Segunda mulher a ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia fez seu début na Corte em 2006 – quando o tribunal já havia abrigado centenas de ministros em seus então 115 anos de existência. Somente isso faria dela figura histórica na República. Acontece que a ministra não é de passar batido e vai deixando suas marcas para além dos ritos da Justiça. Nestas páginas, Cármen Lúcia abre o coração para falar de si e criticar os machismos que inundam o Judiciário e o Brasil, mas ainda para se declarar ao país pelo qual cai de amores

Por Maria Rita Alonso e Natacha Cortêz, redação Marie Claire — de Brasília

 

 

Segunda mulher a ocupar uma cadeira no STF, Cármen Lúcia fez seu début na Corte em 2006 – quando o tribunal já havia abrigado centenas de ministros em seus então 115 anos de existência — Foto: DIEGO BRESANI

Segunda mulher a ocupar uma cadeira no STF, Cármen Lúcia fez seu début na Corte em 2006 – quando o tribunal já havia abrigado centenas de ministros em seus então 115 anos de existência — Foto: DIEGO BRESANI

O ano é 1983 e Cármen Lúcia, aos 29 anos, à época uma novata na Procuradoria do estado de Minas, fazia duas vezes mais plantões e três vezes mais processos que seus colegas homens. Dedicada? Sim. Obstinada e focada? Também. Apaixonada pelo direito? Com certeza, e “desde sempre”, enfatiza. Mas a razão do trabalho incansável da atual ministra do Supremo Tribunal Federal tem gênero e endereço: ser mulher no Brasil e percorrer uma carreira na Justiça é, invariavelmente, ser questionada e colocada aquém de seus pares masculinos. “Ali, entendi que fazer mais que eles não me tornava melhor, sequer me igualava aos homens, apenas me permitia continuar o caminho”, diz.

A sensação se repetiu mais do que ela pudesse prever ao longo dos últimos 40 anos. E, mesmo enquanto presidente do Supremo, se viu tendo que advertir o ministro Luiz Fux depois de ele silenciar Rosa Weber em plenário. “Eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas”, disse, com ironia. E continuou: “(...) em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o número de vezes em que são aparteadas é 18 vezes maior do que os ministros”.

Segunda mulher a ocupar uma cadeira na mais importante Corte da República – entrou em 2006, depois da primeira, Ellen Gracie, em 2000 –, Cármen é reconhecida por suas análises equilibradas e por uma postura acessível ao público. Não é avessa a entrevistas como Rosa Weber, mas também não chega perto do estilo “mais independente” de Alexandre de Morais. Tem fama de ser uma seguidora dos ritos da Justiça e, para além do STF, de viver uma verdadeira ode ao próprio país. “Adoro o Brasil. E morro por este país. Mesmo”, diz, sem pestanejar.

Filha de um dono de posto de gasolina e de uma professora que se tornou dona de casa para se dedicar à criação dos sete filhos, Cármen Lúcia nasceu em Montes Claros, interior de Minas Gerais, e cresceu na pequena Espinosa, na mesma região. Nesta entrevista, em que fala longamente sobre sua família, também conta de hobbies e cita Clarice LispectorCarlos Drummond de Andrade e Alcione (como não lembrar do viral em que solta a voz do lado da cantora, que é retomado a cada voto emblemático de Cármen?).

No mais, a ministra comenta a importância de uma mulher negra entre os 11 ministros do Supremo – pauta que ganha força entre os movimentos sociais conforme a aposentadoria de Rosa Weber, no final de setembro, se aproxima –, fala da regulamentação que a Inteligência Artificial precisa passar antes de avançar ainda mais, da ADPF442, que tem Rosa Weber como relatora, e coloca em pauta a descriminalização do aborto, antes de entregar que Anitta e Ludmilla fazem parte da trilha sonora de sua casa. Por essa alguém aqui esperava?

MARIE CLAIRE A senhora foi a primeira ministra a usar calça durante uma sessão plenária, em 2007 (a peça foi liberada às mulheres em maio de 2000). O que isso diz sobre o Judiciário brasileiro?
CÁRMEN LÚCIA 
O Judiciário é majoritariamente machista, isso não é novidade. Mas sabe que esse episódio que vocês citam aconteceu porque uma colega de vocês, jornalista, chegou me dizendo que tinha sido barrada no STF por usar calça. E veio pedir se eu podia conversar com os ministros para que as jornalistas pudessem usar calça. Respondi: “Não vou falar, mas amanhã verão o que farei”. E fui vestindo calça comprida.

Cármen Lúcia abre o coração para falar de si e criticar os machismos que inundam o Judiciário e o Brasil — Foto: DIEGO BRESANI

Cármen Lúcia abre o coração para falar de si e criticar os machismos que inundam o Judiciário e o Brasil — Foto: DIEGO BRESANI

MC Podia ter feito apenas uma fala e decidiu vestir a calça. O que isso diz sobre a senhora?
CL 
Acho que precisa que a gente esteja junto. Se é difícil para elas, e tenho um espaço para mudar isso, faço. Depois, o gesto é sempre mais importante do que a retórica. E, segundo, talvez isso tenha sido também uma mudança que já se nota, as mulheres estão mais em concertação com si. Quando uma pode fazer uma coisa, também posso.

MC Há uma história de que a mãe da senhora dizia que as filhas só podiam se casar quando se formassem. Até porque ela própria acabou largando o trabalho quando se tornou mãe. Isso foi um definidor de destino para a senhora?
CL 
Nunca pensei nisso assim. Fato é que minha mãe se arrependeu a vida inteira por fazer isso. Então nos dizia: “Nunca dependam de ninguém, muito menos de homem”. E tem outra coisa: sou caseira, de ficar muito em casa. Ser obrigada a sair, conviver, mudar de roupa é bom. É aquilo da Clarice Lispector: “Chaleira fervendo é que levanta a tampa”. E acho que, realmente, ter essa independência ajuda a gente a se dar o respeito e se respeitar. O preconceito, às vezes, não passa nem pela palavra, passa pelo olhar. Quando eu era mais nova, tinha o olhar reprovador. Havia, ainda, ao meu ver, um preconceito raivoso.

MC Misoginia?
CL 
Misoginia, claro.

MC A senhora é ministra do Supremo desde 2006 e teve como companheiras de Corte apenas duas mulheres até agora: Ellen Gracie e Rosa Weber. Qual é a diferença de atuar ali tendo mulheres no espaço?
CL
 A diferença é mais de olhar. Sentença tem o mesmo radical de “sentir”. O direito é razão para que, numa sociedade, a emoção não transborde. Acho que o sentir a vida é que é diferente, entre os homens e as mulheres. Mas no fim, num colegiado, esses olhares juntos é que dão o sentido que a sociedade dá às coisas. Agora, se ter mulheres muda a rotina do STF? Imagino que tenha mudado mais quando a ministra Ellen entrou, porque havia preconceito mesmo, a tal ponto de a gente escutar que não dava para vir mulher para cá. Chegou uma autoridade da República, na ocasião, a dizer que não tinha banheiro para mulher aqui. E a dona Ruth Cardoso me contou que, quando chegou isso a ela, pediu ao presidente Fernando Henrique que conversasse com o ministro Nelson Jobim e pedisse “faça um banheiro”.

MC Não existir um banheiro feminino é como um atestado de que não existem as mulheres ali.
CL 
É um: “Neste ambiente vocês não cabem”. Me lembro que meu concurso da Procuradoria para o estado de Minas – entrei em 1983 –, na banca examinadora da prova oral, ouvi: “Pois é, estou olhando aqui e você fez boas provas”. “Se você for muito melhor, você entra. Igual a um homem, a gente prefere homem.” Isso te abala. Outra vez, olharam a minha ficha e perguntaram: “‘Cármen’ igual a cigana do [compositor francês Georges] Bizet?” Falei: “Não, a cigana do Bizet era uma mulher que sabia conquistar homens. Aqui tem que saber conquistar direitos”. Hoje, ninguém falaria isso em uma banca – espero, ao menos. Mas não sei se nenhum pensaria. É essa a minha tristeza.

MC O jornal O Globo publicou que antes de se aposentar Rosa Weber deve pautar a ADPF442, que defende a descriminalização da interrupção da gravidez com consentimento da gestante até a 12ª semana de gestação. Qual é o posicionamento da senhora quanto ao tema?
CL
 Esse é um tema da maior importância para o Brasil. Como foi judicializado, o Supremo uma hora tem um encontro marcado com ele. E acho importante a gente não ter preconceitos sobre o assunto. Não é possível que com essa sensibilidade e com uma centralidade para as mulheres no mundo inteiro a descriminalização do aborto não possa ser sequer discutida. Existe um pedido para se interpretar uma norma, nós vamos dizer se essa interpretação é constitucional ou não. No fundo, é só isso. E não elimina que o Congresso possa discutir o assunto ou deva, e principalmente que a sociedade, homens e mulheres, o discutam.

MC Na ocasião da votação que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, um vídeo de 2018 da senhora cantando ao lado de Alcione, Raquel Dodge e Luiza Trajano voltou a rodar a internet. Pode falar sobre sua relação com a música? O que ouve? Gosta de cantar?
CL 
Para mim, a vida não existe sem música e literatura. A música inspira, a literatura transforma. E sou de uma família de gente que gosta muito de música. Tem cantoria o tempo todo na família. O papai, até antes de morrer, ainda tocava o bandolim. Tenho irmãos que tocam violão e agora dois sobrinhos que têm banda. Na semana passada, um falou: “Tia, você vai para Brasília e não vai na estreia do nosso show?”

MC E a senhora pode ir num show? Qual é o peso da toga na sua vida pessoal?
CL 
Claro. Ah, tenho que ter mais compostura e restrição do que o normal. Mas vou a show, vou ao cinema. Teve a exposição do Portinari agora em Belo Horizonte, não deixei de ir. O limite é meio que... Não vou cantar num show [risos]. Mas, enfim, vida sem música não dá. Ontem recebi uma canção da Mariana Brandt, uma coisa linda de artistas novinhos lá de Minas. Gosto desses novos. Tem gente nova fazendo coisa boa. Uma Anitta, uma Ludmilla.

MC Ouve a Anitta e Ludmilla?
CL
 Ouço tudo isso, minha filha. Fico apaixonada pelo Emicida, o acho maravilhoso. O Brasil tem alegria na música. E, mesmo na literatura, tem muita gente nova e boa. Fui recentemente à Feira Literária de Araxá, e que lindeza... Airton Souza, Itamar [Vieira Jr.], Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz.

MC Como lida com a tecnologia no seu dia a dia? Como todos nós, também é uma refém das telas?
CL 
Não sou não. E veja, não há tela melhor, seja de computador, de celular, que substitua o olhar humano. Me preocupo porque cresci ouvindo minha mãe dizer: “Fala baixo que as paredes têm ouvidos”. Agora falo com os meus sobrinhos: “Fala alto que os ouvidos têm paredes”. Como sou só tia, posso ser chata e falar: “Na mesa não se usa celular”.

MC Estamos assistindo à ascensão rápida da Inteligência Artificial. Fomos surpreendidos pelo ChatGPT e por sua capacidade não só de reproduzir, como de elaborar o pensamento e a produção humana. Essa discussão deve chegar na Corte? Tipo um Marco Civil 2.0?
CL
 Passa logo para o 4.0, faltam dois aí [risos]. Claro que precisa de regulamentação. Como vejo isso: no discurso final do Charles Chaplin em 1926, no Tempos Modernos, ele diz: “Não vamos deixar as máquinas dominarem, não vamos deixar que tomem a nossa humanidade”. Para mim, é o mesmo alerta hoje. As máquinas são criações do ser humano para melhorar a sua vida. Não podemos nos deixar converter em criaturas dessas criações, que não têm alma, não têm o sentido de humanidade.

MC Mais de 100 entidades assinaram um manifesto entregue à presidência dizendo que “Não há razoabilidade para que jamais uma jurista negra tenha tido assento no STF”. Mas o presidente Lula ignorou a demanda e indicou o advogado Cristiano Zanin para a vaga de Ricardo Lewandowski. Ou seja, sai um homem branco, entra outro no lugar. Rosa Weber deve deixar a Corte em setembro. Qual é o posicionamento da senhora sobre quem a substituirá?
CL
 Como cidadã, acho uma coisa luxuosa, maravilhosa e necessária uma mulher negra no STF. Numa sociedade em que a maioria é negra, e que essa maioria tem uma história tão torturante, tão injusta e sofrida, é realmente imprescindível. E acho que haverá de chegar a hora. Haverá de chegar, não, talvez já tenha passado muito da hora de ter [uma mulher negra]. Você vê que vem desde muito o preconceito cortando vidas profissionais que poderiam trazer um enorme benefício para a sociedade brasileira. E temos juízas e desembargadoras negras competentíssimas. Não há, portanto, razão para que não haja uma mulher negra no STF.

MC A senhora deve ouvir muitas histórias de quem quer seguir seus passos. Alguma te marcou?
CL 
Outro dia, uma das servidoras disse: “Ministra, tenho uma filha que quer ser igual à senhora”. Falei: “Nem pense. Olha, fala com ela que luto a minha vida inteira para ter democracia e tenho que continuar lutando todo dia. Fala pra ela que, como diria Darcy Ribeiro, eu sou um fracasso. Arruma outra para ela imitar”. Dias depois, a mãe falou: “Ministra, falei com a minha filha que a senhora é um fracasso, que ela escolhesse esse outro para imitar, mas ela disse que quer ser um fracasso como a senhora”. O Brasil tem jeito [risos].

MC Tem uma fala da senhora sobre as mudanças do lugar da mulher na sociedade brasileira. Nela, diz que estamos enfrentando retrocessos. Que tipo de retrocesso enxerga como mais graves?
CL
 Infelizmente, caminho para a velhice vendo que muitas pessoas que eu achava que tinham entendido que somos iguais acham que somos apenas parecidas. Querem equiparar mulheres a homens. Bom, só se equipara o que não é igual. Todo dia preciso provar que sou humana. Estamos aqui, somos iguais na nossa identidade humana e diferentes na nossa condição única. Carlos Drummond de Andrade tem um poema, “Iguais Desiguais”, que ele fala “Todas as guerras são iguais/Todos os amores são iguais/Todas as brigas são iguais/Iguais, iguais, iguais/ E, no entanto, cada ser humano é único”.

MC Os últimos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que os índices de feminicídio, tentativas de homicídio, e todos os indicadores de violência doméstica, como agressões físicas, ameaças e chamados ao 190, aumentaram. O que explica, em pleno 2023, o crescimento das violências de gênero?
CL
 Estamos numa pandemia de feminicídio porque “resolveram que querem se igualar, então vamos matar”. Há uma raiva. E muitos dos feminicídios são planejados. Vocês noticiam com frequência “tinha uma medida protetiva”.

MC Não tem a ver com o aumento na notificação?
CL 
Não, pode ter aumentado a notificação, mas aumentou o crime. Uma mulher morta a cada seis horas, como nós temos no Brasil, é uma situação absolutamente anormal. O assassino, especialmente o do feminicídio, é mais do que covarde. É um medroso, tem medo da mulher. Se sente ameaçado porque a mulher quer sair, quer trabalhar. Ele mata psicologicamente primeiro, cerceia fisicamente e, na sequência, mata. E com crueldade. Não é incomum matar e depois pôr fogo no rosto da mulher.

MC E da campanha da Justiça pela Pazem Casa, pode nos falar mais dela?
CL
 Em 2014 comecei, e institucionalizei em 2018. Fazemos nos meses de março, agosto e novembro – março porque é Dia Internacional da Mulher, agosto porque temos o aniversário da Lei Maria da Penha e em novembro a ONU proclama o Dia Internacional contra Todas as Formas de Discriminação. Nessas três semanas, convidei os juízes estaduais a darem ênfase [nesse tipo de caso]. Tem uma espécie de mutirão, mas os juízes todos, todos mesmo, dão prioridade ao julgamento dos casos de violência contra a mulher. Havia lugares que tinha 15, 18 anos que não havia um júri. E chama Justiça pela Paz em Casa porque a guerra ou a paz começa dentro de casa. O menino que viu a mãe ser violentada, ou passa a ter medo ou replica isso. Eu escutava em casa, quando era menina: “Bom filho, bom marido”. Hoje sei o que significa.

MC A senhora cresceu e estudou em colégio interno. Quais são suas lembranças dessa época?
CL 
Não fui feliz, de jeito nenhum, no colégio de freiras. Era infeliz mesmo. Meus irmãos foram para os Maristas, e nós fomos para o [Colégio] Sacré-Coeur [de Jésus], eu e a Luísa. A única coisa que era enorme alegria e que lembro com detalhe era a biblioteca. Fernando Pessoa, sei tudo de cor. Sei Os Lusíadas de cor.

MC O que não deixa de fazer na sua rotina? Algo que faz parte do seu equilíbrio, por exemplo. Faz exercício físico?
CL 
Tenho um moço que vai lá em casa duas vezes por semana e me ajuda. Quando chega, tenho vontade de dar um tapa. Quando sai, tenho vontade de dar um beijo. Hoje ele estava num entusiasmo e eram 5h30 da manhã.

MC A senhora fica entre Brasília e Belo Horizonte? Duas casas?
CL
 Duas casas.

MC E vive sozinha? Tem pet, cachorro, gato?
CL
 Sozinha. Não tenho, não. Como sempre digo, cachorro, só com mais de 50 anos e não pode ser bravo.

 

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