Quase lá: Cota para pessoas negras e LGBTs trabalharem de graça constrange organização do REC’n’Play

Privilégio de trabalhar de graça para garantir a realização de um festival que conta com recursos financeiros de 20 patrocinadores

Foto colorida de palco colorido e iluminado, com ao nome rec'n'play no alto do palco, tendo ao fundo os contornos iluminados da Torre de Malakoff
Crédito: Marcos Pastich/PCR

Na linguagem do mundo da comunicação institucional ou empresarial, o Festival REC’n’Play seria a típica “pauta positiva”, aquela que garante likes nas redes sociais, comentários elogiosos e, por fim, fortalece a imagem das instituições e empresas responsáveis pelo evento. A não ser que alguém decida criar uma cota de vagas de voluntariado destinada a “pessoas pretas, periféricas, com deficiência e LGBTs” que, assim, teriam o questionável privilégio de trabalhar de graça para garantir a realização de um festival que conta com recursos financeiros de 20 patrocinadores.

Foi exatamente isso que aconteceu na 5ª edição do REC’n’Play.

A divulgação de garantia de vagas de trabalho sem remuneração transformou o festival em alvo de uma avalanche de críticas, similar a uma campanha de cancelamento nas redes sociais. O volume de comentários negativos levou o Porto Digital e a agência de publicidade Ampla Comunicação, organizadores do evento, a publicar uma postagem, no dia 3 de outubro, com uma justificativa que incluiu até o insosso e inodoro clichê “desculpa a quem possa ter se sentido ofendido”.

De acordo com a nota dos organizadores, “o REC’n’Play é sobre as pessoas. Por isso, estamos aqui para reconhecer que erramos no nosso último post sobre as vagas de voluntariado (…) Pedimos desculpas a quem possa ter se sentido ofendido com a nossa abordagem. O festival vem crescendo ano a ano e a ação dos voluntários vem se tornando bastante concorrida. Em 2022, foram mais de 1.000 inscrições para 120 vagas. Por esse motivo, o intuito dessa fase 2 foi de garantir a inclusão e a diversidade na ação”.

 

Se o time das redes sociais do festival esperava sossego, não teve. Os comentários da postagem contam com elogios ao programa de voluntariado, mas as críticas ásperas e os questionamentos prosseguiram.

“Vocês podem ser inclusivos e diversos remunerando os profissionais que já estão na margem da sociedade e que valoriza o projeto Rec’n Play. Nada mais justo que valorizar com remuneração além da experiência. Reconhecer o erro é louvável, porém ele seria facilmente evitado se a diversidade estivesse presente no desenvolvimento intelectual do projeto”, argumentou a gestora cultural e pesquisadora Vanessa Marinho (@vann.marinho).

O comentário crítico de Vanessa recebeu 101 curtidas, mas também uma resposta agradável aos ouvidos dos organizadores: “Pessoas diversas trabalharam na equipe. Inclusive eu, mulher preta, mãe, periférica da cidade de Igarassu. Para além da experiência eu recebi uma grana que pagou as horas que trabalhei. Entendo a insatisfação de vocês mas é interessante conhecer o histórico do evento e a forma como eles estão contratando. Se tudo der certo eu vou trabalhar esse ano”, afirmou a dançarina Janaína Santos (@janainasantospe).

A quem “não viu nada demais” na cota para o voluntariado, Gleybson de Souza (@gleybsondsouza) foi duro: “Vou te explicar o porque de preto trabalhar ‘de graça’ ser tão ofensivo não. Se tu não entendeu até hoje, não vai ser eu que vou fazer tu entender”. De Garanhuns, o músico Breno Ferreira (@bferreira_percussao) traduziu assim sua crítica: “Voluntário pra um festival com recurso financeiro é sacanagem. Bora se valorizar, galera. Trabalhar de graça não é experiência”.

A designer Daniela Marreira (@danielamarreira) ponderou, elogiando a importância e a atitude da organização do festival de “refletir e tentar, em algum nível, minimizar o erro apontado”, mas questiona se “abrir espaço apenas para ‘cargos de entrada’ é, de fato, proporcionar a inclusão de pessoas negras e LGBTQIAP+?”. Antes, ela sugeriu que o problema seria mais estrutural, pois a curadoria do evento, “realizada por homens e pessoas brancas”.

Ajuda de custo e jornada de seis horas

Na mesma nota em que pediram desculpas, os organizadores do REC’n’Play anunciaram que o festival “vai oferecer contrapartidas de capacitação aos voluntários participantes, além de um auxílio de custo”. Originalmente, as informações disponibilizadas aos interessados e interessadas mencionavam apenas o fornecimento de um kit lanche e duas camisas do evento. No entanto, o trabalho voluntário é uma prática legal, regulada pela lei 9.608/98, que o define como atividade não remunerada, sem vínculo empregatício, mediante termo de adesão, em que o prestador do serviço voluntário poderá ser ressarcido pelas despesas que comprovadamente realizar.

O advogado trabalhista popular Thiago Medeiros, que usa o perfil de X/Twitter Dr. Marinho Mendes, analisou o formulário de inscrição oferecido pelo festival, que saiu do ar após o final do prazo de inscrição, e constatou que “o trabalhador encara um turno de seis horas, durante o dia ou à noite, em que não é descrito se há pausa para intervalo”. Os turnos possíveis iam das 9h às 15 e das 14h às 20h. Para ele, “as funções também incluem serviços de ‘Recepção’, ‘Comunicação’, ‘Produção’, ‘Intérprete de Libras’, atividades profissionais que poderiam muito bem ser destinadas a contratações formais de trabalhadores com remuneração de cunho temporário, específico para o evento”.

Ele questiona “o quanto as empresas de tecnologia com alto discurso de empreendedorismo e sustentabilidade camuflam suas atividades por meio da utilização de mão-de-obra com baixo custo de trabalhadores jovens e desesperados pela inserção no mercado?”, lembrando que o balanço do Porto Digital em 2022, anunciado em março deste ano, apresentou um faturamento de R$ 4,75 bilhões – que, na verdade, é o faturamento de todas as empresas instaladas no parque tecnológico, conforme explicou a instituição em resposta aos questionamentos da MZ.

5 perguntas para a organização do festival

Por meio da assessoria de imprensa do festival, a MZ enviou cinco perguntas para as equipe da organização do evento (Porto Digital e Ampla Comunicação). Todas elas foram respondidas em tempo hábil para a publicação:

1) O Porto Digital e a organização do Rec’n’Play justificam a criação de cotas de vagas para assegurar a diversidade. Houve cota de vagas similar para trabalhos remunerados?

As vagas remuneradas diretamente pelo evento foram preenchidas por ordem prioritária para todos os moradores da Comunidade do Pilar que quiseram trabalhar no evento e posteriormente com os que trabalharam em anos anteriores. Também é importante lembrar das vagas que são geradas, administradas e remuneradas diretamente pelos parceiros e apoiadores do Festival.

2) Fornecedores e prestadores de serviço do festival foram orientados a contratar negros, LGBTs etc para atuar no Festival?

A inclusão é uma das grandes premissas do Rec’n’Play. Faz parte da pauta afirmativa do evento. E essa visão é compartilhada e valorizada junto a todas às pessoas e parceiros que colaboram com a sua realização

3) Qual o orçamento do festival? Ou seja, quanto custa o Rec’n’Play?

Hoje, Rec’n’Play recebe de patrocínio de menos de R$ 2 milhões para organizar um festival deste tamanho, com dezenas de locais e mais de 500 atividades, todas gratuitas.

4) Qual o faturamento do Porto Digital em 2022?

Do Núcleo de Gestão do Porto Digital, algo em torno de R$ 40 milhões. O que é divulgado neste caso é o faturamento de todas as empresas do ecossistema, onde cada uma é responsável pela sua gestão.

5) A escolha das palavras é fundamental. Pergunto por que usar na nota publicada no perfil oficial a surrada frase “Desculpa a quem possa ter se ofendido”, presente na quase totalidade dos pedidos de desculpas feitos por ocasião de ofensas racistas, misóginas e fascistas no passado recente?

Como já citado anteriormente, o festival defende ações afirmativas para pautas que entendemos fundamentais, como ciência, tecnologia, diversidade, inclusão e a educação como mola propulsora de mudança e transformação. E nesse processo de educação, também nos colocamos no lugar de quem precisa aprender e evoluir, reconhecendo que ainda estamos sendo letrados sobre questões não só relacionadas ao futuro, mas à história. Então, tão importante quanto o pedido de desculpas que precisa ser feito, a nota tenta afirmar esses nossos compromissos e nos levar a uma lugar melhor como sociedade.

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