Quase lá: A “transição energética” no capitalismo: impossível. Artigo de Raúl Zibechi

 

24 Fevereiro 2024 - IHU

 
 

“Cabe questionar por que tanto alvoroço em torno da transição energética e o uso de energias renováveis. Hoje, boa parte do poderio do sistema está em potencializar um ambientalismo que não questione o capitalismo, com os mais diversos nomes (incluindo a mineração “verde” ou sustentável), para convencer os ambientalistas de que necessitam acreditar em políticas progressistas”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 23-02-2024. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

O capitalismo estaria promovendo uma “transição energética”, para consolidar o capitalismo, em um período de crise e caos climático que pode ameaçar a sua legitimidade. Neste sentido, opera da mesma forma que faz diante dos questionamentos ao patriarcado e o colonialismo: buscando se legitimar com supostas políticas contra o machismo e o racismo, aparentando que o sistema compartilha aspectos das lutas feministas e dos povos oprimidos, com o objetivo de moldar um pequeno setor de fiéis que se inserem no topo da pirâmide do sistema.

A recente Cúpula Mundial do Clima (COP28), realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, demonstrou que promover o cuidado do clima e a transição para energias renováveis é profundamente hipócrita, quando o evento acontece em um país dependente dos combustíveis fósseis e se nomeia o diretor executivo da Companhia Nacional de Petróleo como o presidente da COP.

Conforme destaca a organização Grain, a COP “pareceu mais um evento empresarial” do que uma cúpula intergovernamental sobre o clima; um encontro semelhante ao Fórum de Davos, onde se reúnem bilionários. A Grain acrescenta que “a equipe dedicada ao lobby da indústria dos combustíveis fósseis e da carne totalizou um recorde de 2.756 pessoas, que lotaram salas e corredores”.

Conclui que “a COP foi capturada pelas corporações dos alimentos e o agronegócio” e que todas as suas declarações são vazias, meras representações e propaganda para o consumo do público distraído que, lamentavelmente, não é pouco e abunda mesmo em organizações que se denominam ambientalistas. É uma pena que ainda existam movimentos sociais que dão credibilidade a essas reuniões e que, inclusive, participem desses eventos, revestindo-os com uma legitimidade questionável.

Penso que precisamos compreender que o capitalismo realmente existente é profundamente dependente dos combustíveis fósseis, que os Estados Unidos, como núcleo do capitalismo, são intrinsecamente dependentes do petróleo e do gás, e que não podem e nem querem se livrar deles. De fato, a ascensão estadunidense à posição de potência mundial coincide com as descobertas e a exploração do petróleo e que reforçou o seu predomínio a partir do acordo com a Arábia Saudita, de 1945.

A especialista em temas energéticos, Gail Tverberg, argumenta que o sistema atual depende dos combustíveis fósseis, que são utilizados em todos os tipos de atividades, da Internet e a fabricação de painéis solares à construção de edifícios, à extração de matérias-primas e ao transporte de mercadorias.

Contudo, é na agricultura que a dependência dos combustíveis fósseis é determinante, uma vez que “tornou-se incrivelmente eficiente utilizando grandes equipamentos mecânicos, geralmente movidos a diesel, juntamente com uma grande quantidade de produtos químicos, incluindo herbicidas, inseticidas e fertilizantes”, sustenta o portal oilprice.

Sair da agricultura das corporações significaria para os países ricos viver como a maioria das nações africanas, que “utilizam bem pouco combustíveis fósseis” ou que suas populações vivam como os povos originários e camponeses da América Latina, onde o tempo de trabalho é dedicado principalmente à terra e quase não são utilizados combustíveis, nem agroquímicos.

Um último dado que vincula o capitalismo à predação da natureza é oferecido por um relatório que afirma que as infrações ambientais são a quarta atividade criminosa mais lucrativa do mundo. Referem-se ao desmatamento ilegal, à mineração, à pesca e ao comércio de espécies silvestres que “se tornaram um enorme motor financeiro. Em 2018, estimava-se que geravam de 110 a 281 bilhões de dólares anuais em rendas ilícitas, em escala global, segundo dados da Interpol”.

Como sabemos, o nosso continente é especialmente vulnerável a crimes contra a natureza, devido à sua biodiversidade e abundância de minerais e água. As leis promovidas pelos governos não conseguem deter os empreendimentos extrativistas, nem mitigar os danos ao meio ambiente.

Cabe questionar por que tanto alvoroço em torno da transição energética e o uso de energias renováveis. Hoje, boa parte do poderio do sistema está em potencializar um ambientalismo que não questione o capitalismo, com os mais diversos nomes (incluindo a mineração “verde” ou sustentável), para convencer os ambientalistas de que necessitam acreditar em políticas progressistas.

Não é verdade que grandes eventos como as COP, as conferências mundiais sobre a mulher e contra o racismo da Organização das Nações Unidas não tenham conseguido grande coisa. Conseguiram muito mais do que se poderia esperar, mas de forma indireta: deram vida aos progressistas do mundo que entretêm os de baixo, sem promover mudanças reais.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/636829-a-transicao-energetica-no-capitalismo-impossivel-artigo-de-raul-zibechi

O negacionismo da Terra finita. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

"Produção e consumo da humanidade ultrapassa a capacidade de carga da Terra degradando os ecossistemas e provocando uma grande redução das demais espécies vivas do Planeta" escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, em artigo publicado por EcoDebate, 23-02-2024.

Eis o artigo.

“Acreditar que o crescimento econômico exponencial pode continuar infinitamente
num mundo finito é coisa de louco ou de economista”

Kenneth Boulding (1910-1993)

É incrível como em pleno século XXI tenhamos que lidar com os propagadores da narrativa da Terra plana e com pessoas que desafiam a ciência e até as fotografias que mostram o Planeta na sua forma esférica, flutuando na imensidão do sistema solar. Os “Terraplanistas” (negacionistas da Terra redonda) existem, mas são poucos, ridículos e, em geral, são alvo de chacotas.

Mas existe um outro tipo de negacionista que é mais numeroso, mais oblíquo e está visceralmente entranhado nas diversas instituições da sociedade, aparece na mídia escrita e falada e ocupa espaços nas porosidades do meio (pseudo) científico: são os negacionistas da Terra finita, aquele tipo de pessoa que nega os limites físicos e naturais ao processo continuado de crescimento demoeconômico.

Os “Terrainfinitas” creem que o crescimento demoeconômico pode prosseguir indefinidamente. Encaixam nesta definição todos os negacionistas climáticos que menosprezam os efeitos das atividades antrópicas sobre o aquecimento global, a crise do clima e a crise ambiental (incluindo a 6ª extinção em massa das espécies).

O chamado ambientalismo cornucopiano – que encara o mundo natural como uma fonte abundante e ilimitada de recursos capaz de atender toda a demanda humana – não vê limites para o crescimento da população e da economia. Um grande exemplo do pensamento negacionista da Terra finita está nas publicações do economista neoliberal Julian Simon, que foi um fundamentalista de mercado e um dos fundadores do movimento free-market environment. Seus livros fazem uma defesa cega do crescimento populacional e econômico.

Julian Simon acreditava que o preço das commodities (incluindo alimentos) e da energia fóssil cairia permanentemente na medida em que as forças de mercado pudessem funcionar livremente e, de forma desregulamentada, fizesse a alocação mais eficiente possível dos fatores de produção. Ele ficou famoso ao vencer uma disputa contra Paul Ehrlich na década de 1980, apostando na queda do preço de alguns metais e do petróleo e na eficiência do mercado. Contudo, se a aposta fosse feita na década de 2000 ele teria perdido por larga margem. Em 2021, o Índice de Preços dos Alimentos da FAO bateu todos os recordes desde 1974 e cada década tem apresentado média de preços mais elevados do que a anterior.

Simon era um cético ambiental, isto é, ele não acreditava que as atividades humanas fossem a causa de problemas ambientais globais, como a destruição da camada de ozônio, a acidificação dos oceanos e, especialmente, discordava de que o aquecimento global fosse causado pela emissão de gases de efeito estufa decorrentes da queima de combustíveis fósseis, do metano, etc. Ele defendia a ideia de que a engenhosidade humana e os avanços tecnológicos poderiam contornar todos os problemas ambientais do mundo, sem comprometer as bases da acumulação do regime capitalista em escala local e planetária.

No livro “The Ultimate Resource II: People, Materials, and Environment”, Julian Simon defende, logo na introdução, a ideia de que os recursos naturais estão ficando menos escassos (“natural resources have been becoming less scarce over the long run, right up to the present”) e o mundo está menos poluido (“But we now live in a more healthy and less dirty environment than in earlier centuries”). No capítulo 6 ele defende a ideia – muito repetida por pessoas ingênuas – de que não há limite para a produção de alimentos (“What Are The Limits on Food Production?”) e no capítulo 11 ele defende a ideia de que a oferta de petróleo é infinita (“When Will We Run Out Of Oil? Never!”). E por aí vai.

Para tornar suas posições antiecológicas e reacionárias mais palatáveis, o positivista Simon investiu contra um suposto inimigo neomalthusiano, afirmando o seguinte: “As pessoas são os recursos mais valiosos do mundo; o cérebro humano é o recurso fundamental para solucionar quaisquer problemas econômicos, social e ambiental; quanto maior a população melhor”. Para ele, cada novo bebê é como um bem de produção ou uma galinha poedeira que vai trazer benefícios no futuro (“From the economic point of view an additional child is like a laying chicken, a cacao tree, a computer factory, or a new house. A baby is a durable good in which someone must invest heavily long before the grown adult begins to provide returns on the investment”).

Com este discurso antineomalthusiano, Julian Simon conseguiu o apoio de setores da opinião pública e de formadores de opinião do fundamentalismo religioso, do fundamentalismo de mercado e do conservadorismo moral nas questões reprodutivas. Simon serviu de inspiração para as políticas neoliberais do governo de Ronald Reagan (1981-1988) e para os defensores das políticas pronatalistas de todo tipo (“And there is compelling reason to believe that human nutrition will continue to improve into the indefinite future, even with continued population growth”).

Por trás do discurso pronatalista e antiambiental, a verdadeira intenção de Julian Simon sempre foi defender o fundamentalismo de mercado (“The key elements of such a framework are economic liberty, respect for property, and fair and sensible rules of the market that are enforced equally for all. The world’s problem is not too many people, but lack of political and economic freedom”).

Escrevendo antes do sucesso econômico da China comunista, Julian Simon faz uma defesa, sem fundamentos sólidos, do sucesso da economia capitalista de Taiwan (“In each case the centrally planned communist country began with less population ‘pressure’, as measured by density per square kilometer, than did the market-directed economy. And the communist and non-communist countries also started with much the same birth rates. But the market-directed economies performed much better economically than the centrally-planned economies. This powerful demonstration cuts the ground from under population growth as a likely explanation of poor economic performance”).

Tal posicionamento apologético do mercado e que despreza os impactos ambientais da pegada humana, formou inúmeros seguidores, dentre eles, boa parte do grupo conhecido como os céticos do clima. O escritor dinamarquês Bjørn Lomborg, que escreveu o livro “O ambientalista cético” (The Skeptical Environmentalist) é um dos mais conhecidos discípulos de Julian Simon. Ele utiliza metodologias baseadas na teoria da economia do bem-estar e nas análises de custo-benefício para defender posições neoliberais contra a regulação estatal e a favor da livre atuação das forças do mercado. Lomborg defende os subsídios à indústria do petróleo e acredita que queimar combustíveis fósseis é mais barato do que produzir energia renovável.

Ele se opôs ao protocolo de Kyoto, ao Acordo de Paris e a outras medidas para reduzir as emissões de carbono no curto prazo, argumentando que o mundo deve buscar se adaptar às novas temperaturas, como sendo um fenômeno inevitável, mas que não é causado pelas atividades antrópicas. Caso haja elevação do nível do mar, a solução para a população de países como Tuvalu é emigrar. Ou seja, para Lomborg é mais eficiente seguir a lógica do mercado do que criar políticas de regulação que, na visão dos céticos, distorcem a eficiência da alocação dos recursos produtivos.

Para tornar suas posições positivistas e fundamentalistas de mercado mais palatáveis Bjørn Lomborg diz – na mesma linha de Julian Simon – que toda a população mundial vai ter um padrão de vida muito elevado no final do século XXI e que o mundo não precisa se preocupar com medidas de universalização da saúde reprodutiva e, muito menos com o declínio da fecundidade, mas sim com o combate a problemas de mortalidade que são mais urgentes, como HIV/AIDS, malária e desnutrição. Há também os grandes empresários que buscam vender a ideia da colonização do universo e buscam vender tickets para viagens espaciais (altamente poluidoras e emissoras de gases de efeito estufa).

Ou seja, autores como Julian Simon, Bjørn Lomborg, os bilionários do turismo espacial e os outros neoliberais que são negacionistas da Terra finita defendem que o modelo de produção e consumo da sociedade capitalista é o mais eficiente e o que mais contribuiu para retirar massas de trabalhadores da pobreza, além de elevar o padrão de vida de amplas parcelas da população mundial, como nunca antes na história da humanidade. Eles consideram que os eventuais problemas ambientais podem ser resolvidos no longo prazo com a inventividade do cérebro humano e com respeito à mão invisível do mercado.

Mas há também no espectro político oposto os negacionistas da Terra finita que consideram que o Estado e o planejamento central são capazes de superar a escassez e criar um mundo de abundância, igualdade e justiça para toda a população mundial, sem qualquer restrição ao tamanho da população e da economia. Por exemplo, no campo da esquerda, os chamados economistas neodesenvolvimentistas consideram que o Estado pode implementar políticas fiscais e monetárias expansionistas ilimitadas visando o bem-estar das populações nacionais e da população global sem qualquer restrição mais imperativa sobre os recursos naturais. Existe uma corrente de pensamento que acha que o problema central do mundo é o “Capitaloceno” e não o “Antropoceno”. Ou seja, superando o capitalismo o mundo poderia construir um modo de produção que atendesse toda a demanda da humanidade quase sem restrições ambientais.

Acontece que a população humana cresceu 2 mil vezes durante o Holoceno (últimos 12 mil anos). O primeiro bilhão de habitantes foi alcançado por volta de 1800. O segundo bilhão foi atingido em 1928, o terceiro em 1960, o quarto em 1975, o quinto em 1987, o sexto em 1999, o sétimo em 2011 e o oitavo bilhão de habitantes deverá ser alcançado em 2023, conforme mostra o gráfico abaixo do Our World in Data. Também a Pegada Ecológica ultrapassou em muito a biocapacidade do Planeta, gerando grande déficit ambiental, como mostrado abaixo.

Este crescimento exponencial fez com que o padrão de produção e consumo da humanidade ultrapassasse a capacidade de carga da Terra degradando os ecossistemas e provocando uma grande redução das demais espécies vivas do Planeta que entraram em processo de extinção em massa, com enorme perda da biodiversidade. Existe uma emergência climática e uma emergência ambiental. O aquecimento global pode tornar boa parte da Terra em locais inabitáveis. A 6ª extinção em massa das espécies ameaça a biodiversidade e a redução considerável dos polinizadores que garantem a produção de alimentos.

Para garantir a sustentabilidade ambiental e erradicar o déficit ecológico numa Terra finita há quatro alternativas: 1) mudar o padrão de produção para manter uma economia de baixo carbono e de baixo impacto ambiental; 2) diminuir substancialmente o consumo; 2) diminuir substancialmente o tamanho da população; ou 4) fazer as três alternativas anteriores em conjunto. As alternativas são diversas, mas o decrescimento demoeconômico é um imperativo do século XXI. Como mostrou Vodra (20/09/2021), existem limites evidentes ao crescimento demográfico e econômico.

O mundo vai ter que escolher entre grande quantidade de pessoas com baixa qualidade da vida ambiental ou menor quantidade de pessoas (e consumo) e maior qualidade de vida ecológica. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a COP26 de Glasgow, precisaria mandar um recado claro para a população mundial reafirmando que a Terra é finita e que o aquecimento global é uma ameaça existencial à humanidade.

Mas o que se viu foi muito blá-blá-blá. No caminho atual do crescimento desregrado o mundo avança na direção de um colapso climático e da tragédia do ecocídio, que também é a estrada que leva ao suicídio humano e civilizacional.


Referências:

ALVES, JED. Antropoceno é um conceito mais correto do que Capitaloceno, Ecodebate, 18/09/2020
Disponível do link.

ALVES, JED. O déficit ecológico do Planeta vai além dos segmentos ricos, Ecodebate, 16/062021
Disponível do link.

Julian Simon. More people, greater wealth, more resources, healthier environment, 1994
Disponível do link.

Richard E. Vodra. Are There Limits to Economic Growth? Resilience, 20/09/2021
Disponível do link.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/636823-o-negacionismo-da-terra-finita-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves

 


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