Só no Pará, em 2019, mais de 118 mil crianças e adolescentes foram encontradas em situação de exploração. As “filhas de criação”, saídas das periferias, são repassadas como objetos, tiradas dos pais com a promessa de uma vida melhor

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Publicado 21/09/2023 às 14:06

 

Por Aila Inete, na Revista AzMina

Luana quase morreu de exaustão quando foi explorada no trabalho doméstico na adolescência. Leila foi largada na casa de desconhecidos, aos 15 anos, para servir uma família em condições análogas à escravidão. Josiane conta que foi “acolhida” por uma família, quando tinha 7 anos, mas chegando lá começou a receber obrigações na casa: lavar, varrer, dobrar, cuidar das outras crianças…

Elas eram enganadas pelos patrões que a tiravam de seus pais e diziam que lhe dariam uma vida melhor, que estudariam. Tudo mentira, era só trabalho pesado. A vaga na escola e o salário nunca vieram. Proibidas de sentar à mesa, de acender a luz, relegadas a um quartinho, obrigadas a comer o que não gostavam, repassadas como objetos. Ofendidas, assediadas e constrangidas. “Imprestável, nega do cabelo duro”. 

Trabalhavam dia e noite. Dormiam chorando. A infância e a adolescência delas se acabaram assim que entraram pelas portas das tais “casas de família”, que deixaram sequelas até a velhice. Hoje, essas três mulheres contam aqui suas histórias. Todas se passaram no estado do Pará. Elas resistiram a anos de exploração e construíram suas vidas com momentos de dor, de alegria e de esperança.

O Brasil já percorreu um longo caminho em relação aos direitos de trabalhadoras domésticas, mas ainda há muito por fazer, especialmente para combater a perigosa conexão entre o serviço doméstico e o trabalho infantil. A presença das “filhas de criação” em lares brasileiros de classe média e alta já foi mais comum no passado, mas não está totalmente superada. No Pará, onde a prática atinge muito a comunidade indígena, há milhares de crianças nessa situação. 

“Adotadas” por uma família

A figura das “filhas de criação” é muito popular. Meninas, que vêm do interior e das periferias, são “adotadas” por uma família das áreas centrais com a proposta de mais educação e chances de mobilidade social. A promessa é de que “seriam cuidadas como se fossem da família”, mas a prática é de exploração do trabalho infantil, muitas vezes análogo à escravidão. Quem explica isso são as pesquisadoras Danila Cal e Rosaly Brito, organizadoras do livro “Comunicação, Gênero e Trabalho Doméstico”. “A ideia do “ser da família” justificaria a falta de pagamento para mulheres e crianças que trabalham na casa”, aponta Danila.

O perfil dessa exploração mudou com o tempo. A pesquisadora afirma que, nas décadas passadas, o trabalho infantil doméstico “clássico” era de meninas vindas de municípios do interior para as capitais. Atualmente, o cenário envolve também mulheres pobres que precisam de cuidadoras para seus filhos enquanto elas trabalham fora de casa. Como recebem salário mínimo, não podem pagar por uma profissional e recorrem às adolescentes da vizinhança, repetindo o ciclo de exploração.

A ilusão da familiaridade

A relação entre patroas e adolescentes trabalhadoras domésticas se torna mais complexa, pois, apesar das diferenças hierárquicas, elas compartilham questões de gênero que, em certos momentos, podem criar a ilusão de igualdade ou até de familiaridade

“Os exploradores utilizam a expressão ‘filha de criação’ como substitutivo para ‘trabalho escravo’, ‘trabalho servil’, ‘superexploração no trabalho’ e outros assemelhados”, indica Maria Zuíla Dutra, Gestora Nacional e Coordenadora Regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho. Ela lembra que essas garotas não são sequer tratadas como crianças. São exploradas “de forma desumana, pois além de perder a infância, dificilmente frequenta a escola e não terá a oportunidade de brincar com outras crianças”, afirma.

Há nisso tudo uma questão de raça. O pensamento colonial sugere que pessoas negras nasceram para fazer trabalhos manuais. É o que sugere o artigo “Família cordial’: marcas visuais da desigualdade na cobertura noticiosa da PEC das domésticas”, das pesquisadoras Louize Nascimento e Kelly Prudencio. “A mulher negra nascera para ser mucama, ama de leite, cozinheira, arrumadeira, lavadeira, costureira dentre outros, possuindo para isso dotes inatos, ao contrário do branco, que, nessa visão, nasceu para mandar, gerenciar e dominar”, cita o estudo.

Piores formas de trabalho 

Em 2019, o Pará tinha 118.768 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil, de acordo com informações do projeto “Criança Livre de Trabalho Infantil”, do Ministério Público do Trabalho (MPT). O serviço doméstico estava entre as três principais atividades exercidas por esta faixa etária (7.972 ou 6,7% do total).

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe o trabalho para quem ainda não completou 16 anos. A exceção é para a condição de aprendiz, permitida a partir dos 14 anos. Para trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos. 

São mais de 390 mil trabalhadores domésticos e 28 mil diaristas registradas no Pará, conforme Lucileide Mafra Reis, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do estado. Já no banco de dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos), a estimativa é de cerca de 192 mil em todo o Pará, sendo 80% informais. 

O sindicato realiza ações de fiscalização em mais de 900 condomínios na capital, Belém, levantando o número de trabalhadoras – quantas são mensalistas e diaristas. Lucileide explica que as garotas não denunciam a exploração. “A gente tem que ir para a frente dos condomínios para estar observando e abordando elas nas saídas”. Segundo a presidenta do sindicato da categoria, em muitos casos de exploração investigados, as famílias acusadas continuam alegando que estão ajudando as crianças. 

O quartinho da empregada

Nos cubículos escondidos atrás de lavanderias de apartamentos de luxo na capital paraense, às vezes sem nenhuma janela, meninas continuam vivendo em condições miseráveis, sem acesso a direitos básicos, como documentos, saúde e educação. “A senzala moderna é o quartinho da empregada”. A frase está no livro “Eu, empregada doméstica”, lançado pela Editora Letramento em 2019, da escritora Preta Rara.

A Emenda Constitucional 72, a PEC das domésticas, que garantiu os direitos trabalhistas a milhares de trabalhadoras no Brasil, completou 10 anos agora em 2023. Com a promulgação da emenda, ficaram asseguradas a jornada de trabalho de 8 horas por dia (44 horas semanais), horas extras, férias, 13º salário, licença-maternidade, aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição. As normas regulamentam essa modalidade de trabalho em algum nível, há apenas uma década, e ainda não resolveu muitos problemas, principalmente o da informalidade. 


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