Maior grupo demográfico brasileiro, as mulheres negras nunca integraram o Supremo em mais de um século de existência da Corte. Essa gritante ausência incomoda movimentos sociais e tem causado um intenso debate na opinião pública. O que impede o presidente Lula de olhar para as mulheres negras ao indicar um novo nome ao STF?

As demandas e trajetórias dessa parcela da população, que deveriam ser prioridade numa agenda democrática, nunca estiveram "em pessoa" representadas no debate constitucional. — Foto: Carine Wallauer, Diego Bresani e Maiara Cerqueira

As demandas e trajetórias dessa parcela da população, que deveriam ser prioridade numa agenda democrática, nunca estiveram "em pessoa" representadas no debate constitucional. — Foto: Carine Wallauer, Diego Bresani e Maiara Cerqueira

 

Ellen Gracie NorthfleetCármen Lúcia Antunes Rocha e Rosa Maria Pires Weber. Essas são as únicas três mulheres nomeadas para uma cadeira no Supremo Tribunal Federal em 132 anos de existência da Corte. As três, mulheres brancas. Em outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá nova oportunidade de dar um passo adiante e começar a reparar esse quadro tão discrepante na mais alta instância jurídica do país.

Com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, que completará 75 anos, abre-se uma vaga e a possibilidade de que seja assumida por uma mulher negra pela primeira vez na história. “Temos juízas e desembargadoras negras competentíssimas. Não há, portanto, razão para que não haja uma mulher negra no STF”, disse Cármen Lúcia em entrevista a Marie Claire em agosto.

As mulheres negras não só compõem o maior grupo demográfico do país, como estão na extrema ponta da vulnerabilidade social: são a maioria das mães solo e as mais atingidas pela fome, pelo desemprego e pela miséria. No entanto, nunca estiveram representadas “em pessoa” no debate constitucional. São 28% da população, mas ocupam apenas 5% dos cargos de magistratura, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, de 2021. Quanto maior o nível da carreira, menor a participação feminina.

A jornalista Flávia Oliveira, única comentarista negra da GloboNews, com décadas de cobertura política, defende veementemente a necessidade de que o próximo nome a integrar a Suprema Corte seja o de uma mulher negra.

“A diversidade enriquece, é potência. Pensando na riqueza da multiplicidade de segmentos que formam a sociedade brasileira, não é razoável que o STF tenha somente duas mulheres em um universo de 11 ministros, e nenhuma pessoa negra. Não há qualquer impedimento na legislação para maior participação feminina no STF, e mais diversidade de gênero e raça. A Corte é predominantemente masculina e branca em razão de uma hegemonia nunca rompida. Pela história, pela composição da sociedade, por justiça, por necessidade de inovação no debate jurídico, com outras escolas e compreensões, o STF e o Brasil não só precisam como merecem uma ministra negra na Suprema Corte.”

Currículos de credibilidade de mulheres negras não faltam. Para levantar quem são os nomes mais citados como possíveis indicações ao STF, consultamos movimentos sociais, como a Coalizão Nacional de Mulheres, Mulheres Negras Decidem, Juristas Negras, Rede Liberdade e Grupo Prerrogativas, e membros do governo do presidente Lula e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Chegamos em sete mulheres, sendo que a juíza Adriana Cruz e a advogada Soraia Mendes não quiseram participar da reportagem. Os perfis das outras cinco podem ser lidos nas páginas a seguir.

Adriana é juíza titular da 5ª Vara Criminal no Rio de Janeiro, especializada em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro, e professora de Direito Penal na PUC-RJ. É mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-RJ e doutora em Direito Penal pela UERJ. Em 2015 foi convocada como magistrada instrutora no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso, que assumirá a presidência do STF após a saída de Weber.

Já Soraia Mendes é advogada e autora de mais de uma dezena de livros, a maioria na área de direito criminal e gênero, que já foram citados no Supremo e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. É mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Foi também coordenadora nacional do Comitê para América Latina e Caribe de defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM). Seu nome chegou a ser ventilado como “anticandidata” em 2021, em uma campanha de resistência contra a indicação de André Mendonça ao STF pelo então presidente Jair Bolsonaro.

As entrevistadas a seguir foram questionadas sobre pautas como descriminalização do aborto, legalização das drogas, a constitucionalidade do marco temporal e a reforma trabalhista, mas apenas Mônica de Melo quis se posicionar publicamente. As outras preferiram não antecipar votos que podem dar como ministras caso venham a ser indicadas.

Entre os desafios que atravessaram para chegar onde estão, o roteiro de vida que apresentam parece uma repetição; e é, por uma razão: ser mulher e ser negra no Brasil, nesta intersecção, faz com que precisem se empenhar ainda mais para escapar da falta de perspectiva que se sobrepõe em suas trajetórias.

Livia Vaz
40 anos, Salvador

Livia Vaz — Foto: Maiara Cerqueira

“Cadê a promotora?”, a pergunta que até hoje, após quase 20 anos de Ministério Público da Bahia, Lívia escuta cotidianamente. “Ainda causa estranhamento uma mulher negra na minha posição. É um caminho longo e solitário, mas que também pode ser revolucionário”, diz. Há oito anos, a promotora se dedica a temas de direitos humanos, como o combate ao racismo, à intolerância religiosa, a proteção de comunidades tradicionais, de mulheres em situações de violência e da população LGBTQIAP+.

A primeira opção profissional da jurista, filha de médicos, era ser jornalista. O pai, no entanto, a advertiu: “Já viu uma mulher negra na televisão?”, e a aconselhou a seguir a carreira jurídica. “Não que esse seja um espaço acolhedor e de igualdade para mulheres negras, tanto que não chegamos a 6% do sistema de Justiça. Mas me sinto cumprindo uma missão ancestral, de transformar esse espaço para que outras pessoas negras se enxerguem nele e que tenham na Justiça um instrumento de emancipação e promoção de direitos.”

Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, fez o doutorado na Universidade de Direito de Lisboa, em Portugal, onde pesquisou o direito fundamental à igualdade racial. É autora dos livros A Justiça é uma Mulher Negra (Letramento, 334 págs.; R$ 79,90) e Cotas Raciais (Jandaíra, 232 págs.; R$ 36) – este último deu suporte para a recente aprovação na Câmara dos Deputados que atualizou o projeto de lei de cotas raciais para acesso ao ensino superior.

Lívia, que também é cofundadora do coletivo Juristas Negras, diz que nunca se enxergou no lugar de ministra do STF: “O racismo despreza talentos e destrói sonhos”. A ideia partiu dos movimentos sociais com os quais dialoga há quase uma década. “Foram eles que me trouxeram esse questionamento, ao dizer que o Brasil precisa de uma mulher negra no STF, então por que não poderia ser eu?”

“A justiça não pode ser promovida se não tem a cara das pessoas. E não é qualquer mulher negra, é quem tenha uma trajetória antirracista. Tem que abrir caminhos para mudanças.”

Lucineia Rosa dos Santos
59 anos, São Paulo

Lucineia Rosa dos Santos — Foto: Carine Wallauer

Aos 14 anos, Lucineia falou para a professora que mais admirava na escola sobre o seu desejo de estudar em um curso técnico. A resposta que ouviu foi: “Esqueça, você será igual aos seus colegas, mãe solteira e doméstica”, conta ela, que hoje é advogada e professora titular do curso de Direito da PUC-SP. Não falou a ninguém do episódio e seguiu com os planos. Cursou administração na Fundação Escola Comércio Álvares Penteado (FECAP) e, após “percalços”, foi contratada para trabalhar em um banco. Indicada para uma vaga de escriturária, foi remanejada para o Centro Técnico Operacional onde encontrou “seus pares negros” e trabalhou com envelopamento de documentos.

Cursou Direito na PUC-SP e diz que teve enorme dificuldade em conseguir estágios. “Uma clara questão racial”, constata. Em 1990, foi contratada pela universidade como professora assistente e passou a trabalhar como advogada do Sindicato dos Alfaiates, Costureiras e Trabalhadores nas Confecções de São Paulo e Osasco, onde atuou por uma década.

Tornou-se professora titular da PUC-SP em 1993 e fez mestrado e doutorado na instituição. Primeiro pesquisou o assédio sexual na relação do trabalho e depois a inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho. “A questão racial sempre foi uma batalha minha, além do direito da criança e do adolescente. Ultimamente, trabalho com racismo ambiental e migração forçada, falando sobre questões climáticas por esse viés de deslocamento”, conta.

Lucineia se diz de esquerda e garantista. Integra o grupo Prerrogativas, criado em 2019 com discurso crítico à Operação Lava Jato. É colaboradora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades e compõe o Conselho da Fundação Padre Anchieta.

Para a jurista, a nomeação de uma mulher negra ao STF é necessária não apenas por representatividade, mas por impactar questões fundamentais como o encarceramento em massa, uma chaga da população negra: “Ter uma negra no Judiciário pode trazer outro visão no julgamento – principalmente nas prisões por drogas e por reconhecimento facial”, opina.

Mônica de Melo
56 anos, São Paulo

Monica de Melo — Foto: Carine Wallauer

Direito não fazia parte do universo familiar de Mônica, ou sequer o acesso ao ensino superior. O pai migrou de pau de arara do sertão de Pernambuco para a periferia de São Paulo. Semianalfabeto, começou a trabalhar com instalação de aparelhos de ar condicionado em indústrias, abriu uma pequena empresa e dessa forma conseguiu criar os cinco filhos. A mãe de Mônica, dona de casa, morreu com apenas 28 anos da doença de chagas, adquirida na adolescência após ter vivido em casas de pau a pique.

Mônica formou-se no ensino médio profissionalizante, com habilitação para ser professora de Fundamental 1. Começou a estudar Pedagogia na PUC-SP, mas desistiu para cursar Direito. Destacou-se em Direito Constitucional e em 1992 foi contratada como professora assistente na universidade, começando assim a carreira acadêmica. Paralelamente, prestou concurso para a Procuradoria do Estado de São Paulo, onde trabalhou até a criação da Defensoria Pública de São Paulo, em 2006.

Fez parte do primeiro gabinete de defensores que organizou o funcionamento da instituição em todo o estado. Depois migrou para a área de execução criminal, na qual atua até hoje. Foi responsável por redigir a proposta de criação do núcleo de direitos das mulheres na Defensoria Pública de SP, temática na qual se especializou como defensora e também em sua produção acadêmica, feita sob uma perspectiva antirracista e de gênero.

Desde 2021 também é pró–reitora de Cultura e Relações Comunitárias da PUC-SP. Esteve à frente da criação de diretrizes de combate ao assédio sexual e políticas de inclusão e diversidade, como editais de contratação de professores voltados exclusivamente a profissionais negros.

Favorável à legalização do consumo e venda de drogas, diz que “quem conhece o sistema carcerário brasileiro não vai defender a criminalização”. Também apoia a descriminalização do aborto – tema pesquisado por Mônica em sua tese de doutorado: “Quem é a favor da descriminalização é a favor da vida de milhares de mulheres pobres que fazem aborto clandestino e acabam morrendo.”

Manuellita Hermes
40 anos, Salvador

Manuellita Hermes — Foto: Diego Bresani

A primeira pessoa a dizer que Manuellita estudaria Direito foi sua avó materna, Alice Hermes de Almeida, lavadeira e passadeira em Salvador. A neta, ainda criança, discordava e respondia que não queria “decorar leis”. Já na idade de prestar vestibular, recebeu emprestado a obra Introdução ao Estudo do Direito, do jurista Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Encantada com a leitura, mudou de ideia.

Manuellita cursou Direito na Universidade Federal da Bahia e logo conseguiu o primeiro trabalho ao passar no concurso para advogada da Petrobras. No ano seguinte, ingressou na Advocacia-Geral da União, como Procuradora Federal. Após oito anos, afastou-se para fazer o mestrado na Universidade de Roma Tor Vergata, onde ainda realizou um doutorado, em cotutela com a Universidade de Brasília, com enfoque em Direito Constitucional Comparado.

“Precisei estudar mais para ser respeitada e incluída em alguns espaços onde eu era, geralmente, a única negra. Foi o estudo a minha grande ferramenta para lidar com as dificuldades”, conta.

Em 2019, foi cedida ao STF para trabalhar como assessora de Rosa Weber. Em 2022 assumiu o cargo de Secretária de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão de Informação da Corte, função que exerceu até março deste ano. “Isso me possibilitou participar da reconstrução democrática após o fatídico 8 de janeiro”, destaca. Hoje é Coordenadora-Geral de Assuntos Internacionais e Judiciais da Consultoria Jurídica do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

“Sou uma mulher preta, nascida, criada e com formação jurídica na cidade mais negra fora da África, Salvador. Nunca tive, por exemplo, uma professora negra, nem na escola, nem na faculdade. Apenas raros homens negros: eles chegam primeiro. Não tive referências de mulheres negras na minha carreira. É de extrema relevância criar referências para as meninas e mulheres negras do nosso país. Possibilitar o exercício do sonhar. Parece-me que há uma janela histórica favorável. Novos ventos democráticos sopram.”

Vera Lúcia Santana Araújo
63 anos, Livramento de Nossa Senhora, Bahia

Vera Lúcia Araújo — Foto: Diego Bresani

Quando criança, Vera sempre vencia o prêmio de melhor leitora da biblioteca infantil de Livramento de Nossa Senhora, pequena cidade no interior da Bahia. “Era meu ambiente de vida, quando não estava na escola, estava lá”, conta a jurista – que só foi conhecer uma televisão aos 12 anos de idade.

Filha de um garimpeiro semianalfabeto e de uma mãe professora de Português de escola infantil, Vera relata que teve uma adolescência difícil. O pai morreu quando ela tinha 13 anos. Viúva, a mãe levou os seus seis filhos para Vitória da Conquista, onde estariam mais perto de Salvador para poder levar adiante os estudos.

“Foi fundamental ir a Salvador porque descobri o Brasil, na época um país sob uma ditadura militar e empresarial”, diz. Entrou para o movimento estudantil, como secundarista, e começou a fazer parte das mobilizações para derrubar o regime. A irmã mais velha, nutricionista, morava em Brasília e sustentou Vera para que fizesse Faculdade de Direito na UniCeub, quando estagiou na Defensoria Pública do Distrito Federal.

Vera foi a primeira mulher a compor uma lista tríplice escolhida pelo STF para a vaga de juíza substituta do Tribunal Superior Eleitoral, em 2022. Como advogada, trabalhou com sindicatos, foi coordenadora jurídica do Departamento Nacional de Trânsito, do Detran-DF e atuou no Ministério da Justiça em 1986 com direitos dos migrantes. Trabalhou nos governos de Cristóvam Buarque (1995-1998), Agnelo Queiroz (2011-2014) e Rodrigo Rollemberg (2015-2019) e coordenou campanhas do PT, partido que ajudou a fundar. Foi diretora de projetos da Fundação Cultural Palmares e participou do grupo que regulamentou terras quilombolas no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Sobre a nomeação de uma mulher negra ao STF, diz que “as próprias trajetórias dão sensibilidades diferentes” – algo imprescindível à Corte. “Além disso, manter uma cúpula judiciária branca reverbera a legitimação das formas de exclusão racial, criminalização da própria negritude e discriminação nas relações de trabalho.”

Equipe

Fotos: Carine Wallauer, de São Paulo (SP), Maiara Cerqueira, de Salvador (BA) e Diego Bresani, de Brasília (DF)
Produção Executiva: Vandeca Zimmermann
Agradecimentos: Academia De Letras Da Bahia, Brasília Palace Hotel

 

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