Passados 135 anos da assinatura da Lei Áurea, a população negra ainda luta para abrir espaços na sociedade

Naum Giló
postado em 12/05/2023 06:00
Gina Albuquerque idealizou o projeto Mulheres Inspiradores, que já chegou a mais de 50 escolas públicas -  (crédito:  Carlos Vieira)
Gina Albuquerque idealizou o projeto Mulheres Inspiradores, que já chegou a mais de 50 escolas públicas - (crédito: Carlos Vieira)
 

Em 13 de maio de 1888, o Brasil se tornava o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Após quase quatro séculos da maior atrocidade da história recente da humanidade, os negros passaram a não poder ser mais propriedade de alguém. O que, por um lado, foi um grande avanço civilizatório no país, ainda imperial, por outro, trouxe sérios desafios para a população liberta, que não foi reparada e nem amparada de nenhuma forma.

Centro e trinta e cinco anos depois da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, os descendentes dos escravizados amargam os piores indicadores sociais e a dificuldade de acesso a direitos básicos, como saúde, educação, segurança e lazer. Mas os percalços, que são muitos, não são suficientes para impedir que os negros lutem para se destacar nas profissões que exercem.

No Distrito Federal, personalidades negras avançam nas áreas nas quais atuam, sem deixar de lançar o olhar para os ancestrais. "A consciência racial fortalece o negro, porque, a partir do momento em que sabe o que implica ser negro, ele cria estratégias de sobrevivência", afirma Nelson Inocêncio, professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Embora a pauta racial tenha ganhado força nos últimos anos, Inocêncio vê com clareza os desafios desde a juventude, quando foi um dos fundadores do Centro de Estudos Afro-brasileiros, primeira entidade negra do Distrito Federal, nos anos 1970. Também fez parte do Movimento Negro Unificado.

Em 1980, ingressou na UnB como aluno da Faculdade de Comunicação, período em que não era comum haver estudantes negros na instituição. "As pessoas achavam que eu era intercambista da África e vinham falar comigo em inglês ou francês. Era uma época em que o racismo ainda não estava em pauta e as pessoas tinham mais conforto em me discriminar", recorda. Apesar disso, ele cresceu na carreira acadêmica. Em 1993, foi aprovado em concurso e passou a integrar o quadro de professores da UnB.

Sobre o 13 de Maio, Nelson avalia que é uma data na qual não há muito o que celebrar. "Se a Lei Áurea fosse séria, em seu texto haveria os encaminhamentos para garantir transição entre o trabalho servil e assalariado. Quem se libertou, na verdade, foi o Estado brasileiro, que lavou as mãos", analisa o docente, que destaca os vários movimentos pela libertação antes da abolição, o que é invisibilizado pela historiografia oficial brasileira.

Há 30 anos dando aula na maior universidade do Centro-Oeste, Nelson Inocêncio é membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), que tem a proposta de levar o racismo para o debate acadêmico.

O professor do Departamento de Artes Visuais Nelson Inocêncio entrou como aluno na instituição em 1980
O professor do Departamento de Artes Visuais Nelson Inocêncio entrou como aluno na instituição em 1980(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Inspiradoras

A insatisfação com o modelo educacional fez nascer um projeto revolucionário na rede pública de ensino do DF, que chegou a mais de 50 escolas no Distrito Federal, reconhecido no Brasil e no exterior. Gina Vieira Ponte de Albuquerque, mais conhecida como professora Gina, não conseguia deixar de se sentir afetada pelo "sistema arcaico" que fazia muitos dos alunos, maioria negros e periféricos, abandonarem as escolas. "Dava aula na minha comunidade, em Ceilândia. Muitos dos alunos eram filhos de amigas. Entrei em uma depressão profunda. Minha terapeuta, à época, apresentou-me duas opções: abandonar a profissão ou seguir nela", lembra a educadora, hoje aposentada.

Ela ficou e se tornou uma agente de transformação. Em 2014, colocou em prática o projeto "Mulheres inspiradoras". A proposta é levar para dentro da sala de aula obras literárias e biográficas de personalidades femininas, como Anne Frank, Carolina Maria de Jesus e Malala Yousafzai, além de exemplos vivos do DF, como a escritora e atriz Cristiane Sobral e a professora Madalena Tôrres, referência na alfabetização de jovens e adultos.

"O objetivo é fazer com que as meninas se imaginem em outros lugares que não sejam da subalternidade ou em relacionamentos amorosos. Queria que as alunas vissem a mulher como símbolo de intelectualidade e força", revela Gina. "A escola ainda é um lugar autoritário, colonial, racista e eurocentrado, que exclui os saberes africanos, negros e periféricos. A escola tem que dar o espaço para a contestação e se atualizar para a juventude", analisa Gina, hoje professora voluntária da UnB. 

No projeto, os estudantes têm ainda que fazer uma redação sobre figuras femininas na família. "Isso fez com que descobrissem mulheres inspiradoras perto deles, como uma avó que ficou viúva e teve que criar 10 filhos sozinha", exemplifica.

O trabalho rendeu diversas honrarias, como o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; o Prêmio Professores do Brasil, do Ministério da Educação (MEC); e o 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em parceria com o MEC. Gina também recebeu o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos, pelo qual atua como embaixadora. A docente proferiu mais de 400 palestras, no Brasil e em outros países, como França, Peru e Estados Unidos, onde falou na Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas do mundo.

Arte ancestral

"O povo preto é o fundamento da cultura ocidental. Isso traz glória e sentimento de pertencimento ao nosso povo. Minha ancestralidade não influencia meu trabalho. Ela é a minha música", define Ellen Oléria, cantora, compositora e instrumentista. "A negritude é uma questão que me atravessa não só como artista, mas como pessoa também."

Muito embora os africanos tenham entrado no Ocidente como mercadoria, com todos os direitos humanos subtraídos, Ellen lembra que a música popular ocidental é, quase na sua totalidade, negra. Gêneros largamente consumidos hoje em dia e outros que moldaram a música moderna foram inventados pelos negros. "É por causa de uma das maiores tecnologias que atualizamos, que é o amor e a vontade de viver. Isso é afrofuturismo ligado ao afeto", destaca Oléria.

Ellen lançou diversos trabalhos na indústria fonográfica. O mais recente é o álbum Re.trato, em novembro de 2022. A obra se junta à discografia que inclui os álbuns Peça (2009), Ao vivo no Garagem! (2011) e Ellen Oléria (2013). Em 2012, foi vencedora do reality show musical The Voice Brasil, da TV Globo, o que lhe rendeu projeção nacional.

  • Ellen Oléria destaca que o fundamento da cultura ocidental é negroUly Nogueira

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