Por Joy Asasira

Animados pela derrubada do processo Roe x Wade nos EUA, movimentos conservadores ocidentais estão promovendo campanhas na África.

Photo: GPA Photo Archive / Flickr

A decisão mais notável do ano passado concernente à justiça de gênero - a derrubada da proteção federal do direito ao aborto nos EUA - aconteceu a mais de 6.000 milhas da África, mas o seu impacto também chegou aqui.

A decisão da Suprema Corte dos EUA afetará as esferas jurídica, política e de serviços públicos no continente africano. Ela também intensificará a guerra ideológica para controlar os corpos das mulheres e marginalizará ainda mais os cidadãos LGBTIQ.

Os Estados africanos têm políticas de aborto diversas. Por exemplo, em Cabo Verde e na África do Sul o aborto está disponível sob demanda - em teoria, se não na prática, especialmente para as mulheres mais pobres. No Congo-Brazzaville, Egito e Gabão, no entanto, ele é proibido, sem exceções. Entre esses dois pólos há dezenas de países que permitem a interrupção da gravidez em algumas circunstâncias.

Após a reversão americana do processo Roe x Wade, eu estava entre os defensores africanos da justiça de gênero que temiam um efeito dominó no continente. Isso não aconteceu. Entretanto, apesar de não termos visto nenhuma mudança nas leis para restringir ainda mais o acesso ao aborto, definitivamente a decisão dos Estados Unidos realimentou as narrativas anti-aborto.

A final de contas, muitas vezes as vozes e os esforços conservadores mais ativos na África estão intimamente ligados à extrema direita dos EUA e da Europa.

As grandes vitórias dos conservadores americanos na frente doméstica sem dúvida produzirão fundos para limitar o progresso em outros lugares, inclusive na África. No passado, conservadores americanos financiaram esforços no Malauí para dissuadir o parlamento nacional de ampliar as circunstâncias em que o aborto é permitido.

Antecipando 2023 e além, os movimentos feministas da África terão que reinvestir na defesa da autonomia corporal, de acordo com o Protocolo de Maputo. Adotado pela União Africana em 2003, este tratado obriga os países a legalizar o aborto medicamentoso nos casos de agressão sexual, estupro, incesto, e quando a gravidez põe em perigo a saúde ou a vida da mãe, ou quando o feto não é viável. Mas a guerra ideológica vai além do controle dos corpos grávidos.

recém-eleito presidente do Quênia, William Ruto, é uma figura controversa que se autodenominou nacionalista cristão e se pronunciou contra a homossexualidade. A sua primeira medida administrativa limitou o reconhecimento da família aos casais heterossexuais. Esta política tem sido uma prioridade para os movimentos conservadores ocidentais ativos no Quênia, como o CitizenGo da Espanha.

Estes movimentos e seus poderosos aliados buscam manter um entendimento colonial da família na África, sobrepondo-se às definições locais mais amplas do que é a família. De fato, as noções ocidentais conservadoras chocam com as realidades africanas modernas. Cada vez mais surgem diferentes formas de família por todo o continente, com lares chefiados por mulheres solteiras ou crianças, ou lares comunitários de pessoas queer, rejeitadas por suas famílias de origem.

As formas emergentes de famílias requerem movimentos feministas para seguir lutando para serem igualmente reconhecidas e protegidas perante a lei. Isto ocorre principalmente porque os movimentos conservadores tentarão fazer pender a balança contra elas.

Essas lutas são importantes porque muitas vezes são questão de vida ou morte para os povos africanos oprimidos por questões de gênero. Nos últimos dois anos há pelo menos dois relatos de homens que espancaram suas esposas até a morte quando souberam que elas estavam usando contraceptivos. Ao mesmo tempo, um homem no Quênia processou sua ex-parceira por lhe ter negado o "direito" de participar "da sua jornada de gravidez", alegando que o seu desejo de ter filhos deveria ter precedência sobre os sentimentos dela. Frequentemente os africanos LGBTIQ podem ser alvos também, como se suspeita ter sido o caso da queniana Sheila Lumumba e do ugandês Matthew Kinono.

Isoladamente, estes casos podem parecer aleatórios, mas estão diretamente ligados ao ativismo conservador extremista ocidental, estimulado pela reversão do processo Roe x Wade nos EUA. Este ativismo promove reivindicações falsas, tais como a personalidade fetal, espalha informações errôneas sobre contraceptivos, pressiona para que as mulheres voltem aos papéis de gênero nas famílias e alimenta o pânico moral ante as pessoas LGBTIQ. Consequentemente, o feminismo africano se vê diante de um desafio considerável - pressionar os governos africanos a proteger os seus cidadãos contra essas perigosas influências.

Enquanto isso, a desinformação e as informações falsas que impulsionam esses movimentos exclusivistas provavelmente se agravarão, especialmente à medida que milionários liberais como Elon Musk assumem plataformas de mídia social como o Twitter. Um relatório da Mozilla publicado antes das eleições gerais do Quênia, em agosto, mostrou como grupos estrangeiros podem manipular o discurso público de um país através do Twitter. O estudo de caso do relatório foi a campanha de desinformação da CitizenGo contra a Lei de Saúde Reprodutiva do Quênia de 2020, que acabou sendo derrotada no parlamento.

O fracasso e/ou desinteresse dos proprietários das corporações de tecnologia da informação em regular o abuso das suas plataformas incentiva estas campanhas de má fé, colocando em risco as mulheres, as comunidades LGBTIQ e outras marginalizadas, como ocorre no mundo off-line.

Um relatório recente do Center for Countering Digital Hate [Centro contra o ódio digital] observou o número crescente de posts caluniosos desde que Musk assumiu o controle no Twitter.

Enquanto isso, os governos nacionais do continente estão cada vez mais intolerantes ante o discurso de grupos que os questionam. Eles aprovaram leis como a Lei sobre o uso indevido de computadores, em Uganda, e prenderam pessoas críticas, como aconteceu diversas vezes na Nigéria este ano.

Somado a estes desafios para as feministas da África está o fato de que as elites e os líderes locais se inclinam por políticas conservadoras. Nos dois anos desde que a administração Trump uniu-se a Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda para co-patrocinar a notória Declaração de Consenso de Genebra (DCG), ela ganhou novos signatários: 36 países, 17 deles na África, apoiam hoje os objetivos do DCG, que declara que "não há direito internacional ao aborto".  Estamos no final de 2022, e aparentemente o governo ganense se inclina a uma versão revisada da "lei anti-gay mais dura do mundo", que tem sido ligada aos ultra-conservadores estadunidenses.

As tendências atuais podem não significar um desastre decisivo, mas elas certamente são uma clara indicação de que as feministas africanas e seus aliados têm uma batalha difícil na guerra cultural travada pelos conservadores ocidentais.


Joy Asasira é uma defensora e estrategista de justiça de gênero, e trabalha principalmente em Uganda e no Quênia, visando o conjunto da África. Ela tem particular interesse emfeminismo, defesa, comunicação estratégica, construção de movimentos, análise e reforma jurídica e política, e desenvolvimento organizacional. Por 10 anos ela coordenou a Coalizão Nacional de Uganda para Deter a Mortalidade Materna devido ao aborto inseguro. Ela foi gerente de programa no Centro de Saúde, Direitos Humanos e Desenvolvimento (CEHURD). Em 2019 obteve o prêmio de melhor advogada de direitos humanos da Sociedade de Direito de Uganda.

Tradutoras
Graciela Kunrath Lima Cristina Cavalcanti



CONTEÚDO ORIGINAL POR PROGRESSIVE INTERNATIONAL

 

fonte: https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?lang=1&id=42113


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