Mulheres testemunharam de perto o golpe que, há exatos 50 anos, mergulhou o país em uma ditadura que durou quase 17 anos e matou ao menos 3,2 mil pessoas

 

Moy de Tohá, em foto recente: "Ele acabou torturado em mais três locais e entregaram o meu marido morto" - (crédito: Arquivo Pessoal)
Foto de perfil do autor(a) Rodrigo Craveiro
Rodrigo Craveiro
postado em 11/09/2023 06:00 / Correio Braziliense
 

Naquele 11 de setembro de 1973, José Tohá, ex-ministro da Defesa de Salvador Allende, despertou em algum momento entre 6h30 e 7h. O telefone vermelho, usado pelo presidente para se comunicar com os assessores, tocou na residência dos Tohá, um apartamento de primeiro andar no bairro de Las Condes, em Santiago do Chile. "José Tohá levantou da cama com um pulo e me disse: 'Vou lutar'. Eu lhe perguntei: 'Onde você vai uma hora dessas?'. Esperei que ele saísse do banho. José contou-me que havia algum problema com um grupo de militares no centro da capital", contou ao Correio Moy de Tohá, 87 anos, viúva de José. Em um primeiro momento, ela não se preocupou e imaginou que fosse algo passageiro. "Pensei que Pinochet fosse colocar ordem naquilo. Não foi o que ocorreu. Fui me vestir, quando o telefone tocou novamente", lembra. Do outro lado da linha, estava Salvador Allende. 

"José tinha partido rumo ao Palácio de La Moneda. Allende me disse: 'Moy, vou lhe pedir um favor, mas enorme. Vá voando para Tomás Moro (a casa do presidente) e impeça a todo o custo que Hortensia (a primeira-dama) venha ao La Moneda", relatou Moy, que era muito amiga da esposa de Allende. De acordo com ela, Hortensia Bussi tinha ido ao palácio, em 29 de junho de 1973, durante o Tanquetazo — uma tentativa de golpe de Estado fracassada contra o governo socialista de Allende. "Salvador se deu conta que a situação seria mais complicada e quis impedir que Hortensia fosse até lá", disse. O Tanquetazo levou José a renunciar ao cargo de ministro da Defesa, o qual ocupava desde 28 de janeiro de 1972.

Por volta das 11h, Moy ligou a televisão. "Vi o bombardeio ao La Moneda e acompanhei o último discurso de Allende. Telefonei para Hortensia e lhe pedi, por favor, que não saísse de Tomás Moro. Ela me respondeu que acabara de entrar no carro", afirmou. Os golpistas tinham acabado de lançar a primeira bomba contra a residência do presidente. "Hortensia saiu às pressas e se dirigiu à casa de Felipe Herrera, então presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Comecei a me comunicar com o Ministério da Defesa, telefonando de minha casa. Eu conhecia todo o corpo de generais. Queria ter notícias sobre José. Mas, depois do bombardeio, perdeu-se a comunicação com La Moneda", acrescentou.

O general César Benavides atendeu à ligação e pediu que Moy ficasse tranquila, pois José tinha sido visto saindo da chancelaria, na parte de trás do palácio, e atravessou o pátio para entregar-se no Ministério da Defesa. Ele foi detido e levado à Escola Militar, também em Las Condes. "Voltei a me comunicar com Benavides. Ele me disse que as pessoas que tinham sido presas em La Moneda estariam soltas na manhã seguinte. Era mentira. Pude apenas mandar uma escova de dentes para José e outras coisas pequenas", comentou Moy.

Ajuda dos EUA

Ela soube pela Cruz Vermelha Internacional que o marido estava detido na Ilha Dawson e sofria de desnutrição aguda. Enviado a um hospital de Punta Arenas, José foi torturado e o mandaram de volta à ilha. "Ele acabou torturado em mais três locais e entregaram o meu marido morto, depois que tive uma conversa longa com Pinochet em seu gabinete, em 15 de março de 1974", disse a viúva. "Eles me ligaram em casa e disseram que eu fosse ao Hospital Militar para retirar o cadáver."

Moy reforça que o golpe militar foi planejado nos Estados Unidos. "A CIA (Agência Central de Inteligência) reconheceu sua intervenção no Chile. Ela o fez à sombra de um personagem sinistro de Agustin Edwards, dono do jornal El Mercurio. Os civis da direita e empresários chilenos se uniram a alguns generais do Exército e conspiraram para o golpe", explicou.

A viúva de José Tohá se sente traída por Pinochet, com quem manteve uma relação próxima antes do golpe. "O Augusto Pinochet que conheci nada tinha a ver com o Augusto Pinochet que acabou sendo ditador. Era um homem tímido, inseguro, muito pouco culto e com uma linguagem um pouco limitada. Demonstrava muita lealdade ao presidente Allende, ao governo e ao meu marido, que era seu chefe direto. Pinochet era um ser bastante opaco e de muito pouca personalidade. Jamais imaginava que ele seria capaz de liderar um golpe. Pinochet não tinha capacidade para negociar nada." Depois da manifestação das esposas dos generais contra o então comandante-em-chefe, Carlos Prats, Pinochet assumiu o posto. Até derrubar Allende. 

 

Marisa Matamala: ex-dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR) em Coquimbo
Marisa Matamala:"Eles me davam golpes em todo o corpo"(foto: Arquivo pessoal)

Torturas físicas e cicatrizes profundas na alma

Quando a informação sobre os estertores dos preparativos para o golpe chegaram à região de Coquimbo, no centro-oeste do Chile, 460km a noroeste de Santiago, Marisa Matamala, então com 33 anos, sabia tudo o que precisaria fazer. Médica lotada na direção zonal de saúde da comuna de La Serena, era uma das principais dirigentes do Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR). Às 6h de 11 de setembro de 1973, ela escutou na rádio que os homens da Marinha estavam em Valparaíso planejando a tomada de poder.

"Eu me comuniquei com outro companheiro para que nos preparássemos para o que tínhamos previsto. Tive que ir ao meu trabalho, pois estava combinado que tomaríamos uma decisão, caso o golpe ocorresse", conta ao Correio. "Esperamos e começamos toda a coordenação com os trabalhadores dos bairros industriais. Todos queriam defender seus postos de trabalho. O que chegava de Santiago era a recomendação para mantermos a calma e não enfrentarmos os militares. Foi difícil saber como deveríamos atuar. O povo tinha o desejo de defender o governo de Allende. Escutar o último discurso de Allende foi um momento muito importante. Isso permitiu que as pessoas compreendessem a magnitude dos eventos."

Em seu pronunciamento, pouco antes de se matar, Allende afirmou: "Esta será, seguramente, a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês". "A Força Aérea bombardeou as torres da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção, e serão elas o castigo moral para os que traíram o juramento que fizeram", disse o presidente. "Só tenho a dizer aos trabalhadores: não renunciarei! Pagarei com a vida pela fidelidade do povo." E encerrou assim: "Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Estou certo de que, pelo menos, haverá uma lição moral que punirá o crime, a covardia e a traição."

Marisa e os demais militares do MIR ficaram tocados com o discurso de Allende. Ela lembra que todas as pessoas queriam fazer o que sonhavam, defender o governo de Allende. "O bombardeio de La Moneda e o pronunciamento do presidente foram o que mais nos impressionou. Vivemos aquele dia com profunda emoção. Tínhamos de fazer o que era preciso e seguir adiante. Foi uma descoberta. Nos momentos de maior tensão, a emoção não nos permitia nem sequer chorar", confidencia. Com a imposição do toque de recolher, Marisa e os colegas de movimento tiveram que buscar refúgio nas chamadas "casas de segurança" — abrigos preparados para aquele dia. "Tivemos que abandonar nossos carros ou escondê-los em outros imóveis. Vieram os abraços de despedida com todas as pessoas com quem encontrávamos, pois não sabíamos o que iria passar, se estaríamos vivos ou mortos no dia seguinte. Cada abraço era como uma conspiração, como se disséssemos 'Aqui estamos e seguiremos lutando'. Sempre terminávamos com a frase 'Sorte, companheiro!"

Ela e dois outros diretores do MIR se refugiaram em um casa de segurança. "O mais impressionante foi a decisão do povo de lutar e defender seu governo. Foi algo incrível e grandioso. O bombardeio a La Moneda foi o ato mais bárbaro que poderíamos imaginar", desabafou Marisa. No mesmo dia do golpe, ela passou para a clandestinidade e assim permaneceu até 5 de fevereiro de 1975. "Fui presa e levada, com outro companheiro, à Villa Grimaldi, onde fiquei 15 dias sendo torturada. Vi companheiros morrerem. Dividi uma cela muito pequena com outra companheira, Carmen Díaz Darricarrere, em que uma precisava ficar deitada e outra sentada. Um dia, os militares tiraram Carmen dali e disseram-lhe que seria levada a Puerto Montt. Depois, soubemos que Puerto Montt era o código que usavam para designar prisioneiros e prisioneiras que seriam lançados ao mar", lembra. Marisa foi levada ao campo de detenção Cuatro Álamos, onde teve os ferimentos tratados, antes de ser levada aos campos de concentração de Tres Álamos e de Pirque. Em outubro de 1977, exilou-se na Suécia.

Em Villa Grimaldi, a médica foi submetida a torturas sistemáticas. "Eles me davam golpes em todo o corpo. Ficava amarrada a uma cadeira, que caía. Recebia chutes e era colocada em uma cama metálica, onde aplicavam choques elétricos em todo o corpo. Introduziam eletrodos em minha vagina, além das mãos deles. Tocavam uma música estridente, que, no meu caso, foi o Concierto de Aranjuez. Nunca soube o motivo. Golpeavam meus ouvidos, fazendo-os estalar", relatou. A tortura física se somava à psicológica. Por várias vezes, Marisa foi tirada da cela e levada um pátio, com dois outros prisioneiro, para fuzilamentos falsos. "Gritavam 'Disparem!'. "Tínhamos os olhos vendados o tempo todo. Aprendemos a olhar levantando muito a cabeça e enxergando para baixo. No caso dos fuzilamentos, colocavam em nós um capuz grande, davam a ordem de disparo e depois reagiam com gargalhadas."

 

  • Moy de Tohá, em foto recente:
    Moy de Tohá, em foto recente: "Ele acabou torturado em mais três locais e entregaram o meu marido morto"Foto: Arquivo Pessoal

     

50 anos do golpe no Chile

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

  Publicado: 06/09/2023
 
 
Bombardeio ao Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973; no detalhe, Salvador Allende – Foto: Biblioteca del Congreso Nacional / CC BY 3.0 cl / Wikimedia

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Por Ester Gammardella Rizzi*

Em 11 de setembro de 1973, há cinquenta anos, o Palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, foi cercado por forças militares. O prédio foi bombardeado, invadido e Salvador Allende morreria antes de acabar o dia. Os militares tomaram o poder e Augusto Pinochet iniciou a ditadura que duraria até 1990.

Em 2023, revelou-se um áudio de 1974 em que Orlando Letelier, chanceler chileno do governo Allende, relata um almoço com o presidente no dia anterior ao golpe. Nesse almoço, Letelier e Allende discutiram a aposentadoria de um grupo de generais militares que ameaçava se insurgir contra o governo e o anúncio de um plebiscito sobre uma nova Constituição para o Chile.  

O áudio reforça a interpretação de que o golpe, que estava em preparação há meses, pode ter sido antecipado ou definido para o dia 11 de setembro para impedir que o anúncio político de Allende sobre uma possível nova Constituição fosse realizado. 

O texto que seria submetido ao plebiscito (veja aqui a proposta elaborada) havia sido elaborado pela Unidade Popular, grupo político de Allende. Constituição e plebiscito faziam parte do que se convencionou chamar de “via chilena ao socialismo”, um socialismo que seria construído respeitando instituições e ritos democráticos.  

Anos mais tarde, em 1980, Pinochet promulgou uma nova Constituição Chilena, em que o regime autoritário estabelecia suas bases. Jaime Guzmán, então senador, foi um dos responsáveis por elaborar uma Constituição que praticamente eliminava a responsabilidade do Estado na promoção de direitos sociais e igualdade social. Além disso, essa mesma Constituição possuía diversos mecanismos de autodefesa, tornando muito difícil transformar as linhas políticas essenciais nela definidas. 

Em 5 de outubro de 1988, Pinochet perdeu um plebiscito que decidiria se ele poderia ou não continuar como presidente da República. A cédula de votação era extremamente simples. Como cabeçalho, apenas “Plebiscito Presidente de la República”. Logo abaixo estava o nome “Augusto Pinochet Ugarte” e, em seguida, duas opções “Sí” ou “No”.  Um total de 3.119.110 eleitores, ou 44% dos votos válidos, responderam “Sí” ao Pinochet. Já 3.967.569 eleitores, ou 55,9% dos votos válidos, responderam “No”. Desde o plebiscito até 1990, o Chile viveu uma transição democrática, sem que para isso fosse elaborada uma nova Constituição. Naquele exato mesmo dia, 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães promulgava a Constituição Brasileira de 1988 e marcava definitivamente o fim da ditadura brasileira. Foi um dia importante para a democracia na América Latina. 

O Chile é, neste 2023, um país democrático com uma Constituição elaborada na época da ditadura. A “Constituição do Pinochet” é considerada uma das causas das mazelas sociais que, a despeito do crescimento econômico das últimas décadas, são amplamente percebidas pela população chilena. Mazelas sociais essas que produziram, em outubro e novembro de 2019, um levante popular de grandes proporções, conhecido como “estallido social”. A saída institucional para o levante de proporções revolucionárias foi prometer a elaboração de uma nova Constituição.  Assim, em 25 de outubro de 2020 a população chilena participou de um novo plebiscito. Para a pergunta “¿Quiere usted una Nueva Constitución?”, 78% dos eleitores chilenos responderam “apruebo” e apenas 22% responderam “rechazo”.  Desde então, o Chile realizou, entre julho de 2021 e julho de 2022, a Convenção Constitucional que produziu um texto rejeitado por mais de 60% dos votantes em 4 de setembro de 2022. Fracassada a primeira tentativa, em dezembro de 2022 um novo itinerário constituinte foi proposto, previsto para se encerrar em um plebiscito ratificatório em 17 de dezembro deste ano.

A história chilena recente, assim, está intrinsecamente ligada à história constitucional do Chile. 

Os 50 anos do golpe de 11 de setembro de 1973 nos fazem lembrar dos “quase 4 mil chilenos mortos e desaparecidos e 38 mil presos e torturados” (fonte neste link) de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Nos fazem lembrar também que o Brasil faz parte da América Latina. Significativo o dia 5 de outubro de 1988 na história de Brasil e Chile. Significativas as datas próximas das ditaduras na América do Sul: Paraguai (1954-1989); Brasil (1964-1985); Argentina (1966-1973); Peru (1968-1980); Uruguai (1973-1985); Chile (1973-1990). Significativo o movimento de fragilização política e discursiva da democracia como valor por que passa toda a região neste exato momento. 

O Brasil faz parte da América Latina e da América do Sul. Embora o português pareça nos afastar dos fronteiriços países hispano-hablantes, é sempre importante estudar, acompanhar, entender a história dos países da região porque ela nos é próxima e nos diz profundamente respeito. 

Assim, neste 11 de setembro de 2023 envio nossas saudações democráticas desde o Brasil a todas e todos os chilenas/os, que aproveitarão os atos relacionados aos 50 anos do golpe militar para fortalecer a democracia chilena nestes tempos difíceis.

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*Ester Gammardella Rizzi acompanhou, no Chile, parte dos trabalhos da Convenção Constitucional encerrada em 4 de julho de 2022, cujo texto foi rejeitado em plebiscito por 62% da população. É professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH) e doutora (2016), mestre (2011) e bacharel (2007) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É assessora da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP.

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Ouça no link abaixo o boletim Dica Cultural, da Rádio USP (93,7 MHz), sobre o diretor de teatro, cantor, compositor, professor e poeta chileno Victor Jara (1932-1973) – um dos mais emblemáticos opositores do ditador Augusto Pinochet -, assassinado pelo regime militar do Chile no dia 16 de setembro de 1973, cinco dias após o golpe de Estado que tirou do poder o presidente Salvador Allende.

A produção e apresentação são da jornalista Heloisa Granito.

Tocador de áudio
 

 

fonte: https://jornal.usp.br/atualidades/50-anos-do-golpe-no-chile/

 

Canções por justiça: o movimento musical atacado pela ditadura chilena

Engajamento político, morte e resistência marcaram vidas dos artistas


Publicado em 11/09/2023 - 07:06 Por Rafael Cardoso - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

O golpe militar havia chegado apenas ao segundo dia, quando o professor e músico Víctor Jara foi levado para o Estádio Chile. Soldados esmagaram as mãos dele com coronhadas de fuzis, o mataram com 40 tiros e abandonaram o corpo em uma favela de Santiago. Com violência e sadismo, colocavam em prática o projeto de destruir a vida e a memória dos inimigos do regime. 

Víctor era um dos nomes mais conhecidos de uma geração de artistas chilenos que viam a música como meio de transformação política e social nos anos 1960 e 1970. Com letras críticas à exploração dos trabalhadores e esperançosas sobre um futuro socialista, o movimento ficou conhecido como Nueva Canción Chilena (Nova Canção Chilena). 

Chile-50 anos do Golpe - Canções por justiça: o movimento musical atacado pela ditadura chilena. Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Víctor Jara era um dos artistas chilenos que cantava contra a ditadura de Pinochet. Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Os militares subestimaram o poder das canções e mensagens que o movimento transmitia. Em 2019, durante os maiores protestos que o Chile viveu desde o regime militar, milhões de pessoas saíram às ruas para exigir reformas sociais. E o legado da Nueva Canción ressurgiu com mais intensidade. Vários cartazes traziam em destaque o rosto de Víctor Jara. E uma música composta por ele se tornou o hino das multidões: El derecho de vivir em paz (O direito de viver em paz). 

Desde 2003, o Estádio Chile foi batizado com nome do músico e se transformou em um espaço de memória dos crimes cometidos pela ditadura. Também se tornou um lugar de encontro para aqueles que cobram justiça. Durante toda a segunda quinzena de setembro, está programado um festival de arte para lembrar os 50 anos do golpe e o papel da cultura na resistência ao regime. 

“A herança de Víctor Jara, Violeta Parra e tantos outros artistas segue presente na nossa sociedade e na América Latina. As novas gerações de artistas têm incorporado esse legado nas suas inspirações e criações”, disse Cristián Galaz em entrevista à Agência Brasil.

Ele é diretor executivo da Fundación Víctor Jara, que organiza o festival. 

No Brasil, também está sendo preparado um evento musical de memória e reflexão sobre a data. O Mil Guitarras Para Víctor Jara acontece no dia 30 de setembro em São Paulo, no galpão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), bairro dos Campos Elíseos. Um dos organizadores é o grupo EntreLatinos, que tem repertório focado no canto popular latino-americano. 

“Víctor Jara representa muito para nós. Ele era um artista envolvido em diversas linguagens, nutria um profundo amor pelo seu povo, por sua terra e pela cultura popular. Não só do Chile, mas de toda a América Latina. O trabalho cultural que ele desenvolveu, visando sempre a transformação social e a valorização da nossa cultura é um legado que tentamos seguir, assim como o legado da Nueva Canción Chilena. Víctor deu sua vida por isso e não podemos deixar cair no esquecimento o quanto isso custou a ele e a milhões de pessoas no nosso continente”, disse Francisco Prandi, integrante do EntreLatinos. 

Origens do Nueva Canción 

As origens do movimento Nueva Canción Chilena podem ser traçadas a partir da vida e do trabalho de Violeta Parra. Na década de 1960, a artista plástica e cantora interpretava músicas folclóricas e as adaptava para incluir críticas sociais. Um modelo que inspiraria outros músicos. Os filhos dela também tiveram papel importante. Isabel e Ángel Parra criaram a Peña de Los Parra, uma espécie de casa noturna para artistas mais ligados ao gênero musical impulsionado por Violeta, que passou a ser frequentada principalmente por jovens e intelectuais de esquerda. 

Outro marco foi o movimento de reforma universitária no Chile em 1967, que ocorreu em diferentes instituições educacionais do país, em busca da democratização do ensino. Nesse contexto, muitos vão entender a música como meio de intervenção política na sociedade. Víctor Jara – que era professor universitário de teatro, cantor e compositor – apoiou a reforma. Estudantes também criaram grupos musicais amadores, com destaque para o Quilapayún e o Inti-Illimani. 

Chile-50 anos do Golpe - Canções por justiça: o movimento musical atacado pela ditadura chilena. Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Violeta Parra deixou legado de ativismo político por meio da música. Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Eles inovaram no uso de instrumentos musicais e em tocar gêneros de diferentes países da América Latina. Antes, a maioria dos intérpretes de canções folclóricas tinha abordagem mais nacionalista, voltada para a cultura do Vale Central, região de Santiago e arredores. Muitos dos novos músicos eram filiados ou próximos aos partidos de esquerda, principalmente o Partido Comunista do Chile, o que refletia diretamente nos temas e nas letras das músicas. 

“As canções nesse contexto trazem muitas questões sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo, sobre a situação dos mineiros. A mineração no Chile já era muito importante, principalmente de cobre e de carvão. Também havia músicas que falavam dos camponeses e a exploração dos patrões”, explica a historiadora Natália Ayo Schmiedecke.

“E existiam ainda manifestações relacionadas às tradições indígenas. Independentemente dos problemas que esses músicos abordassem, entendiam que o simples fato de resgatar canções de origem quéchua ou aymará já era uma maneira válida de se opor ao imperialismo estadunidense”. 

Ideal socialista 

Violeta Parra morreu em 1967, mas deixou como legado o ativismo político musical. Nas eleições presidenciais de 1970, muitos artistas entenderam que era preciso se posicionar e trabalhar diretamente nas campanhas. Entre os que se colocaram ao lado do socialista Salvador Allende, estavam Victor Jara, Isabel e Ángel Parra, Sergio Ortega, e os conjuntos Quilapayún, Inti-Illimani e Aparcoa. Eles participaram de comícios e gravaram canções em defesa da candidatura, que foi construída em cima do lema “Não há revolução sem canções”. 

Nesse contexto, os músicos que se identificavam com o projeto político da Unidade Popular passaram a ser identificados pelo termo “Nova Canção Chilena”. Em comum, compunham e interpretavam canções que expressavam a esperança de novos tempos por meio do socialismo. O nome já havia sido usado como título de um festival de 1969, mas passou a designar um movimento político bem definido durante a campanha e o governo de Allende. 

Com a vitória nas urnas, eles continuaram apoiando o governo por meio de novas composições, eventos e até em cargos públicos. Isabel Parra, Víctor Jara, Inti-Illimani e Quilapayún foram nomeados Embaixadores Culturais do Governo Popular. Em 1971, passaram a integrar uma secretaria da Universidad Técnica del Estado (UTE) e ganhar salários para realizar apresentações durante o ano. Uma canção bem representativa desse momento é Manifiesto, de Víctor Jara. Ele defendia a música politicamente engajada, em oposição às letras vazias de mensagens e conformadoras de opressões.

“O canto tem sentido./ Quando palpita nas veias./ De quem morrerá cantando./ As verdades verdadeiras./ Não as lisonjeiras “baratas”./ Nem as famas estrangeiras./ Mas sim uma canção popular./ Até o fundo da terra./ Aqui onde chega tudo./ E onde tudo começa./ Canto que foi valente./ Sempre será canção nova”. 

Golpe e resistência 

O golpe militar de 1973 incluiu membros da Nueva Canción entre os inimigos a serem destruídos. Uma parte deles foi vítima de tortura e assassinato, outra teve de escolher entre a clandestinidade e o exílio. 

“O regime militar censurava toda produção musical associada à esquerda. Então, o simples ato de tocar instrumentos andinos já era visto com desconfiança, era desencorajado e poderia resultar em problemas”, explica Natália Schmiedecke.

“A Nueva Canción Chilena se desmantela nesse contexto. Depois, os músicos vão ter um papel muito importante de oposição, participando de festivais de solidariedade contra a ditadura chilena no exterior. Eles viajam muito em diferentes países do mundo levando essa mensagem de resistência”. 

Ainda no final da década de 1970, um movimento de continuidade ressurgiu no Chile sob o nome de Canto Nuevo, uma referência clara ao trabalho dos artistas anteriores. Para enfrentar a censura, eram compostas músicas com sonoridades diferentes, temas menos propositivos e mais reflexivos. 

O uso de metáforas também se tornou comum para mascarar críticas ao regime militar. Uma das estratégias era falar de problemas como desemprego, desabastecimento, poluição, entre outros, que não eram explícitos contra a ditadura, mas desafiavam a narrativa oficial militar de que o país estava em ordem e prosperando. 

Canto por justiça 

Nos dias atuais, o resgate de artistas e músicas daquele período é uma forma de manter viva as utopias, a memória dos crimes da ditadura e da resistência. Mas, no campo político e jurídico, novos passos foram para punir torturadores e lideranças do regime militar que torturou e matou milhares de pessoas no país. 

Um marco importante, nesse sentido, ocorreu recentemente. Em 2018, a justiça chilena havia condenado sete ex-militares como autores dos crimes de sequestro e homicídio qualificado contra Víctor Jara e Littré Carvajal (diretor nacional das prisões na época do governo Allende). Em 2021, as penas foram aumentadas. Seis deles foram condenados a 25 anos de prisão e um a 5 anos. Os réus entraram com recursos na Corte Suprema e, no fim de agosto deste ano, tiveram os pedidos de revisão das penas negados. Um dos ex-militares se suicidou antes de ser preso. 

Em julho deste ano, um juiz da Flórida, nos Estados Unidos, retirou o direito à cidadania norte-americana do ex-tenente do Exército Pedro Pablo Barrientos Nuñez, que reside no país desde 1990. Ele é apontado como o autor material do assassinato de Víctor Jara. Na sentença, o juiz diz que Barrientos mentiu no processo de imigração, porque negou ter participado de genocídio ou homicídio, o que tornaria a cidadania dele ilegal. 

A Fundação Víctor Jara, que tem como presidenta a viúva Joan Jara, celebrou a decisão nos Estados Unidos, mas espera agora que o governo chileno faça a parte dele e peça a extradição de Barrientos, para que ele possa ser julgado no país. A organização entende que, além de honrar a memória do músico, este seria um símbolo importante de justiça para todos os torturados, mortos e desaparecidos na ditadura. Principalmente quando fantasmas do passado ameaçam retornar. 

“Vivemos um ataque feroz do negacionismo por parte daqueles que apoiaram o golpe militar, uma direita extremista que tem sido impulsionada por avanços nas suas posições em todo o mundo. Hoje mais do que nunca é preciso lutar em um campo que estará sempre em disputa: o da memória e dos direitos humanos. Estamos comprometidos com essas lutas e não estamos sozinhos neste caminho, somos milhares no Chile e no mundo. Estamos acompanhados pelo exemplo de Víctor Jara, seu legado e canções cheias de amor e vida”, disse o diretor executivo Cristián Galaz.

Edição: Carolina Pimentel

fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-09/cancoes-por-justica-o-movimento-musical-atacado-pela-ditadura-chilena

 
 

Chile, 50 anos do golpe: a luta contra um passado mal resolvido

Heranças da ditadura ainda assombram o país no século 2

Publicado em 11/09/2023 - 07:00 Por Rafael Cardoso - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

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Ni perdón, ni olvido!

O grito de ordem - que em português pode ser traduzido como "nem perdão, nem esquecimento" - é ecoado há décadas por aqueles que buscam justiça contra torturadores, assassinos, mandantes e cúmplices da ditadura militar no Chile. Há exatos 50 anos, no dia 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas, lideradas pelo general Augusto Pinochet, deram um golpe de Estado, que encerrou o governo socialista e democrático de Salvador Allende.

Chile – 50 anos do Golpe - Pinochet e Allende – Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Pinochet (à esquerda) e Allende (à direita) durante cerimônia de nomeação de Pinochet como comandante-chefe do
Exército Foto: Biblioteca Nacional de Chile

O país se juntava, então, a outros vizinhos latino-americanos que estavam sob o controle de governos autoritários, como era o caso do próprio Brasil desde 1964. Foram 17 anos até que o Chile voltasse a ter eleições presidenciais e as Forças Armadas deixassem o poder. Mas as heranças sombrias desse período continuam a se fazer presentes na sociedade chilena. Enquanto alguns lutam há décadas para achar os corpos dos familiares desaparecidos na ditadura, ressurgem forças de extrema-direita e negacionismos, e o país têm dificuldades para substituir uma Constituição criada no governo Pinochet vigente até hoje.

Relembrar o golpe e a ditadura, nesse contexto atual, é um exercício importante de memória e de resistência contra um passado que insiste em não ir embora. Seja no Chile, no Brasil ou no restante do mundo.

Salvador Allende e Unidad Popular

Formado em medicina, Salvador Allende construiu uma carreira ativa na política. Integrou o Partido Socialista tão logo este foi fundado em 1933, deputado por Valparaíso e Quillota e ocupou o cargo de ministro de Saúde, Previdência e Assistência Social entre 1938 e 1941. A partir de 1945, se manteve no cargo de senador durante 25 anos. Durante esse período, concorreu à presidência da República quatro vezes. Foi apenas na última, em 1970, que conseguiu ser eleito.

Apoiado por uma coligação de partidos de esquerda chamada Unidad Popular, Allende teve 36% dos votos. Uma vitória apertada em relação ao segundo colocado, Jorge Alessandri, da coligação de direita, com 34,9%; e 27,8% do terceiro, Radomiro Tomic. Pela primeira vez na história, um político socialista e marxista chegava ao governo de um país por meio de votação popular. O projeto político ficou conhecido como a “experiência chilena”, que significava a via democrática até o socialismo, sem uma ruptura revolucionária.

Chile – 50 anos do Golpe - Desfile da Unidad Popular– Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Desfile da Unidad Popular– Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Apesar do começo promissor, o governo Allende teve que lidar com um país ideologicamente polarizado, com um contexto internacional desfavorável de Guerra Fria e com as próprias disputas internas da esquerda. Uma ala grande da Unidad Popular era favorável a seguir o caminho de Cuba, que em 1959 havia se tornado um país socialista pela via armada.

“Principalmente no primeiro ano de governo, vai se criar uma sensação mais ou menos geral de bem-estar. As primeiras deliberações são de elevação salarial, o que vai gerar um consumo desenfreado de bens duráveis e não duráveis, especialmente domésticos. Então isso faz com que haja uma sensação de bonança e apoio a um governo que se mostra exitoso. Já no ano seguinte, começam os problemas com inflação, bloqueio norte-americano e isolamento do Chile em relação à social-democracia europeia, à União Soviética e à China. Isso agrava os problemas econômicos o governo começa a entrar em um movimento declinante”, diz o historiador Alberto Aggio, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Ele lançou em junho desse ano o livro 50 anos do Chile de Allende: Uma leitura crítica.

Crescia, dessa forma, a oposição interna ao governo e o apoio dos Estados Unidos à derrubada de Allende. No dia 11 de setembro de 1973, os militares decidem bombardear o Palacio de La Moneda, sede presidencial. Allende comete suicídio e tem início longos 17 anos de ditadura. 

Pinochet e a ditadura 

Augusto Pinochet era o Comandante do Exército do Chile quando aconteceu o golpe. Com o fim do governo Allende, uma Junta Militar assumiu o poder no país. Pinochet foi nomeado Chefe Supremo da Nação em junho de 1974 e, em setembro, presidente da República. Posição em que se manteria até 1990. 

A ditadura militar se caracterizou por destruir o sistema democrático, encerrar os partidos políticos, dissolver o Congresso Nacional, restringir o quanto pode os direitos civis e políticos e por violar direitos humanos básicos. No plano internacional, ficou marcada por integrar a Operação Condor, uma aliança entre ditaduras da América do Sul para reprimir opositores políticos, e pelo alinhamento com os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Apesar das semelhanças, as ditaduras chilena e argentina colecionaram tensões, principalmente por causa de conflitos sobre a delimitação de fronteiras. A disputa pelo Canal de Beagle, na Patagônia, quase levou os dois países a uma guerra em 1978 e só foi apaziguada por uma mediação do papa João Paulo II. 

Chile – 50 anos do Golpe – Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Chile – 50 anos do Golpe – Foto: Biblioteca Nacional de Chile - Biblioteca Nacional de Chile

Para os que viveram a ditadura chilena, talvez nenhuma memória seja mais traumática do que a constante violação de direitos humanos. Relatórios oficiais dão conta de que mais de 40 mil pessoas foram vítimas dos militares, o que inclui torturados, mortos e desaparecidos. Os principais afetados foram políticos de esquerda, dirigentes sindicais, militantes e simpatizantes de partidos socialistas.

Por meio de uma base ideológica chamada de Doutrina de Segurança Nacional, três órgãos de Estado colocaram em prática o projeto de destruição dos que consideravam inimigos do regime: Forças Armadas, Carabineros de Chile e Polícia de Investigações. Outros departamentos foram criados especialmente para a repressão: Dirección de Inteligencia Nacional (DINA, 1974-1977), Comando Conjunto (1975-1977) e Central Nacional de Informaciones (CNI, 1977-1990, sucessora da DINA). Uma série de lugares foi transformada em centros de tortura ou campos de concentração, como o Estadio Nacional (1973), Estadio Chile (1973), o navio-escola Esmeralda (1973), Academia de Guerra Aérea (1973-1975) e a Isla Quriquina (1973-1975).

O fotojornalista brasileiro Evandro Teixeira foi enviado, pelo Jornal do Brasil, ao Chile em 1973 para cobrir o golpe militar e lembra de um ambiente permanentemente hostil. Mesmo sob constante vigilância, ele conseguiu registrar o tratamento violento contra presos políticos no Estádio Nacional e ser o primeiro a fotografar Pablo Neruda morto, ainda no hospital. O poeta chileno foi vítima de envenenamento, segundo resultado de uma perícia internacional feita em 2023.

Mas foi um acontecimento, em tese mais simples do que os anteriores, que levou Evandro a passar uma noite na prisão.

"Faltava carne de vaca para a população, que só comia galinha e porco. Eu estava andando pela cidade e passei em frente ao Ministério da Defesa. Vi um carro de açougueiro parado e um cidadão entrar com um boi inteiro nas costas para o pessoal do quartel. Achei uma sacanagem e fiz a foto", lembra Evandro.

"Não olhei para trás. Tinha uma patrulha passando e me levou preso. Eu tive de tentar enrolar o capitão que me interrogou, fingir que tinha tirado a foto por acaso e dizer que eu era contra os comunistas. Como tinha um toque de recolher todo dia a partir das 18 horas, passei a noite lá, com medo de ser fuzilado na rua, e ele me liberou no dia seguinte".

Chicago Boys e Neoliberalismo 

Assim que tomaram o governo, os militares decidiram implementar um conjunto de medidas para abrir a economia chilena ao capital privado e estrangeiro. Eles entendiam que o Estado deveria diminuir sua participação em alguns setores. Adotou-se, principalmente entre 1974 e 1982, de forma ortodoxa, os postulados neoliberais dos Chicago boys. Foram chamados assim os economistas chilenos que seguiram os estudos de pós-graduação na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e, ao regressarem, passaram a influenciar as políticas econômicas do Chile centradas em privatizações, redução do gasto público, abertura ao mercado externo e reforma trabalhista.

Indicadores macroeconômicos, como o Produto Interno Bruto (PIB), tiveram variação positiva na maior parte do tempo em que durou a ditadura. Mas as classes altas foram as principais beneficiadas. Não houve distribuição de renda e a desigualdade social foi uma das marcas desse período. Somaram-se a isso índices altos de desemprego, diminuição de salários, aposentadorias e quebras de empresas. 

Movimentos sociais e redemocratização 

Uma nova Constituição nacional foi aprovada em 1980, por meio da qual Pinochet estendia em pelo menos mais oito anos o cargo de presidente. Mesmo diante desse reforço de poder, do crescente autoritarismo e dos mecanismos de repressão, os movimentos de oposição conseguiram se reorganizar durante a ditadura militar. Os primeiros dez anos da ditadura são conhecidos por dificuldades maiores de mobilização. Mas a partir de 1983, uma série de protestos começou a tomar conta do país.

“É preciso destacar a reorganização subterrânea levada a cabo por variados e distintos atores sociais e instituições. Entre eles, integrantes de alas da Igreja Católica; movimentos por direitos humanos, com articulações no exterior; as universidades e a ação dos estudantes para retomar as organizações estudantis; além de uma rede solidária e política constituída no interior dos bairros periféricos de Santiago. Esses últimos lugares dariam aos protestos muitos de seus atores, como os jovens desempregados, sem perspectiva e sob vigilância violenta”, diz a historiadora Fernanda Fredrigo, da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Diante da pressão social crescente, a ditadura se viu obrigada a convocar um plebiscito em 1988, para que a população decidisse sobre a continuidade do regime militar. Mesmo que não tenham sido apresentados prazos concretos para isso, o processo teve adesão grande da população, com mais de 92% dos habilitados para votar indo às urnas. As opções eram o “Sim” pela continuidade e o “Não” pelo término do regime. O “Não” venceu. Em 1989, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais. O vencedor foi o candidato da coligação Concertación, o democrata cristão Patricio Aylwin Azócar.

“As mobilizações sociais foram fundamentais na superação do medo, o que não é pouco; no abalo da crença quanto à despolitização total da sociedade; na retomada da ação política conjunta, fazendo emergir grupos políticos num contexto em que as agremiações pareciam apenas fragmentadas; na experiência de 'unidade' da esquerda; na reinvenção das formas de luta cotidianas; e na associação das diferentes formas de luta: greves, paralisações, trabalho lento”, analisa Fernanda Fredrigo.

 A democracia estava de volta em 1990, mesmo que sob profundos questionamentos. Afinal, Augusto Pinochet deixara a presidência, mas continuava como líder das Forças Armadas. Em 1998, voltaria à política oficial para assumir o posto de senador vitalício. No mesmo ano, seria detido durante uma viagem a Londres para tratamento médico. Sobre ele pesava um mandado de busca e apreensão, e pedido de extradição para a Espanha, onde era acusado por violação aos direitos humanos. Ficou mais de 500 dias em prisão domiciliar, mas contou com a ajuda do governo britânico, que o extraditou de volta para o Chile.

Chile – 50 anos do Golpe - População comemora a vitória do NO para permanência da ditadura – Foto: Biblioteca Nacional de Chile
População comemora a vitória do "Não" para permanência da ditadura – Foto: Biblioteca Nacional de Chile 

Em 2002, renunciou ao cargo de senador vitalício. Em 2004, investigações no Senado dos Estados Unidos apontaram que ele tinha contas secretas fora do Chile, no valor de quase US$ 30 milhões, frutos de corrupção enquanto era ditador. Pinochet morreu em 2006, sem nunca ter sido julgado oficialmente pelos crimes que cometeu.

Questões mal resolvidas do passado 

Durante quatro mandatos, de 1990 a 2010, a coligação Concertación dominou a presidência do Chile. Nos três primeiros, foi mantido o modelo neoliberal de economia. E apesar de terem dado ênfase nesse período aos gastos públicos nas áreas sociais e terem conseguido taxas altas de crescimento econômico, os governos não conseguiram resolver os problemas históricos de distribuição de renda.

Entre 2006 e 2022, o país alternou entre as presidências da socialista Michelle Bachelet e do direitista Sebastián Piñera. No período, destacam-se a “Revolução dos Pinguins”, em maio de 2006, o maior protesto de estudantes da história do país, com mais de 600 mil pessoas exigindo reformas educacionais. E os protestos de outubro de 2019, cujo estopim foi o reajuste de passagens do transporte público, e que envolveram mais de um milhão de pessoas. O resultado foi a convocação de um plebiscito em 2020, em que 78,27% dos votos decidiram pela criação de uma nova Constituição.

Em 2021, Gabriel Boric, do partido de esquerda Convergência Social, venceu as eleições presidenciais e iniciou o mandato em 2022. Para os defensores de um país mais progressista e comprometido com a igualdade social, a eleição representou um momento de esperança. Para alguns analistas, Boric se tornou símbolo de um modelo de renovação para as forças de esquerda.

“Boric é uma figura importante para a esquerda mundial. O Chile é um país pequeno, mas que sempre teve uma posição distinta. A esquerda, em lugares como a Nicarágua ou a Venezuela, é completamente anacrônica: só tem um ponto de apoio que é a China. Em outros casos, a esquerda democrática está na política latino-americana e pode ser dito que ele é progressista. Mas precisa avançar do ponto de vista das relações sociais e culturais, porque mantém alguns vícios conservadores”, analisa o historiador Alberto Aggio.

Em setembro do ano passado, o texto da nova Constituição, considerada progressista, foi votado e rejeitado por 62% da população. O que colocou o país em um novo impasse: ao se manter preso em normas e direitos definidos em 1980 na ditadura militar, não resolve entraves históricos que bloqueiam o desenvolvimento social. Simbolicamente, também não consegue dar um passo importante para enterrar os vestígios da ditadura que assolou o país durante 17 anos.

Edição: Carolina Pimentel

fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-09/chile-50-anos-do-golpe-luta-contra-um-passado-mal-resolvido

 


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