Quase lá: 'Quem ama não mata': o feminicídio de 1976 que ajudou a mudar a Justiça brasileira

Segundo a tese da legítima defesa da honra, um homem poderia, em caso de adultério, matar a esposa ou namorada, sob alegação de que ela o teria traído.

A socialite mineira Angela Diniz, ao centro

ARQUIVO DO PROCESSO -A mineira Angela Diniz, no centro, foi assassinada em 1976


André Bernardo para a BBC News Brasil

 

No dia 1º de agosto de 2023, o caso da socialite mineira Ângela Maria Fernandes Diniz, morta a tiros em 1976 pelo namorado, o playboy paulista Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, foi citado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia durante uma sessão do Supremo Tribunal Federal.

O STF se reunia para concluir o julgamento da tese da legítima defesa da honra, usada, entre outros advogados, pelo criminalista Evandro Lins e Silva para justificar o crime e tentar inocentar seu cliente, Doca Street.

Segundo a tese da legítima defesa da honra, um homem poderia, em caso de adultério, matar a esposa ou namorada, sob alegação de que ela o teria traído. Foi o que aconteceu no julgamento de Doca Street, em 17 de outubro de 1979, em Cabo Frio (RJ).

O argumento da legítima defesa da honra não consta do Código Penal brasileiro.

Durante o julgamento, Evandro Lins e Silva transformou o assassino, “humilhado às últimas consequências”, em vítima; e a vítima, que chamou de “Vênus lasciva”, em ré.

“Senhores jurados, a mulher fatal encanta, seduz, domina…”, argumentou o advogado de defesa. “Às vezes, a reação violenta é a única saída”.

Enquanto Evandro Lins e Silva era advogado de defesa, Evaristo de Moraes Filho era o de acusação.

“Jurados, esta moça já teve carrascos demais!”, suplicou Moraes.

“Absolvei-o (Doca), jurados, e tereis feito justiça”, rebateu Lins e Silva.

Acusado de matar Ângela Diniz, então com 32 anos, com quatro tiros à queima-roupa, Doca Street, de 40, foi condenado a dois anos de reclusão, com direito a sursis (dispensa do cumprimento de uma pena, no todo ou em parte).

Como já tinha cumprido mais de um terço da pena, o réu saiu do tribunal pela porta da frente, aplaudido pela multidão que acompanhou as 21 horas de julgamento.

À época, até o escritor Carlos Drummond de Andrade e o cartunista Henfil protestaram contra a decisão dos jurados – cinco homens e duas mulheres. Por quatro votos a três, o júri praticamente absolveu o réu e condenou a vítima.

“Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, lamentou o poeta no Jornal do Brasil. “Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”, ironizou o cartunista em O Pasquim.

'Quem ama não mata'

O crime ocorreu na casa de veraneio de Ângela Diniz na Praia dos Ossos, no balneário de Armação de Búzios (RJ), no dia 30 de dezembro de 1976, e o julgamento, marcado pelo machismo tanto da defesa quanto da imprensa, gerou repercussão nacional.

Indignadas, mulheres escreveram faixas, assinaram manifestos, organizaram protestos. Chegaram a fazer vigília na porta do Fórum de Cabo Frio.

“Em 1975, grupos feministas organizaram no Rio de Janeiro um seminário na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que deu origem à primeira organização feminista institucionalizada do país, o Centro da Mulher Brasileira. Portanto, quando Ângela Diniz foi assassinada, em 1976, o movimento feminista já atuava no Brasil e, com o slogan ‘Quem Ama Não Mata’, demandava justiça pelo assassinato de várias mulheres por seus maridos”, relata a socióloga Jacqueline Pitanguy, coautora do livro Feminismo no Brasil: Memórias De Quem Fez Acontecer (Bazar do Tempo, 2022) e amiga de Ângela Diniz.

“Não creio que Ângela se autoidentificasse como feminista. Ela não atuava no movimento, nem tinha igualdade de gênero como bandeira de luta. No entanto, estava à frente de seu tempo na pauta da moral e dos costumes e se sentia livre para se relacionar fora dos padrões convencionais da época. Essa liberdade era uma forma de empoderamento da mulher”, observa a socióloga.

A Promotoria recorreu da sentença e um novo julgamento foi marcado. Heleno Fragoso substituiu Evaristo de Moraes Filho (acusação) e Humberto Telles entrou no lugar de Evandro Lins e Silva (defesa).

No dia 5 de novembro de 1981, Doca Street foi condenado a 15 anos de reclusão por homicídio qualificado. Mas só cumpriu três anos e meio da pena em regime fechado.

“A atuação do movimento feminista foi fundamental para a condenação de Doca Street e, também, para uma mudança cultural sobre crime e castigo no âmbito das relações entre homens e mulheres. No primeiro julgamento, não só a Justiça condenou a vítima, como a própria imprensa retratou Ângela como uma mulher que merecia ter sido assassinada porque seu comportamento não se enquadrava nos padrões da mulher recatada e do lar, prevalentes na sociedade”, afirma Jacqueline Pitanguy.

Fachada da casa, pintada de branco, com duas janelas e porta ao centro

ARQUIVO DO PROCESSO A casa onde ocorreu o crime, em fotografia anexada ao processo

Crime e castigo

De volta a 2023, em decisão unânime e histórica, o STF entendeu que o argumento da legítima defesa da honra – classificado pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso, como “odioso”, “desumano” e “cruel” – contraria os princípios constitucionais da igualdade de gênero, da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e, por essa razão, proibiu seu uso, da investigação ao julgamento, por policiais, advogados e juízes.

Caso a tese seja usada, de forma direta ou indireta, o julgamento poderá até ser anulado.

“A teoria da legítima defesa da honra traduz a expressão de valores de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária”, declarou a presidente da corte, a ministra Rosa Weber.

“Uma sociedade machista, sexista e misógina que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são, donas de sua vida”, completou a ministra Cármen Lúcia, que relembrou o caso de Ângela Diniz durante seu voto.

A casa do crime em 2019, pintada de amarelo

FLORA THOMSON-DEVEAUX A casa do crime, em fotografia de 2019

Machismo mata

Ângela Diniz e Doca Street se conheceram em agosto de 1976, durante uma festa na casa dele, em São Paulo. À época, Doca era casado com a milionária Adelita Scarpa e o casal tinha dois filhos.

Já Ângela era separada do ex-marido, o engenheiro Milton Villas Boas, e namorava o colunista social Ibrahim Sued, que a apelidou de “A Pantera de Minas”. Foi Ibrahim quem levou Ângela à casa de Adelita.

Dois meses depois, Doca se separou da mulher e se mudou para o Rio. Lá, passou a viver no apartamento de Ângela, em Copacabana, onde ela morava desde 1973.

“Por incrível que pareça, a vida maluca de Ângela era adrenalina para mim. O pior de tudo é que eu era daqueles que achava que a vida sem uma grande paixão não valia a pena, e continuava garimpando até encontrar outra. Paixão? Perigo? Tem coisa melhor?”, escreveu Doca em Mea Culpa (2006).

No dia 30 de dezembro de 1976, pouco antes do crime, Ângela e Doca voltaram a brigar. Mais uma das incontáveis brigas do casal. Na maioria das vezes, o motivo era um só: ciúmes.

Daquela vez, Doca estaria com ciúmes de Gabriele Dyer, uma alemã que aparecera em Búzios havia alguns meses e ganhava a vida vendendo artesanato. Segundo algumas versões, ela teria sido a pivô da última briga do casal.

Durante a discussão, Ângela terminou o relacionamento e mandou Doca embora. Ele não aceitou e efetuou quatro disparos – três no rosto e um na nuca. Em seguida, abandonou a arma do crime, uma Beretta automática calibre 7,65 mm, e fugiu para Minas. Vinte dias depois, foi capturado numa clínica em Taboão da Serra (SP).

“Ângela Diniz foi morta porque Doca Street não aceitava o fim do relacionamento. Havia o sentimento de posse. O crime ocorreu em 1976, há 46 anos, mas o sentimento de posse sobre as mulheres ainda vigora em tempos atuais. Homens não aceitam ‘perder’ a mulher, como se ela fosse um objeto de sua propriedade”, afirma a advogada Tammy Fortunato, autora do livro Feminicídio: Aspectos e Responsabilidades (Lumen Juris, 2023).

Em 30 de dezembro de 1976, quando Ângela Diniz foi assassinada, o crime de feminicídio ainda não existia no Brasil. Passou a vigorar a partir de 9 de março de 2015, quando foi aprovada a Lei 13.104.

Desde então, assassinatos de mulheres, praticados em contexto de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto ou, ainda, provocados pela discriminação ou menosprezo à condição do sexo/gênero feminino, passaram a ser considerados hediondos, com penas que podem chegar a 30 anos.

Há agravantes, por exemplo se o feminicídio for cometido contra gestante ou com filho recém-nascido ou, ainda, praticado na presença de parentes da vítima.

“Se Ângela tivesse sido morta após o advento da Lei 13.104/2015, Doca responderia pelo crime de feminicídio, com uma pena maior, por ter sido cometido em contexto de violência doméstica”, explica a advogada.

Cinco meses depois do crime, Gabriele Dyer desapareceu misteriosamente. Segundo relato de uma testemunha, ela teria escorregado da Pedra da Ferradurinha, em Búzios, e caído no mar. Seu corpo nunca foi encontrado.

Retrato de Branca Vianna, que usa óculos, tem cabelo cacheado e veste camisa rosa

KEVIN RODRIGUES Branca Vianna, idealizadora e apresentadora do podcast Praia dos Ossos, que recontou a história de Angela Diniz: “Como é que um homem mata uma mulher com quatro tiros na cara e vira herói?”

Triste recorde

Em 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios: 1,4 mil mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulheres – uma média de uma mulher morta a cada seis horas.

É o maior número já registrado no país desde que a lei do feminicídio entrou em vigor, em 2015.

O Estado com a maior taxa de feminicídio é Mato Grosso do Sul, com média de 3,5 a cada 100 mil mulheres, e o estado com a menor taxa é o Ceará, com 0,6 a cada 100 mil mulheres.

Segundo o Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), oito em cada 10 casos de feminicídio são cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima.

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o FBSP.

“A violência doméstica sofrida por Ângela Diniz em 1976 é a mesma sofrida por tantas outras mulheres em 2023. A diferença é que, em tempos atuais, as mulheres têm mais informações sobre as mais variadas formas de violência. Até pouco tempo, não havia delegacias especializadas no atendimento às mulheres em situação de violência, o que dificultava registrar um boletim de ocorrência, até mesmo pelo medo ou pela vergonha do julgamento da sociedade”, afirma Tammy Fortunato.

“Ângela não precisava se preocupar com dinheiro ou com a guarda dos filhos, mas não denunciou, nem procurou ajuda, o que era compreensível na época. Havia muito preconceito contra mulheres em situação de violência doméstica. Não havia lei que as protegesse”, conclui a advogada.

Gabriel Braga Nunes e Isis Valverde

ALINE ARRUDA Ísis Valverde (à direita) interpreta Ângela Diniz e Gabriel Braga Nunes (à esquerda), Doca Street, no filme 'Ângela'

Violência contra a mulher

O assassinato de Ângela Diniz inspirou, entre outras produções, o filme Os Amores da Pantera, de Jece Valadão, lançado em 1977; o episódio Ângela e Doca, do programa Linha Direta Justiça, exibido em 5 de junho de 2003, e o podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, entre 12 de setembro e 31 de outubro de 2020.

Uma das motivações de Branca Vianna, idealizadora e apresentadora do podcast Praia dos Ossos, foi responder a duas perguntas: “Como é que um homem mata uma mulher com quatro tiros na cara e vira herói?” e “Como uma mulher desarmada é morta com quatro tiros e vira a vilã da história?”.

“A conclusão a que cheguei é um tanto óbvia: ainda hoje, vivemos numa sociedade machista, misógina e patriarcal onde a dominação das mulheres pelos homens é vista como algo natural”, afirma Vianna.

“O Judiciário e a imprensa da época transformaram a Ângela na vilã da história. É como se ela tivesse provocado a própria morte. Se não fosse o Doca, ela teria sido assassinada por qualquer outro homem. Uma mulher que se comportava daquele jeito só podia terminar morta”.

Uma das 60 pessoas entrevistadas por Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux, pesquisadora e coordenadora de produção, foi o próprio Doca Street: “Eu amei a Ângela, como um louco. Coisa mais gostosa do mundo. Não interessa se a gente quebrava o pau de vez em quando. Faz parte, né?”, disse ele, a certa altura, no sexto episódio.

“Em 2019, quando entrevistamos o Doca para o podcast, ele continuava com a mesma narrativa de 40 e tantos anos atrás. Dizia que matou a Ângela porque a amava demais. Como se isso fosse algo possível”, relata Vianna.

Está em cartaz também a o filme Ângela, escrito por Duda de Almeida e dirigido por Hugo Prata. Ísis Valverde interpreta Ângela Diniz e Gabriel Braga Nunes, Doca Street.

“Quando você está em um relacionamento tóxico, é difícil mesmo se livrar dele. O abuso não começa no assassinato. Há todo um ciclo. Primeiro, o abusador mina a vítima psicologicamente. Depois, culpa-a pelo modo abusivo como age. Em seguida, explica que só faz aquilo por amor. Por último, exclui a vítima do convívio de outras pessoas”, adverte a atriz. “Mas, há um caminho: ligue 180. Você não está sozinha. Confie e acredite”.

No ano que vem, a história de Ângela Diniz chegará ao streaming. A série Praia dos Ossos será dirigida por Andrucha Waddington e protagonizada por Marjorie Estiano.

O primeiro marido de Ângela, Milton Villas Boas, morreu em 1983, em um desastre de avião, e o filho caçula, Luiz Felipe, em 1988, em um acidente de carro. Os outros filhos do casal, Milton e Cristiana, moram em Belo Horizonte (MG).

Doca Street teve uma parada cardíaca e morreu em 18 de dezembro de 2020, aos 86 anos.

fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce9n3eg3q4jo

 


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