Imagem: George Desipris
 
 
 

Por ÉRICO ANDRADE*

Apesar do Brasil ainda ser racista, os movimentos sociais conseguiram numa década retirar o caráter majoritariamente branco do nosso país

Sueli Carneiro nos ensina que uma das formas do epistemicídio mais próspera no Brasil é a promoção de um antagonismo entre o discurso acadêmico e o militante. Essa é uma estratégia de deslegitimação de certas teses que apela, por um lado, a um suposto lugar de neutralidade e, por isso, de autoridade epistêmica da academia. E, por outro, apela à compreensão de que as pessoas militantes não são suficientemente capazes de realizarem reflexões justas e rigorosas.

Quando um acadêmico projeta no outro uma militância como forma retórica de diminuir o que está sendo discutido pode ter certeza de que ele está falando de si mesmo. O uso reiterado da palavra militante no texto de Wilson Gomes na Folha de S. Paulo “A mestiçagem desconsiderada” em 27 de dezembro é a prova de que ele está falando mais de uma reafirmação de sua própria posição do que levando a sério aquilo que pretende criticar.

Os movimentos sociais têm plena consciência da mestiçagem no Brasil. O ponto é que essa mestiçagem por um lado, foi iniciada por um processo de violência e assimetrias. Por outro lado, ela foi usada politicamente para apagar a presença negra e indígena na história de nosso país, uma vez que embora seja um país mestiço, as classes dominantes e os privilégios sociais sempre estiveram na mão das pessoas brancas.

Basta ver os monumentos nas cidades do Brasil, a cor das pessoas que frequentam os cursos mais concorridos nas universidades e os cargos públicos, sobretudo antes das leis das cotas. Aliás, foi graças à pressão do movimento negro que a universidade começou a ser habitada por corpos e por cosmovisões dissidentes da matriz europeia, contribuindo para o combate à ideologia do branqueamento.

Com efeito, para um liberal, tudo é uma questão de escolha pessoal. Assim, uma autoidentificação, quase que por um decreto mágico, acaba com a pauta racial no Brasil? Certamente não. É evidente que as pessoas podem se declarar como desejam, mas é igualmente inegável que se assumir negro num país racista nunca foi uma tarefa fácil, como mostrei no meu recente livro Negritude sem identidade. Por isso, tanta gente escreve sobre o processo de se tonar negro, mesmo tendo a pele negra e, em casos como de Lélia Gonzalez, negra retinta. Não é apenas a cor que torna a pessoa negra, mas a consciência política de que ela participa da experiência comunitária de sofrer alguma forma de racismo que não atinge, no Brasil, as pessoas brancas.

Assim, pardos e negros longe de serem categorias separadas, expressam do ponto de vista estatístico uma enorme vitória dos movimentos sociais que, ao oferecerem condições para que as pessoas pudessem se declarar como negras ou indígenas, conseguiram mudar as estatísticas de um país em que durante muito tempo as pessoas, mesmo sendo mestiças, se autodeclaravam brancas. Ou seja, apesar do Brasil ainda ser racista, os movimentos sociais conseguiram numa década retirar o caráter majoritariamente branco do nosso país. O que o censo mostra é que mais pessoas se percebem como negras (um aumento histórico) na mesma proporção que menos pessoas se reconhecem como brancas. Sendo este o dado objetivo que a pesquisa oferece.

*Érico Andrade é psicanalista e professor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autor do livro Negritude sem identidade (n-1 edições).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.


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fonte: https://aterraeredonda.com.br/brasil-mais-negro-do-que-branco/

 


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