Busca pelos mandantes do assassinato foi, desde o início, encoberta por procrastinação investigativa, aparelhamento e desconfiança. Agora, após decisão do ministro Flávio Dino, inclusão da PF pode ser ponto de virada na apuração do caso

 


Ilustração: Carvall

Por Renato Sérgio de Lima, na Piauí

Quando fui provocado pela piauí a escrever este artigo, fiquei em dúvida sobre como abordar a decisão do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que incluiu a Polícia Federal na investigação do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorrido em março de 2018, no Rio de Janeiro. Antes de tudo, porque concordo com a decisão. Já em 2018, eu defendia que a investigação, mesmo que capitaneada pela Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), deveria contar com o apoio federal.

A PF, como bem frisou o ministro, tem competência para atuar em casos envolvendo crimes políticos e de direitos humanos. Mais do que isso: é a única, dentre as 86 polícias brasileiras, a ter a função constitucional de “apurar infrações penais contra a ordem política e social”. Desde o começo, portanto, a PF poderia ter atuado em paralelo à investigação estadual para apurar se a morte de Marielle, uma vereadora do Psol, teve motivação política e atentou contra as instituições democráticas. Infelizmente, a tradição processual brasileira e o ambiente de disputas e desconfianças mútuas deram outro rumo para a história. 

A decisão de Flavio Dino de abrir um inquérito no âmbito da PF pode mudar o curso da investigação. Anunciada na última quarta-feira (22), a medida inova na abordagem. Isso porque o ministro não revogou a competência estadual para apurar os assassinatos; em vez disso, abriu uma linha paralela de investigação, o que, ao que tudo indica, permitirá o compartilhamento de evidências e elementos técnicos entre a PF e a Polícia Civil. A entrada da Polícia Federal pode agregar policiais altamente qualificados ao caso. Mais do que isso: terá o papel de conferir isenção e credibilidade às conclusões que eventualmente forem alcançadas.

Desde o início, as mortes de Marielle e Anderson foram encobertas não só pela complexidade do caso em si, mas pela aura da desconfiança que rondava a investigação. Diante da suspeita de que a Polícia Civil do Rio estaria procrastinando a apuração dos culpados, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tentou federalizar o caso. Propôs, na época, um chamado “Incidente de Deslocamento de Competência” – ferramenta jurídica prevista na Constituição para lidar com graves violações de direitos humanos. Caso houvesse anuência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a investigação teria passado da esfera estadual para a federal. Mas o STJ negou o pedido, alegando que o assassinato era um caso complexo e que as autoridades estaduais vinham, sim, se esforçando. Não haveria, portanto, desinteresse ou descuido para justificar a mudança.

A decisão do STJ resumiu o Zeitgeist: a ideia de tirar a investigação das mãos das autoridades estaduais foi fortemente repelida pelo interventor na segurança pública do Rio de Janeiro na época, general Walter Braga Netto – que, quatro anos depois, se candidataria a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro. A ideia também foi rechaçada pelo Ministério Público Estadual, que conseguiu obter na Justiça uma liminar proibindo o Ministério Público Federal de investigar o caso, e pelos próprios familiares de Marielle, que acreditavam no trabalho da polícia fluminense. (Além disso, depois que Bolsonaro se elegeu e aparelhou a PF, passaram a desconfiar da imparcialidade da instituição.)

Por muito tempo, reinou o consenso de que, para solucionar os assassinatos de Marielle e Anderson, seria preciso mergulhar nas interconexões da economia política do crime – algo que só uma pessoa do Rio de Janeiro poderia entender. Não é uma leitura totalmente equivocada. E é fato que a investigação avançou sob a batuta do Ministério Público estadual, ainda que com idas e vindas – como as cinco trocas de delegados da Polícia Civil encarregados pelo inquérito, além das suspeitas de corrupção envolvendo policiais que estariam dificultando o desenrolar do caso. Os investigadores revelaram uma enorme teia de interesses em torno da expansão das milícias. O caso, talvez mais do que qualquer outro até hoje, revelou o tamanho da contaminação do poder público no Rio de Janeiro pelo crime organizado.

A investigação jogou luz nas relações entre jogo do bicho, milícias, policiais e políticos. Mostrou o modus operandi da milícia de Rio das Pedras e da Muzema, na Zona Oeste do Rio, e o domínio imposto pelo Escritório do Crime, chefiado pelo ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, que foi condecorado com a medalha Tiradentes pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, em 2005, e chamado de herói por Jair Bolsonaro, em 2020. Esse fio, que aos poucos foi sendo puxado pelos investigadores, acarretou a prisão dos ex-PMs Ronnie Lessa – acusado de fazer os disparos – e Élcio Queiroz – apontado como motorista do carro. 

Até hoje, contudo, não se sabe quem foram os mandantes do crime. Não há evidências que permitam afirmar quem mandou matar Marielle e por quê. O profissionalismo dos assassinos desafia a capacidade técnica das forças de segurança e exige caminhos pouco ortodoxos de investigação. O maior exemplo disso foi uma ordem da Justiça do Rio de Janeiro, em 2020, para que o Google compartilhasse os dados de geolocalização de seus usuários. Essas informações, colhidas constantemente de aparelhos celulares, permitiriam saber que pessoas circularam perto da cena do crime no dia 14 de março de 2018.

Um acórdão determinou que o Google repassasse os dados à Polícia Civil e ao Ministério Público estadual. A empresa, no entanto, contestou a decisão, invocando o direito à privacidade dos usuários. Desde então, a ordem do STJ está suspensa. (Digno de nota: o acórdão foi baseado no voto do ministro Rogério Schietti Cruz, conhecido por suas posições “garantistas” e, por isso, apontado de forma equivocada como antagonista das polícias.)

A decisão do STJ, caso se cumpra, abrirá um novo caminho para a investigação de crimes de alta complexidade no Brasil. Combinada com o inquérito da Polícia Federal, ela poderá significar um momento de virada no caso Marielle. Se em 2018 o tempo da política não ajudou a investigação, em 2023 parece haver uma convergência para que as disputas corporativistas e federativas sejam deixadas de lado em prol da solução do caso.

O importante, no caso Marielle Franco, é que tenhamos a certeza de que o Estado, em suas múltiplas esferas e poderes, fez o máximo ao seu alcance para não deixar as mortes impunes. Precisamos superar o luto político e moral que tomou conta do país nos últimos anos, bem como a dor da perda imensurável de uma liderança como Marielle.

A entrada da Polícia Federal no caso é uma aposta naquilo que Hannah Arendt tão bem explicou em A dignidade da Política. A autora nos lembra que, se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nós, no espaço da política, temos o direito de esperar milagres. Não porque acreditemos em milagres num sentido religioso, mas porque os homens, enquanto puderem agir, são capazes de realizar o improvável e o imprevisível.

 

fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/caso-marielle-o-que-esperar-da-policia-federal/


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