Levantamento da Secretaria de Segurança mostra que esse perfil representa 77% das mulheres mortas no DF desde 2015. Especialistas sugerem adoção de mais políticas públicas com um recorte racial
Mulheres negras e pardas representam 77% das vítimas de feminicídio no Distrito Federal desde março de 2015 (confira quadro), quando o delito foi tipificado e incluído no rol de crimes hediondos do Código Penal. É o que revela um levantamento feito pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). Especialistas ouvidos pelo Correio destacam que a estatística é alarmante e mostra a necessidade de implementação de políticas públicas interseccionais, isto é, que considere diferentes recortes sociais como raça e gênero.
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Advogada e copresidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), Patrícia Guimarães explica que a mulher preta é a base da pirâmide social e, por isso, é vítima de mais preconceito, o que a torna mais vulnerável a todos os tipos de violência. "A maioria é preta, não tem conhecimento nem estrutura social. Grande parte delas nem aciona a polícia para fazer um boletim de ocorrência. Se todas as mulheres vítimas de violência doméstica recorressem à delegacia e fizessem um boletim esses dados provavelmente dobrariam", destaca.
Para a especialista, o ideal seria que o governo investisse na conscientização tanto das mulheres quanto dos homens. "A mulher preta pede socorro. Ela está na periferia, muitas vezes não sabe ler nem escrever. Ela está em uma condição que não tem tempo nem de reclamar, esperando políticas públicas que funcionam para educá-la e tirá-la daquela situação social", aponta. "Muitas vezes, essa mulher sofre violência e continua com o parceiro porque não tem dinheiro para sustentar os filhos. Nem tem conhecimento do que são todas as violências colocadas na lei Maria da Penha. Faltam conscientização, educação e projetos sociais que abracem e profissionalizem essa mulher, tirando ela da violência", complementa.
A cor do feminicídio
168 vítimas
março 2015 e junho 2023
111 pardas (66%)
18 negras (11%)
Fonte: SSP-DF
Políticas públicas
Para a secretária da Mulher do Distrito Federal, Giselle Ferreira, o caminho para acabar com a violência doméstica e o feminicídio são ações efetivas de conscientização, informação e capacitação. "Temos que mudar a mentalidade por meio de orientação. A política pública de prevenção é muito peculiar, porque não depende só das vítimas, depende da sociedade", afirmou a chefe da pasta.
Sobre as estatísticas de violência e feminicídio de mulheres pardas e pretas, Giselle acredita que "feminicídio não escolhe raça, cor e nem classe social" ."Procuramos identificar onde tem maior vulnerabilidade econômica e baixa escolaridade para atuar. Mas temos feminicídio desde o Park Way até a Ceilândia", disse.
A secretária cita duas ações do GDF que servem para acolher e dar perspectivas às vítimas de violência doméstica: a Casa da Mulher Brasileira, que é um espaço de acolhimento onde elas podem acessar serviços psicológicos e jurídicos, além de alojamento e atendimento humanizado. Há uma unidade na Ceilândia e outras quatro em construção, que serão implementadas em Sol Nascente, Recanto das Emas, São Sebastião e Sobradinho II. De acordo com Giselle, outro programa que vem sendo ampliado é o Empreende Mais Mulher, um espaço onde além do acolhimento e acompanhamento psicossocial, elas são encaminhadas para cursos de capacitação e mentoria para empreendedorismo.
Falhas na proteção
Em 2021, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o crescimento dos feminicídios na capital do país. Relatório final do deputado Fábio Félix (PSol) apontou falhas na rede de proteção às mulheres no DF. Ao Correio, o parlamentar declarou que "na época da CPI já demonstrávamos que existia uma vulnerabilidade maior das mulheres negras das periferias do DF pela ausência de aparelhos públicos que tivessem a capacidade de responder à questão com maior incidência", destacou.
"Um dos principais problemas que acabam nutrindo e mantendo o ciclo de violência é a dependência econômica, além da afetiva. São necessários núcleos de atendimentos psicossociais 24 horas, profissionais qualificados, uma Polícia Civil que atue de forma rápida e acolhedora. É preciso que a Polícia Militar faça monitoramento e proteção dessas mulheres e que haja também a garantia de benefícios sociais imediatos que não demorem nem 24 horas para estar na mão das mulheres para que a dependência econômica não perpetue esse ciclo de violência", sugere Fábio.
Caminhos possíveis
Uiara Paulista Braúna, membra da Comissão de Igualdade Racial OAB-DF, enxerga uma realidade mais opressiva às mulheres negras como fruto do poder e dinâmicas de gêneros presentes em uma sociedade patriarcal. "A violência contra mulheres negras muitas vezes é menos denunciada. Isso ocorre devido à descredibilidade de suas experiências tanto pela sociedade em geral quanto pelo sistema de justiça criminal. Um estudo realizado no Brasil conclui que as mulheres negras tendem a ter menos acesso a rede de proteção e enfrentam também resistências institucionais para denunciar", observou.
Outro fator colocado pela especialista diz respeito aos estereótipos de gênero. "Mulheres negras são frequentemente representadas como hiperssexualizadas e agressivas, o que intensifica o ciclo de violência. O feminicídio de mulheres negras está muitas vezes associado à ideia de limpeza racial, reforçando o domínio masculino branco. Pra enfrentar essa realidade é fundamental políticas públicas efetivas nas quais incluem leis mais rigorosas, capacitação de profissionais para lidar com casos envolvendo mulheres negras, além da criação de abrigos específicos para atender às necessidades", sugere.
"É essencial promover a conscientização da sociedade sobre essa interseccionalidade das opressões que matam as mulheres negras, a fim de combater estereótipos e contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária. Esse caminho requer participação ativa do Estado e engajamento de toda a sociedade", finaliza.
Agosto lilás, tempo de agir
O Palácio do Buriti ganhou iluminação especial para chamar a atenção para o aumento de crimes de feminicídios. A campanha Agosto Lilás, coordenada pela Secretaria da Mulher (SMDF), vai reunir diversos parceiros governamentais e não governamentais, ao promover palestras, caminhadas, encontros, distribuição de material informativo e ações de mobilização e diálogos para se fortalecer e consolidar, cada vez mais, como uma grande campanha da sociedade no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Palavra de especialista
Por Larissa Guedes,
especialista em ciências criminais e advogada e mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas
Nós, mulheres negras, somos direcionadas às atividades consideradas inferiores aos homens devido à "ausência" de reconhecimento intelectual, por séculos fomos igualadas a seres inanimados, não vistas como humanas.
A abolição da escravatura não afastou a instituição da hostilização e naturalização das agressões direcionadas a nós. E é por isso que sou concebida socialmente como promíscua e fácil, tendo concessão aos abusos acometidos já que nossa trajetória é composta pela hiperssexualização.
Nós, mulheres negras, experimentamos impasses que dificultam o ingresso e/ou manutenção dos seus estudos no ensino superior, sendo classificadas também como a mão de obra mais barata.
A falta de oportunidades em compor atividades que garanta maior proteção social impôs às mulheres as desvantagens do gênero, limitando a entrada e permanência no mercado de trabalho. Correlacionando o marcador de classe social com o de raça, é notória a maior participação da população negra nas faixas de pobreza. Reflitamos - qual a cor da pele da tia do cafezinho, da ascensorista do elevador, da cozinheira, faxineira, babá, balconistas e auxiliares de serviços gerais?
Mediante o histórico de exploração dessa categoria econômica denominada de subalterna, acarreta-se maior incidência de vítimas da violência de gênero, as mulheres negras e pobres, diante a multiplicidade e variação dos "estimulantes".
Ser mulher preta é vivenciar a discriminação racial além da de gênero, como fruto do processo de exclusão, o que torna explicita a nossa superexploração.
A desafiação do reconhecimento das agressões sofridas advém da corporificação da solidão da mulher negra, consistindo na dificuldade de estabelecer romanticamente relacionamentos devido à desvalorização da aparência negra e valorização exacerbada das mulheres brancas padrão.
Assim, torna-se inviável considerar o término em alguns relacionamentos, por essa mulher supostamente estar extinguindo a possibilidade de um romance com essa figura masculina. A continuidade desses relacionamentos "suportariam" o caráter violento do agressor, por existir o compartilhamento de momentos e trocas - sejam estes negativos ou positivos.
A taxa de mortalidade das mulheres negras é superior às mulheres brancas em virtude da limitação no acesso às leis Maria da Penha e do Feminicídio. A redução das suas efetividades e alcance às mulheres negras advém da deficiência de integração legislativa às configurações socioeconômicas, étnicas e raciais, que invisibilizam nossa condição de vulnerabilidade e ignoram as nossas peculiaridades sociais.