Pesquisadoras da USP contam como foi a participação no Segundo Encontro Continental em Estudos Afrolatinoamericanos, no Hutchins Center da Universidade de Harvard; de justiça climática a literatura negra, conheça as pesquisas que representaram a universidade no encontro

Cientistas de todas as áreas reunidas no Afro-Latin American Research Institute, Harvard University - Foto: reprodução / ALARI

 

 

  Publicado: 24/02/2023 - Jornal da USP
Tabita Said

Após diversas e vitoriosas campanhas de arrecadação nas redes sociais, pesquisadores negros brasileiros apresentaram seus trabalhos acadêmicos no Segundo Encontro Continental em Estudos Afrolatinoamericanos, organizado pelo Instituto de Pesquisa Afrolatinoamericana (ALARI) da Universidade de Harvard, em Cambridge, nos EUA. O valor, recebido por meio de doações, custeou a viagem e a acomodação dos cientistas, que apresentaram suas produções intelectuais em painéis reunindo mais de 250 pessoas negras, latinas e indígenas.

A USP foi representada por pelo menos oito pesquisadoras que estão ou já passaram pela Universidade em suas formações acadêmicas, além da única brasileira na organização do evento: a socióloga Márcia Lima, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pesquisadora do CEBRAP, onde coordena o AFRO-Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial. Atualmente, Márcia é titular da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo no Ministério da Igualdade Racial. “Faço parte da organização do evento desde sua primeira edição. Participei do workshop de criação do instituto e tenho uma parceria de pesquisa com eles”, conta a professora que também integra os comitês de seleção de todas as atividades do ALARI em que mais de 60% dos apresentadores se identificavam como pessoas negras, e 68% como mulheres.

“Essa é uma das principais marcas do evento: a enorme participação de brasileiros, em especial de mulheres negras do Brasil. Um evento internacional que reúne muitas mulheres negras pesquisadoras”, destaca a socióloga que, junto da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, organiza a próxima edição do encontro continental. O evento está previsto para ocorrer na USP, em 2024. 

Três pesquisas em andamento na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP marcaram presença no evento. Em diferentes áreas do saber, os estudos representam, ainda, a diversidade de temas atualmente investigados no único campus da USP localizado em um bairro periférico da cidade de São Paulo. 

 

Justiça climática no Sul Global: racismo ambiental no Brasil

Ana Claudia Sanches Baptista, doutoranda no programa de Mudança Social e Participação Política (PROMUSPP) na EACH, e Izabela de Oliveira Santos, doutora em Ciência Ambiental pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP, apresentaram as relações entre meio ambiente e raça. Por meio de dados do Censo e de pesquisas realizadas por Ana e Izabela, o trabalho demonstra como o meio ambiente degradado e as piores condições de vida estão determinadas aos pobres, negros e moradores de periferias da cidade por meio de planejamentos injustos. “Nossa proposta foi discutir as questões raciais e ambientais das cidades brasileiras e demonstrar como o planejamento urbano reproduz uma lógica racista, na qual condena o povo negro, principalmente as mulheres negras, população indígena, bem como o povo pobre, periférico/favelado”, descreve Ana.  

Da amizade entre as cientistas, surgiram algumas parcerias de pesquisa ao longo de suas trajetórias acadêmicas, assim como a ideia de submeter um trabalho conjunto ao encontro. “A princípio achamos que podia ser uma grande loucura, mas há algum tempo estamos olhando para questões de racismo ambiental na região metropolitana de São Paulo”, conta Izabela, que investigou em seu doutorado como o acesso à água e ao esgoto estão associados ao processo da construção social do risco de escassez hídrica no bairro de Novo Recreio, em Guarulhos.

Izabela de Oliveira Santos - Foto: Arquivo pessoal

 A engenheira ambiental é uma mulher afro-ameríndia, da região da Amazônia paraense, e é a primeira pessoa de sua família a apresentar um trabalho acadêmico fora do País. “Nunca achei que isso pudesse acontecer e, de repente, eu estava lá com a Ana e com várias outras mulheres pretas maravilhosas, apresentando cada uma o seu trabalho, mostrando toda a potência que pesquisadores jovens negros tem feito ao longo das Américas e do Caribe”, diz. No encontro, a pesquisadora pode experimentar a notável diferença de público, já que em sua pós-graduação conviveu com poucos estudantes negros. “Talvez tenha sido o primeiro trabalho que relate um estudo de caso de racismo ambiental com todas as letras”, afirma Izabela e explica que buscou apresentar o papel do Brasil em uma discussão pensada a partir da realidade.

“Quando o resultado saiu, e estava lá ‘APROVADO’, começamos a pensar: e agora, como vamos sair do país com o dólar alto e ganhando pouco? Para nossa alegria, Harvard iria pagar as passagens de algumas pessoas e a Universidade, através de uma verba para o PROMUSPP, também contribuiu com nossa alimentação e transporte”, lembra Ana, que criou, ainda, uma vaquinha on-line para auxiliar nas despesas da viagem. A campanha conseguiu grande repercussão após reportagem do portal Alma Preta, de jornalismo. “Chegamos em Boston com muito frio, mas cheias de planos! Assistimos apresentações de outras mulheres negras e aproveitamos para fazer conexões com pessoas da região. Em especial, encontramos o professor Julian Agyeman, que trabalha com Sustentabilidade Justa, Raça e planejamento urbano e é professor da Universidade de Massachusetts”, conta. Ana é uma mulher negra, vinda das periferias do Vale do Paraíba e Litoral Norte de São Paulo, e entrou na Universidade por meio de políticas de cotas raciais pelo PROUNI. “Essa ida foi mais que um sonho; foi fruto de um trabalho coletivo e do apoio de muita gente que acreditou em nosso trabalho e em nossa atuação”, diz.

Ana Claudia Sanches Baptista - Foto: Arquivo pessoal

Envolvida em uma intrincada rede de apoio, Ana influenciou a ida da ativista climática Amanda da Cruz Costa ao encontro do ALARI. Amanda é fundadora do Perifa Sustentável, jovem embaixadora da ONU, delegada do Brasil no G20 Youth Summit e eleita #Under30 pela revista Forbes. Juntas, em Harvard, uma apresentando e a outra traduzindo a apresentação, conheceram e conversaram com uma lenda viva da área ambiental, o professor Benjamin Franklin Chavis Jr., considerado o pai do termo “Racismo Ambiental”. 

Distante das ambientais, no entanto, foi em uma conversa com Eliane de Souza Almeida, doutoranda na área de Arte e Cultura, que a ida à Harvard começou a se desenhar no horizonte. 

 

Teatro experimental do negro e a negritude: um estudo da construção de um discurso político emancipatório

Em meados de 2021, Eliane, que já havia ido à Harvard outras duas vezes, contou às colegas da EACH sobre o ALARI, um evento que era focado na população negra da América Latina. Jornalista, Eliane também é doutoranda na área de Mudanças Sociais e Participação Política, dedicando-se a compreender a influência da luta antirracista no discurso político de Abdias Nascimento. Ela pesquisa a trajetória intelectual do artista até o Teatro Experimental do Negro e como suas ações foram influenciadas pelo pensamento da negritude, “que é um pensamento construído por antilhanos e africanos na França, durante a década de 1930”, explica.

Eliane de Souza Almeida - Foto: Arquivo pessoal

Para o ALARI, Eliane apresentou apenas um fragmento de sua pesquisa, com detalhes do encontro entre Abdias e o sociólogo francês Roger Bastide. Membro da “missão francesa”, Bastide chegou ao Brasil em 1938, numa comitiva de professores europeus para compor o corpo docente da então Faculdade de Filosofia, na recém criada Universidade de São Paulo. “Naquele momento, o mito da democracia racial se constituía como uma política verdadeira e a única possibilidade de construir uma nação que não sofreria de racismo. E os movimentos negros estavam, em certa medida, entendendo que a democracia racial era possível”, destaca Eliane. Cerca de dez anos depois, quando Abdias começa a produzir o Jornal Quilombo, Bastide apresenta a ele intelectuais da Sorbonne que estavam desenvolvendo uma linha filosófica chamada ‘négritude’. “A partir daí, o Abdias muda seu olhar sobre a situação no Brasil e percebe que é no fortalecimento do ser negro que existe, de fato, a saída para a luta contra o racismo”.

“Estar em Harvard é algo impensável para muitas de nós e sendo doutoranda aos 51 anos, mostra que estou nadando contra a maré das estatísticas. Uma mulher negra na minha idade, ou é do lar ou é do lar. Não, não sou! Sou da academia!”, celebra Eliane. A doutoranda também se prepara para concluir um diplomado em Estudos Afrolatinoamericanos no mesmo centro que promoveu o evento, no qual discute o Teatro Experimental do Negro como agente de transformações sociais. 

“Esse é o grande lance do Teatro Experimental do Negro – que se inicia na luta antirracista com corpos negros no palco, mas que depois vai tomando outros caminhos. Foi aberta uma escola na qual as pessoas eram alfabetizadas a partir de clássicos do teatro”, explica Eliane. A pesquisadora destaca que Abdias via o teatro não somente um espaço de arte, mas vislumbrava uma possibilidade de construção política e de tomada de consciência social por meio dele. “Para entender que [a população negra] é capaz de constituir uma intelectualidade muito forte e transformadora, e para fazer o branco entender que o negro é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive ocupar o espaço sagrado do teatro”, afirma.

 

Escrever-se a si, escrever-se às outras: escrevivêcia como ato político em Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo

Utilizando o conceito de “escrevivência”, da escritora e ensaísta Conceição Evaristo, a doutoranda em Mudança Social e Participação Política Maria Carolina Casati Digiampietri costurou conexões entre o contemporâneo e o passado. O trabalho aprovado para o ALARI, em Harvard, tratou da escrevivência não só na na literatura de Evaristo, mas também na obra da Maria Firmina dos Reis, no livro Úrsula, e em Carolina Maria de Jesus, com Quarto de Despejo. “Procuro entender a escrevivência como essa narrativa que não necessariamente vai trazer a experiência da narradora, como acontece com a Maria Firmina, mas que algo dessa experiência possibilite que ela narre outras mulheres”, afirma. A pesquisadora sempre analisou as narrativas orais em seu percurso acadêmico e atualmente investiga as características das narrativas de mulheres negras brasileiras que têm algum tipo de relacionamento com homens italianos e moram na Itália ou já passaram algum tempo na Itália. Seu objeto de pesquisa se baseia em história oral de vida. “Já realizei 30 entrevistas enquanto estava no doutorado sanduíche, em Roma, e vou continuar a pensar em como construir essa preta imigrante na Europa”, diz. 

Maria Carolina - Foto: Arquivo pessoal

Para Carol, foi muito bonito estar envolvida em um movimento coletivo para bancar sua ida e de outras cientistas, muitas delas surpreendidas pela notícia da suspensão das bolsas de pós-graduação pelo governo federal em dezembro, enquanto ainda estavam apresentando seus trabalhos. “Acho que isso também faz parte dessa experiência em Harvard. O que a gente seria capaz de fazer com mais patrocínio?”, questiona. A apresentação pode ser vista em seu instagram @encruzilinhas, onde a pesquisadora também apresenta literaturas e discute letras, feminismos e militância.  

Um desdobramento de sua viagem à Harvard foi poder visitar o Museu das Bruxas de Salém, em Massachusetts, e aprofundar uma das personagens que Carol investiga no doutorado: Tituba Indian. Primeira das mulheres de Salém acusadas de bruxaria, Tituba foi ainda uma das únicas a aceitar o título. 

“Os relatos dela são os mais ricos, porque ela começou a contar histórias mirabolantes sobre bruxaria. Em Salém, as pessoas mal tinham lenha suficiente para viver, que dirá para tacar fogo em bruxas! Então, lá as bruxas eram enforcadas. Mas Tituba não foi e a gente não sabe mais o que é que aconteceu com ela, de verdade, depois que os julgamentos acabaram”, explica Carol, destacando o trabalho da escritora guadalupense Maryse Condé, como alguém que vem buscando dar um final digno para a história de Tituba. “Essa preta maravilhosa, que no último dia 11 fez 86 anos, e escreveu o livro chamado ‘Eu, Tituba: bruxa negra de Salem’, que segundo ela foi escrito após encontros com a própria Tituba”.

De Harvard a Salém, Carol voltou a São Paulo e agora se prepara para realizar uma palestra junto ao Museu das Bruxas de Salém. “Eu me ofereci e a diretora adorou, porque não tem muita gente estudando a Tituba e eles queriam melhorar a apresentação dela no museu”, conta.

Ciência afrocentrada

 A pesquisadora egressa do Programa de Pós-Graduação em Turismo da EACH e doutoranda em sociologia pela FFLCH, Denise Rodrigues, apresentou o seu trabalho, intitulado Racismo, memória e turismo: as narrativas reivindicadas da São Paulo Negra (Brasil). Baseado em sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-graduação em Turismo, na EACH em 2021, a pesquisa identificou que os bairros centrais de São Paulo sofreram com um processo de apagamento da contribuição negra no desenvolvimento da capital paulista. O estudo também aponta que as histórias e personalidades negras seguem negligenciadas pelo poder público na memória da cidade, recaindo sobre as práticas oficiais de turismo. Em contrapartida, a pesquisadora apresentou o atual e crescente conceito do “afroturismo”, prática turística que busca resgatar, preservar e reconectar as histórias da sociedade brasileira por meio da perspectiva e do protagonismo da população negra. Esta visibilidade da identidade negra por meio dos roteiros de afroturismo segue sendo tema de sua pesquisa, agora no Programa de Pós-graduação em Sociologia, da FFLCH.

Denise Rodrigues - Foto: Arquivo pessoal

“Foi uma experiência única e marcante para a minha trajetória acadêmica e pessoal. Primeiramente, por toda a rede de apoio que se mobilizou para que eu, moradora da periferia de São Paulo, conseguisse participar e, também, por tudo que pude vivenciar durante o congresso”, relata Denise. Como uma mulher preta e periférica, a acadêmica conta que o encontro foi um momento de grande aprendizado, superação, inspiração e reconexão. 

“Pude prestigiar ativistas, pesquisadores, artistas e muitos outros que trouxeram o debate da racial para dentro de uma das melhores universidades do mundo, mostrando toda a nossa potência e diversidade de olhares.  A sensação de pertencimento e acolhida no auditório lotado de pessoas negras, muitos com trajetórias similares às minhas, não sairá da minha memória”, diz.

Também participaram as pesquisadoras Maíra Vieira de Paula, doutoranda da Escola de Comunicações e Artes da USP, sobre as relações entre o trabalho da artista visual brasileira Rosana Paulino e Andy Warhol; Jacqueline Moraes Teixeira, professora da Universidade de Brasília e do Programa de Pós Graduação em Educação da USP, com o tema Raça, gênero e violência doméstica: pentecostalismo brasileiro e as novas pedagogias eleitorais; e Joana D’Arc de Oliveira, professora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos, com o trabalho Segregação e Racismo nas cidades do Interior Paulista – Brasil.

“Eu fui selecionada para apresentar a minha pesquisa sobre territórios negros urbanos. Segundo informações do evento, foram muitos inscritos e ter sido selecionada foi um grande reconhecimento das minhas pesquisas”, afirma Joana, que contou com apoio direto de seus estudantes na USP por meio da organização de uma vaquinha on-line. O trabalho apresentado em Harvard apresenta algumas práticas profissionais de médicos sanitaristas, engenheiros e arquitetos na reformulação e readequação dos espaços urbanos na cidade de São Carlos. De acordo com a professora, essas ações visavam, entre outros objetivos, a a exclusão dos corpos negros. “Começaram a surgir ações como demolição de cortiços, criminalização da cultura negra e encarceramento de negros e negras que ousassem ‘violar’ as normas morais e condutas vigentes, como caminhar pela região central em dia de semana”, destaca. Em sua apresentação, Joana articula a obra de outros autores, artigos de jornais da época, documentos como códigos de postura e processos criminais do final do século XIX. A análise traz à tona o preconceito racial implícito em projetos e leis urbanísticas, e que, segundo a pesquisadora, “foram responsáveis pelo ordenamento e zoneamento da cidade de São Carlos após a abolição do sistema escravocrata”.

Joana ao lado de Henry Louis Gates, crítico literário, professor e diretor do Centro de Estudos Africanos, na Universidade Harvard - Foto: arquivo pessoal
 
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