A laicidade é (ou deveria ser) intrinsecamente vinculada à democracia representativa

Artigo publicado por RED - Rede Estação Democrática

15/03/2023 14:00 • Atualizado em 17/03/2023 10:08

Deus nos guarde do sagrado nas políticas públicas

De SANDRA BITENCOURT*

2018.O primeiro gesto à nação do presidente eleito no Brasil, Jair Messias Bolsonaro, foi uma oração fervorosa, ao lado do deputado pastor Magnos Malta, transmitida na internet e pelas principais emissoras de televisão do país. A cena nos remeteu irremediavelmente ao retrocesso. Era possível prever a lógica que seria acessada para sustentar um projeto extremista e criminoso- como depois se pode amargamente comprovar.

2023.Wellington Dias, Ministro do Desenvolvimento Social, puxa oração no Planalto e agradece por aprovação de PEC para o Bolsa Família. O presidente Lula e demais presentes dão as mãos para acompanhar a prece. Após rezar um Pai Nosso com os convidados, Dias pede que o público repita suas palavras em coro.

Qual a proximidade ou distância dessas duas manifestações religiosas no centro do poder e com a maior autoridade do país?

O representante político tem o direito de proclamar sua fé no momento de entrega de uma política pública? Seria isso liberdade religiosa? Ou seria, mais uma vez o âmbito do privado (a fé é uma manifestação individual da consciência) contaminando a coisa pública?

Não por acaso a laicidade é intrinsecamente vinculada à democracia representativa. A simbiose do Estado com a religião nos remete ao absolutismo e aos reinos medievais. Na atualidade, é fundamental garantir a autonomia do civil e do político frente ao religioso e ao sagrado.

Podemos conceituar a laicidade como um regime social de convivência, cujas instituições políticas são legitimadas principalmente pela soberania popular e (não mais) por elementos religiosos. Um Estado laico é essencial para garantir os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, para reconhecer e respeitar diversidades e promover, assim, uma convivência social plural e harmoniosa. Não é aceitável que o Estado fundamente ou legitime suas decisões com base na influência de qualquer religião, crença ou filosofia particular.

Ao redor do mundo, muitas decisões políticas que atentam contra as liberdades e direitos fundamentais ou que estabelecem limites ao respeito pela diversidade existente são determinadas pelas influências religiosas que penetram no próprio Estado e seus poderes.

Essa penetração se dá de várias formas e em muitos níveis, mesmo que constitucionalmente exista vedações para a influência e superioridade de determinada religião. Nas equações políticas da atualidade, que contam com influências e capacidade de grupos organizados via dispositivos tecnológicos e vitrines online, é preciso ter clareza que o tema de costumes e valores morais associados à família é apropriado de modo estratégico por espaços midiáticos e grupos de interesse vinculados a posições religiosas e políticas. Não é possível não ter atenção a essas movimentações e a esse poder que se consolida com chamados invariavelmente à defesa da família e ao respeito às leis de Deus. Esses enquadramentos são amplificados em momentos de disputa e polarização.

Há ainda um desconhecimento da população em geral, bem como no âmbito político, organizacional, profissional e mesmo acadêmico, de como o Estado laico é determinante para a garantia dos direitos humanos e liberdades civis, bases de um Estado democrático.

O jornalismo, por seu turno, tampouco costuma pautar os princípios e implicações do laicismo e o Estado laico, particularmente quando a religião em tela é cristã. Dificilmente há a proposta de uma discussão sobre as implicações para as sociedades da existência de um Estado poroso ao domínio confessional. Seria absolutamente qualificador para o amadurecimento democrático conhecer a situação, obstáculos e avanços das liberdades seculares em cada país e cotejar com os nossos avanços e retrocessos.

Isto porque, essas posições acionam mecanismos organizacionais, políticos e legais para avançar ou não nas liberdades civis, direitos humanos e, particularmente, direitos sexuais e reprodutivos. Assim, se naturalizam condutas e se compreendem vedações como expressão autêntica de um pensamento conservador de família.

A eleição de 2018 confirmou expectativas sombrias. O ativismo midiático de grupos religiosos e de simpatizantes das pautas morais se fortaleceu e se estabeleceu como autêntico, transparente e honesto, utilizando as novas possibilidades e alcance das mídias sociais, num paradoxo interessante em que a vertente de mentiras distribuídas em operações milionárias nos grupos de WhatsApp conseguiu se apresentar como a verdade da fé.

É compreensível que um governo popular, eleito para resgatar material e simbolicamente praticamente todas as áreas sociais de um país devastado, busque sinalizar e se aproximar de sua gente e de sua fé. Para isso é preciso disputar a ideia de família, sua vocação para respeitar, proteger e cuidar das famílias.

Mas cumpre perguntar: é razoável associar uma política de ajuda social a uma manifestação de Deus? Qual o trajeto iluminista, em busca de conhecimento, ciência e humanismo que uma comunicação governamental com um projeto de reconstrução deve percorrer? São posicionamentos e decisões estratégicas que precisam estar contidos numa comunicação integrada e pública. Existem princípios, técnicas, instrumentos e valores orientadores para uma comunicação que se pretenda democrática. E eles precisam ser acionados urgentemente. Por ora, existe boa intenção, muitas iniciativas, falas públicas de todo lado e uma imensa fragmentação. Assim, do jeito que vai, nem Deus Ajuda.


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Imagem em Pixabay.

fonte: https://red.org.br/noticia/deus-nos-guarde-do-sagrado-nas-politicas-publicas/


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