Criança de apenas dois anos foi levada para abrigamento pelo Conselho Tutelar por uma suspeita de abuso que não se confirmou

Fernanda Nascimento - SUL21

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mae e menina Mateus Leal Sul21 
Arte: Matheus Leal/Sul21
 

Era uma quarta-feira à tarde quando Maria* recebeu uma mensagem no celular: a filha Nina, de dois anos, havia sido levada para uma casa de acolhimento, em caráter emergencial, por suspeita de abuso sexual. A medida foi adotada por conselheiros tutelares, após denúncia da escola de educação infantil. Mesmo com o laudo do Instituto Geral de Perícias (IGP) sendo explícito na constatação de que não havia sinal de ato libidinoso e com processo criminal arquivado, somente nesta quinta-feira (16) — cerca de cinco meses depois –, a criança retornará para a casa da mãe.

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Questionadora dos procedimentos adotados para o acolhimento da criança, Maria lutou para conseguir reaver os cuidados da filha e provar ao Estado que tinha “senso crítico” para cuidar da criança. Ao longo do processo, em tom acusatório, diferentes representantes dos serviços públicos debocharam do fato da mãe ter apresentado como hipótese para as assaduras da criança uma alergia ao consumo de bergamota – frutas cítricas são capazes de causar acidez na urina e, consequentemente, assaduras. A juíza do caso, Paula de Mattos Paradeda, foi veemente na última audiência: “quem sabe da lei somos nós”.

Nos esforços para reaver os cuidados da filha, Maria rompeu o relacionamento com o então companheiro, trocou de residência, construiu uma rede de apoio familiar e, na última audiência, em dezembro, ao saber que a criança ainda não retornaria para casa, expressou com ar cansado: “o que mais eu preciso fazer?”.

Para a pesquisadora em Direitos Humanos e enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes Lynara Ojeda, a condução do caso pelos órgãos do Estado está marcada por um “olhar machista”. Em sua avaliação, mais do que investigar o caso, agentes públicos sentenciaram e culparam a mãe por uma situação que não ocorreu: “Não há nada que justifique a violência de retirar a criança da mãe”.

Maria tem 33 anos e é formada em História. Moradora de um bairro periférico da Capital, trabalha como recenseadora do IBGE e dividia a residência com o então companheiro quando foi surpreendida pela denúncia.

Nina tem apenas o nome da mãe em seu registro e Maria tem medida protetiva contra o genitor da criança, por violência doméstica. Além de Nina, ela é mãe de Flor, sete anos, que reside com o pai, em outro estado.

No documento enviado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) para o Juizado da Infância e Adolescência justificando o recolhimento da criança, uma frase endossava a denúncia: “relatos de que a genitora faz uso de SPA (substâncias psicoativas) e já perdeu a guarda de um filho”.

Mesmo que a suspeita do uso de qualquer substância psicoativa não tenha tido embasamento e que a responsabilidade da outra filha esteja com o pai em comum acordo entre os genitores — especialmente, pelo fato dele possuir melhores condições financeiras –, essas informações perpassam todo o processo. São uma sentença para uma mãe solo.

O processo que culminou com a retirada de uma criança de dois anos dos cuidados da mãe corre em segredo de justiça. As informações que integram essa matéria foram obtidas pelo Sul21 com exclusividade, após acesso aos documentos e imagens das audiências.

Apesar do comunicado inicial indicar que a denúncia havia sido realizada pela escola e por um posto de saúde, os documentos se baseiam apenas no depoimento da pedagoga da escola infantil frequentada pela criança.

No primeiro Plano de Atendimento Individual (PAI) elaborado por uma assistente social da FASC, a representante da escola, Regina*, afirma que as professoras observaram três situações anormais no corpo da criança ao realizar a troca de fraldas. Em abril, “dois pelos, vermelhão na genital e roxo na coxa esquerda”; e em dois dias de agosto: “um pelo escuro e curto e vermelhidão na genital”. Em anexo, um diário das professoras, com a informação de que “o pelo não parece cabelo e não era dela [Nina]”.

Também foi incluído o registro de atendimento médico. O documento contém as mesmas informações da pedagoga, em forma de relato à enfermeira que atendeu a criança, em agosto. Conforme o relatório, Regina “refere ter notado a genitália da paciente muito inchada com o primeiro episódio há cerca de dois meses, com piora hoje. Diz que no primeiro episódio além do inchaço haviam muitos pelos pubianos pretos na vagina e na fralda da paciente”.

Na conversa com a enfermeira, Regina acrescentou detalhes sobre o comportamento de Maria, classificando que a “mãe se mostra muito ausente e que é uma pessoa de poucas palavras”, sendo “uma pessoa muito instruída, professora de Filosofia” e que já “se mudou mais de seis vezes”. Sempre ressaltando que as informações são oriundas da escola, o documento informa que “a paciente se mostrou muito assustada, não quis realizar o soninho da tarde e mostra ressábio quando precisa trocar a fralda”. No prontuário, a enfermeira responsável pelo atendimento afirma que realizou uma tentativa de contato com a mãe, inicialmente sem sucesso, e o encaminhamento para atendimento pela equipe de saúde da família, além de descrever a necessidade de sigilo sobre o fato.

No inquérito policial que investigou o caso, Regina prestou depoimento semelhante e, sem apresentar qualquer prova, afirmou à delegada responsável que “era nítido que a genitora era dependente química”.

Nina foi retirada da escola de educação infantil na segunda quinzena de setembro, por conselheiros tutelares, e levada a um Centro Referencial de Atendimento ao Educando (CRAE).

Nos documentos enviados à Justiça para comunicar o fato, os representantes do Conselho Tutelar informam que não havia registro anterior da criança no órgão ou processos judiciais. No primeiro PIA, o relato da conselheira tutelar descreve Maria como uma mãe que “se mostrou apática” após saber do recolhimento da criança.

Além de ser o órgão responsável pela retirada da criança, os conselheiros tutelares foram os primeiros a se pronunciar na audiência do caso. Questionados sobre o que motivou a retirada da criança da escola, afirmaram que o embasamento estava nas denúncias enviadas pela escola e no relatório da unidade de saúde – o mesmo que apenas descrevia as denúncias da instituição de ensino.

Os conselheiros disseram ainda que tiveram dificuldade em localizar a mãe da criança – em horário comercial – e que, por esse motivo, decidiram fazer o Boletim de Ocorrência por suspeita de estupro de vulnerável e encaminhar a criança para um espaço de acolhimento. A demora na chegada de Maria ao local, o fato de estar acompanhada do então companheiro e a dificuldade em indicar um familiar capaz de se responsabilizar pela criança também teriam contribuído para a decisão. Mas, na audiência, um outro fator parece determinante para o encaminhamento da situação: a postura de Maria diante do fato. De acordo com um dos conselheiros, a reação da mãe “acendeu um alerta”. “No momento em que ela chega, ela nem ao menos pergunta como está a filha dela, ela chega questionando procedimentos e só procedimentos”.

As perguntas sobre a atuação do órgão também desagradaram a outra conselheira presente: “Ela é muito questionadora, em momento algum ela demonstra sentimentos. Nunca perguntou como estava e onde estava a filha, só nos questiona”.

A mesma conselheira também relatou que havia ouvido relato do uso de drogas por Maria – e sugeriu à juíza que a encaminhasse para uma avaliação psicológica.

Além do Conselho Tutelar, a responsável pelo acolhimento da criança também reclamou da postura de Maria: “Ela senta e começa a falar do ECA”.

A primeira audiência sobre o caso aconteceu duas semanas após o acolhimento da criança e foi comandada pela juíza da vara da infância Paula de Mattos Paradeda. De forma virtual, foram ouvidos representantes da escola, do Conselho Tutelar, do espaço de acolhimento de Nina, além do Ministério Público, Defensoria Pública, um advogado de defesa e Maria.

Regina, a pedagoga da escola, reafirmou o que havia dito à assistente social e à polícia e acrescentou ainda que a criança tinha “roxos no corpo” e teria verbalizado a palavra “medo” durante a troca de fraldas.

Questionada se a mãe havia sido informada sobre os fatos, Regina disse que Maria atribuía a vermelhidão a uma alergia à bergamota. Apesar do grave relato, a diretora informou que, mesmo tendo levado a criança para o atendimento de saúde, nenhum pediatra havia feito qualquer avaliação. Perguntada se havia fotografado os fatos, informou que não fez qualquer registro.

O advogado de defesa contestou a declaração, informando que a criança havia sido avaliada por uma médica dois dias antes do acolhimento e que as manchas vermelhas eram compatíveis com assadura ou alergia. A alegação não foi considerada pela juíza. “Todo mundo conhece assadura, doutor. E se estão me dizendo que não era assadura a ponto da escola levar no posto de saúde, vamos esperar o laudo”.

Na audiência, os conselheiros tutelares e a assistente social responsável pelo acolhimento foram favoráveis à manutenção da criança longe da família até a conclusão do laudo do IML. O Ministério Público concordou com a medida.

Maria foi a última a ser ouvida. A historiadora afirmou ter sido pega de “surpresa” com o episódio e disse que ainda estava “tentando entender” o que estava ocorrendo. Sobre as supostas denúncias, Maria disse que nunca havia sido chamada pela escola, mesmo sendo responsável por levar e buscar a criança no espaço educacional e reafirmou o entendimento de que acreditava se tratar de uma reação alérgica.

Na audiência, também teve que responder sobre o motivo para não possuir a guarda da outra filha, a frequência com que via a criança, onde estava o genitor de Nina e a possibilidade de uso de drogas. Por fim, ouviu a juíza dar uma recomendação. “A senhora vá para a casa e pense bem se o seu companheiro ou qualquer pessoa das suas relações não pode ter sido autora desse suposto abuso que a sua filha passou. E, se por acaso for confirmado o abuso, até mesmo a senhora pode ser responsabilizada pelo abuso. Então, abre o olho e começa a prestar atenção no que pode ter acontecido”.

Desde sua primeira manifestação, a promotora responsável pelo caso, Rosi Maria Barreto, explicitou o posicionamento favorável à permanência de Nina no acolhimento. Ao longo do processo, a representante do MP sempre destacou a gravidade das denúncias. Mas salientava, sobretudo, a conduta de Maria, classificada como alguém com “absoluta ausência de crítica em relação à gravidade dos fatos”, como consta em documento protocolado em novembro, após a audiência inicial.

Essa foi a primeira manifestação expressiva do Ministério Público, mais de 40 dias após o acolhimento. Logo após a retirada da criança dos cuidados da mãe, a promotoria informou que aguardaria a audiência. No encontro, a atuação foi limitada a endossar a indicação de permanência da criança sob os cuidados do Estado.

Mas, na manifestação de novembro, o fato de Maria informar que acreditava na possibilidade de que frutas cítricas tivessem causado assadura na criança é duramente criticado e encarado como indicativo de alguém que “parece seguir sem compreender a seriedade da situação”.

O documento destaca ainda a necessidade “imperiosa” de afastamento da criança de sua família e também indica a necessidade de plano de atendimento “visando à reintegração familiar biológica ou afetiva, quer por meio da concessão da guarda, quer por meio da adoção”.

Maria passou pela avaliação psicossocial no início de novembro. O relatório realizado por técnicos do Judiciário reiterou as informações apresentadas na denúncia e o posicionamento da mãe sobre o que poderia ter acontecido. Na entrevista, Maria negou ter visto hematomas no corpo da criança.

O texto também contém informações sobre a relação da criança no centro de acolhimento: “a equipe constata forte vínculo entre mãe e filha”. E informa que “a equipe a considera muito cuidadosa e observa que ela [mãe] costuma estimular bastante Nina, que reage positivamente ao contato com a mãe”. Além de destacar a triste reação da criança a cada despedida: “Nina chora muito quando Maria vai embora”.

Com a informação de que o acolhimento ainda estava avaliando a possibilidade de uma tia materna da criança se responsabilizar pela mesma, o laudo conclui que o melhor para a criança é ser mantida no acolhimento. A justificativa: o núcleo familiar de Nina é frágil e, mesmo com forte vínculo com a filha, Maria não apresentava condições de protegê-la naquele momento, uma vez que “não possui crítica quanto à gravidade dos fatos apontados”.

A pedido da Justiça, Maria também passou por uma avaliação social, com entrevista e visita à sua residência – naquele momento ela havia retornado à casa onde morava com o então namorado. Sobre a casa, a assistente social que fez a visita salientou que: “o apartamento parece ser bastante antigo, assim como a mobília que era parca e em estado precário de conservação. Há um gato com pelos escuros no apartamento, assim como pelos nos móveis e na cama onde dorme mãe e filha”.

Além de Maria, sua irmã, Aline*, também foi entrevistada, assim como a residência visitada. No relatório, as assistentes sociais destacaram o fato da tia morar próximo a outros familiares, possuir emprego e recursos necessários para abrigar a criança. No laudo, uma recomendação: “avalia-se que a tia materna Aline possui condições e mostra-se adequada para assumir os cuidados da menina Nina”. Mesmo com a avaliação positiva, o pedido da defesa para que a criança ficasse aos cuidados da tia foi negado pela juíza.

A defesa de Maria tem sido realizada por diferentes frentes ao longo do processo: através da Defensoria Pública e de profissionais contratados. Na primeira audiência, Maria foi representada por um advogado, que se limitou a informar que Nina havia tido consulta médica dois dias antes do acolhimento e não apresentava qualquer sinal de maus tratos.

O advogado foi destituído. Em novembro, a defensoria apresentou uma petição solicitando o imediato retorno da criança ao lar. E salientou a “estranha abordagem de quase-julgamento” com que Maria estava sendo tratada: “a tônica da abordagem foi completamente inadequada, por pouco não alcançando às raias de uma culpabilização da genitora”.

O documento assinado pela defensora responsável pelo caso salienta as informações “genéricas” e “inverídicas” que estavam sendo apresentadas – como suposto uso de psicoativos e a perda da guarda de uma filha. Nos anexos, laudos de atendimento da criança com a pediatra que fazia seu acompanhamento no posto de saúde, fotos da menina na escola – explicitando que não havia negligência com a higiene da criança -, e prints de conversas por whatsapp que endossaram o tom colaborativo da mãe com as investigações.

O texto também explicita o fato de que, conforme o ECA, “o acolhimento institucional é a medida de proteção de maior gravidade” e que a retirada de uma criança de dois anos do convívio da mãe “lhe trará seríssimos prejuízos psicológicos em virtude do pouco convívio familiar, da precariedade de atenção individualizada”.

O laudo pericial realizado pelo Instituto Médico Legal (IML) no dia da retirada de Nina da escola e ingresso no sistema de acolhimento à criança é peça-chave no processo. E, apesar da urgência do caso, só foi enviado para a justiça em 29 de novembro. No laudo, a perita é categórica: “Não há sinal de ato libidinoso”.

A segunda audiência para determinar o futuro de Nina aconteceu em 12 de dezembro. Naquele momento, o laudo pericial já estava pronto e havia concluído a inexistência de sinais de abuso sexual.

A juíza pediu que as representantes dos serviços de atendimento apresentassem seus posicionamentos. O Conselho Tutelar, o CREAS e a FASC foram unânimes: Nina deveria retornar ao lar.

Além do laudo pericial negativo para abuso sexual, elencaram como motivações o fato de Maria estar morando sozinha e ter se separado do ex-companheiro, possuir dois trabalhos, ter conseguido vaga em uma creche próxima à residência e ter organizado uma rede para receber a criança. A audiência, ainda sem a presença de Maria na sala virtual, parecia se encaminhar para o fim do acolhimento, até o pronunciamento do Ministério Público. Alegando falta de tempo para um debate mais aprofundado, a promotora disse que o que pesava para o retorno da criança “era mais a falta de crítica dessa mãe”. Seu ponto principal: o fato de Maria ter afirmado que a assadura poderia ter surgido de uma alergia a bergamota.

Rosi também afirmou que, para que o parecer fosse favorável ao retorno, precisaria de mais tempo hábil. A representante do acolhimento citou a possibilidade de encaminhamento da criança para a tia materna. O que foi rechaçado pela juíza. “A tia, então, provavelmente vai ter contato com a mãe? Vai entregar para a tia, então entrega para a mãe”.

Também foi aventada a possibilidade de que a criança pudesse passar os fins de semana com a mãe, mas o Ministério Público foi novamente contrário, afirmando que isso causaria ainda mais sofrimento para Nina.

Antes de Maria ingressar na sala, o destino do caso já estava traçado: ela precisaria passar por uma nova avaliação psicológica para atestar sua capacidade de cuidar da filha.

Quando a historiadora ingressou no espaço virtual, a juíza do caso começou a fazer perguntas sobre a nova moradia e sobre as relações que mantinha com o ex-companheiro. Em tom inquisitório ficou contrariada quando Maria disse que havia “se afastado” do ex-parceiro e cobrou uma postura mais contundente. Ao ouvir de Maria que não existiam provas e que, por isso, não tinha como julgá-lo, fez um longo discurso.

“Deixa eu explicar uma coisa: a sua filha está no acolhimento por suspeita de abuso por parte do seu companheiro. Se tem provas ou não, não cabe à senhora ficar julgando, para isso tem o poder Judiciário, para isso tem o Ministério Público, para isso tem a juíza: para dizer se houve ou não houve. O que está impedindo a senhora de ficar com a sua filha é a falta de senso crítico que a senhora tem em relação ao ocorrido”.

Maria então reafirmou que saiu da casa do ex-companheiro e perguntou: “O que mais eu preciso fazer?”

A juíza diz que ela precisaria se comprometer a não ter vínculos com o ex-parceiro. Maria respondeu: “Estava esperando ansiosamente sobre um laudo técnico, sobre uma decisão judicial. Esperando porque é complicado, nós éramos um grupo familiar e foi destruído”.

“Destruído por conta de vocês. Foi destruído por culpa de você. Não por culpa do Judiciário, né?”

“É minha culpa? Mesmo que tivesse acontecido não seria minha culpa. Eu sou a mãe dela. Eu estava ali para protegê-la e dei o meu máximo para isso. Jamais seria conivente com algo desse tipo. Para mim, qualquer sinal que eu visse nesse sentido, eu mesma sairia, eu mesma procuraria o serviço de saúde”.

“E a senhora não viu nenhum sinal?”

“Eu não vi nada que eu pudesse julgar. Eu não vi nenhuma suspeita.”

“A senhora continua acreditando nisso? Que não tem suspeita e nenhum sinal de abuso?”

“Estou dizendo que eu não vi isso.”

“Eu quero saber se a senhora continua acreditando que não tinha nenhum sinal e que era suspeita de bergamota?”

“Eu não sou do IML. Eu fiz o meu papel, que foi levar no serviço de saúde. Dois dias antes dela ser acolhida, ela foi levada em um serviço de saúde e a médica não viu absolutamente nada. Não foi encaminhado pelo posto de saúde provas ou indícios que eles acreditassem que tenha acontecido alguma coisa.”

A discussão seguiu até que a promotora interviu e, novamente, afirmou que a postura de Maria era equivocada, com ausência de discernimento sobre a gravidade do ocorrido. “As pessoas no senso crítico normal e mediano jamais diriam que uma vermelhidão na genitália seria alergia a uma bergamota. A gente passaria por qualquer outras milhões de opções.”

E, concluiu: “A gente tá querendo afastar e ser a garantia de que a senhora vai ver uma outra vermelhidão não como alergia a bergamota, a laranja, a maçã ou a pera, mas sim, uma possível ocorrência de uma abuso.”

Ao retomar a palavra, a juíza informou Maria que a criança seguiria acolhida até que ela passasse por uma nova avaliação psicológica. E que, só então, haveria uma nova audiência para determinar os rumos da criança. Em desespero Maria afirma: “Ela já tem escolinha, minha mãe tá vindo aí. Não tem nada na lei, não tem nada que motive a separação”.

A juíza é lacônica: “De lei entendemos nós”.

Após a audiência, quando Maria e os representantes do Conselho Tutelar saíram da sala virtual, a juíza, a promotora e a defensora pública seguiram online e comentaram sobre o caso. A postura de Maria continuou sendo classificada como “displicente” e sem “senso crítico”.

A possibilidade de uma alergia por consumo de uma fruta cítrica aventada por Maria, foi motivo de deboche. E os pelos nas fraldas, que em momentos do processo aparecem como “muitos”, “dois”, “um”, mas que em nenhum momento se tem registro fotográfico ou qualquer perícia e exame de DNA que pudessem comprovar se eram humanos e de quem seriam se transformam em “pelos pubianos” nas palavras da promotora.

Depois da segunda audiência, a defesa ingressou com recurso. Duas linhas de argumentação foram apresentadas: o laudo que negava abuso e o fato de Maria ter sido sistematicamente culpabilizada por diferentes órgãos do Estado.

A defesa anexou documentos do processo criminal que apurou a denúncia de estupro de vulnerável e que foi arquivado pela Justiça.

No inquérito, a polícia ouviu Maria, o ex-companheiro Pedro*, a pedagoga da creche e responsável pela denúncia, Regina, uma cuidadora da criança que trabalhou durante um ano com a menina, Tati*, e a médica pediatra, Denise* – responsável pelo atendimento da criança nos meses que antecederam o acolhimento. A polícia concluiu que não havia qualquer prova de abuso sexual e que o único indício de anormalidade era o depoimento da professora.

O processo contém também a manifestação do Ministério Público, em favor do arquivamento da denúncia. No documento, o MP explicita que o depoimento da pediatra que atendeu a criança confirmou que as assaduras “podem ser decorrentes da ingestão de frutas ácidas” e que este fato “corrobora o relato apresentado pela genitora da infante”.

O recurso foi negado tanto pela juíza responsável pelo caso quanto pelo plantão judiciário.

Desde que Nina foi acolhida, Maria teve a vida virada do avesso. Saiu da casa do companheiro e chegou a morar em um albergue antes de conseguir alugar uma casa. Também iniciou o trabalho em um segundo emprego. Buscou diversos órgãos do Estado à procura de uma saída para a situação, mas nada foi capaz de impedir que a filha permanecesse 150 dias abrigada. “Eu fui fazendo tudo que foi pedido, mas nada do que eu fazia era levado em consideração para demonstrar que eu podia cuidar dela”.

Maria tem certeza que sua postura “criou alguma inimizade com as autoridades”. “Eu percebi muitas coisas preconceituosas no processo. Eles chegaram a dizer que eu não tinha crítica o suficiente porque eu contestei o que estava acontecendo. Eles gostariam que eu sustentasse a tese do abuso e não denunciasse os erros de procedimento”.

Maria acredita que foi alvo de preconceito por parte da escola e do Judiciário. Nesta quarta (15), foi surpreendida positivamente com a notícia de desabrigamento da filha: “Eu ainda tô me sentindo muito machucada por dentro, para Nina também foi um baque. Mas a gente vai se recuperar”.

A convite do Sul21, a pesquisadora Lynara Ojeda analisou as informações do processo e as audiências do caso envolvendo o acolhimento de Nina. Doutoranda em Jornalismo e com larga experiência no campo dos Direitos Humanos e do enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, ela é taxativa ao afirmar que, ao invés de trabalhar para proteger Nina, agentes de diferentes órgãos do Estado acabaram produzindo novas formas de violência contra mãe e filha. Para Lynara, é inaceitável que Nina tenha passado mais de quatro meses longe da mãe.

Na avaliação de Lynara, os agentes do Estado erraram ao se basear apenas na denúncia da professora da escola e adotaram uma medida excepcional para um caso sem elementos comprobatórios antes do laudo pericial e que perdeu a materialidade após a comprovação de que não existiu abuso.

Ela aponta que, enquanto havia suspeita de abuso, outras medidas poderiam ter sido adotadas, como a retirada do suspeito de agressão do convívio da criança ou o encaminhamento de mãe e filha para uma instituição de acolhimento. Após a comprovação da ausência de abuso, a criança deveria ter sido imediatamente entregue aos cuidados da mãe. Para a pesquisadora, isso só não ocorreu porque os agentes do Estado transformaram uma mãe questionadora em uma mulher omissa. “O que a gente vê é uma postura de exigir que essa mulher se culpe e se humilhe. Se essa mãe simplesmente baixasse a cabeça e concordasse com tudo, não seria um problema. Essa mulher questiona, ela acredita nos documentos: ela acredita na médica do posto e acredita no médico legista”.

Para Lynara, o olhar do Estado produz uma violência contra mãe e filha, que ficarão marcadas para sempre com a marca de um acontecimento que não existiu. E parte dessa violência está justamente no olhar machista da sociedade sobre a maneira como as mães devem se comportar. “O fato dela não agir conforme o esperado, não seguir a maternidade compulsória e ter todos os filhos sob sua tutela, faz com que a vejam como uma mãe que não é capaz de cuidar de sua filha. Mas nada justifica essa violência. Para uma criança com 700 dias de vida, 150 dias longe da mãe é muito tempo”.

Em janeiro, Maria passou por uma nova avaliação psicológica. O laudo realizado por uma psicóloga do Judiciário afirma que a genitora apresentou “um humor depressivo, demonstrando abatimento significativo com a situação”. Mas que, mesmo diante de um histórico de vulnerabilidade e dificuldade de construção de rede de apoio ao longo da vida, Maria está buscando uma organização para receber a criança.

No parecer, a psicóloga salienta a necessidade do resgate dos vínculos entre mãe e filha e, como sugestão, indica uma gradual reaproximação, fora do espaço de acolhimento. Conforme o texto: “que sejam intensificadas as possibilidades de interação da Nina com a mãe, de forma gradativa, com visitas com pernoite, até que a equipe técnica do acolhimento observe indicadores positivos para o retorno à convivência familiar”.

Mas o entendimento e os apelos da defesa ainda não foram capazes de sensibilizar o Ministério Público. Em nova manifestação, a promotora baseia-se no laudo para salientar “as inúmeras fragilidades pessoais e importantes dificuldades de ordem psíquica e social” e afirma que o caminho para a recuperação da guarda da criança está apenas no início.

A promotora manifestou-se de forma contrária não somente ao retorno da criança para casa, quanto ao pernoite da menina com a mãe: “o desligamento da menina se revela medida precipitada, neste momento, como também que seja autorizada a saída de Nina para visitação, sobretudo com pernoite, na residência materna, quanto ao mais se considerada a tenra idade da menina, e a ausência de prévio planejamento capaz de garantir a proteção e segurança da criança enquanto na companhia exclusiva da mãe”.

O último recurso apresentado pela defesa de Maria foi um documento concordando parcialmente com o laudo psicológico. A defesa salientou todas as iniciativas já realizadas pela mãe para retomar os cuidados com a filha: constituição de nova residência; término de relacionamento; matrícula em creche; acompanhamento médico da criança e o acompanhamento psicológico de Maria — que desde dezembro tem realizado consultas regulares com psicólogo. Mas discordou no ponto principal: a existência de elementos capazes de manter a criança longe da mãe.

O documento foi protocolado na segunda-feira. O Sul21 entrou em contato com a promotora e a juíza responsáveis pelo caso na terça-feira, pela manhã. por intermédio das assessorias de imprensa, ambas afirmaram que não iriam se manifestar sobre o assunto por se tratar de um processo envolvendo uma criança. A promotora Rosi Barreto solicitou que a assessoria informasse que “se trata de uma menina pequena, que está em acolhimento institucional como medida protetiva por ter tido direitos violados”. A juíza afirmou que em breve sairia uma decisão sobre o caso.

Ainda na terça-feira, no início da noite, a decisão favorável para o retorno da criança foi publicada. Pela primeira vez ao longo do processo, a juíza discordou do Ministério Público e reconheceu todos os esforços que foram realizados por Maria desde o início do processo e sistematicamente apresentados pela defesa. E, ao contrário das decisões anteriores, afirmou que “a genitora demonstrou capacidade de reorganização” e que o retorno para o lar seria importante para a criança.
O documento determina que a família seja referenciada na rede de proteção e socioassistencial e que seja remetido, a cada 30 dias, um relatório sobre a situação de ambas durante, pelo menos, seis meses.

Ao contar sobre a notícia, Maria se disse positivamente surpresa e afirmou que, para ela, falar sobre essa história pode ajudar outras famílias a não passarem pela mesma situação: “À medida em que eu fui lendo coisas, fui vendo que a minha situação não era a única. Isso me deu um pouco de subsídio para ir adiante, porque a gente se sente muito sozinha”.

Nina retorna para casa hoje: quase 150 dias depois.

*Os nomes foram alterados em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

 

fonte: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/02/150-dias-de-desespero-a-luta-de-uma-mae-contra-o-estado-para-recuperar-a-filha-2/


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