Em um sinal preocupante das consequências do avanço do radicalismo, uma pesquisa divulgada em agosto de 2022 apontou que 43% dos americanos consideravam uma guerra civil ser "provável" em dez anos.
Logo no início do seu governo, o atual presidente Joe Biden buscou apoio de entidades civis, como a Anti-Defamation League, especialista em radicalismo e discurso de ódio, e instruiu agências de segurança acostumadas a lidar com terrorismo externo a prevenir a ocorrência de ameaças domésticas.
Houve também debate no Congresso americano sobre a aprovação de uma lei criando o crime de terrorismo doméstico, uma proposta apoiada por Biden na sua campanha, mas rejeitada por defensores de liberdades civis e pelos republicanos, que agora controlam a Câmara.
As políticas públicas de combate ao extremismo de direita nos Estados Unidos, porém, tendem a ser mais focadas em ações de segurança e responsabilização judicial, sem enfatizar as esferas educacionais e de construção de resiliência na sociedade, analisaram Daniel Koehler, do Girds, e Cynthia Miller-Idriss, do Laboratório de Inovação e Pesquisa em Polarização e Extremismo da American University, em um artigo publicado na revista Foreign Affairs.
Após a invasão do Capitólio, mais de 950 pessoas foram acusadas formalmente de participação no ataque e detidas. Até o momento, mais de 350 foram sentenciadas e quase 200 receberam penas de prisão.
Alguns especialistas têm sugerido à Casa Branca que adote uma perspectiva multissetorial como a de países europeus, baseada no fortalecimento de resiliência na sociedade contra o extremismo, mas ainda não houve medidas claras nesse sentido. A falta de um consenso bipartidário no Congresso sobre o significado da invasão do Capitólio não contribui – em fevereiro passado, os republicanos concluíram que aquilo havia sido uma forma legítima de discurso político.
Mas há iniciativas da sociedade civil americana de desradicalização. Uma delas é a organização Life After Hate, fundada por ex-radicais, a maioria da extrema direita, que apoia familiares e pessoas radicalizadas na avaliação crítica desses movimentos e na desvinculação deles. A participação de ex-extremistas nesses processos é considerada por especialistas um fator que amplia a possibilidade de comunicação e a chance de sucesso da desradicalização.
E no Brasil?
A pesquisadora Michele Prado, ex-militante da direita que votou em Bolsonaro em 2018 e agora se dedica ao estudo do tema, afirma que o debate sobre políticas públicas de prevenção à radicalização e de desradicalização é recente no país, e que ainda não há centros de pesquisa com grande financiamento ou iniciativas governamentais voltadas especificamente para esse tema.
As diretrizes do programa de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tampouco mencionam propostas específicas para prevenir a radicalização ou atuar na desradicalização de pessoas, mas a nova gestão já contatou alguns pesquisadores em extrema direita.
"O governo poderia investir em programas para elaborar contranarrativas eficazes, em centros de pesquisas e em organizações não governamentais", diz Prado.