Quase lá: Os impactos e limites do ensino a distância

Concebida como sistema complementar, EaD cresceu a partir de 2015 e hoje responde pela maioria das matrículas no Ensino Superior. Modalidade pode reforçar o individualismo – e eclipsar o imprescindível contato pessoal que a Educação exige

OutrasPalavras

Publicado 14/05/2024 às 18:00

 

Imagem extraída do site da Piauí

 

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Dois polos comandam o sistema universitário brasileiro: o ensino privado, normalmente pautado por instituições não universitárias com fins lucrativos, e as instituições públicas, majoritariamente universitárias, que tradicionalmente lideram o ensino considerado de maior qualidade (Carlotto, 2021). Com a difusão de dispositivos atrelados às tecnologias de informação e comunicação (TICs), como notebooks, smartphones e a conexão de banda larga, o polo privado passou a se expandir com a adoção de um ensino a distância (EaD). Organizados na figura a seguir, os dados mostram que o ingresso dos alunos no EaD tem uma acentuada curva ascendente desde 2015, superando o ensino privado/presencial em 2019.

Figura 1 – Alunos ingressantes no ensino superior público/presencial, privado/presencial e privado a distância, 2010 a 2022. Fonte: MEC/Inep.

 

Com mais de 3 milhões de estudantes ingressantes no EaD em 2022, essa modalidade equivalia nesse ano a 1,8 vezes a soma dos outros dois polos, refletindo o impacto da digitalização na formação profissional, assim como a agilidade das instituições privadas em aproveitar os recursos tecnológicos que se disponibilizavam então. Coloca-se, portanto, uma necessária reflexão sobre a entrada do EaD no ensino superior, seu comportamento frente aos dois polos historicamente constituídos no país e as possíveis conexões que pode ter essa expansão com o fenômeno que temos assistido da queda de procura pela formação de nível superior na modalidade presencial.

 

Para avançar nessa discussão, focamos em dados sobre alunos concluintes, que expressam de forma mais nítida a formação profissional. Como mostra a tabela 11, a modalidade presencial caiu tanto no ensino público, quanto no privado, a partir de 2016, revertendo tendência observada no período 2010-2016. O número de concluintes no ensino público presencial aumentou 30% entre 2010 e 2016 e retraiu 4% entre 2016 e 2022, ainda sofrendo os efeitos da pandemia da Covid-19, enquanto o ensino privado presencial aumentou em 9% entre 2010 e 2016 e retraiu 18% entre 2016 e 2022. Em contrapartida, o ensino privado a distância aumentou em 63% entre 2010 e 2016 e cresceu vultosos 117% entre 2016 e 2022. Como os números do ensino público presencial não caem na mesma proporção que os do ensino privado presencial, observa-se que a expansão do EaD está ocorrendo em substituição ao privado presencial, assim como a ocupação (ou captura) de um mercado novo, viabilizado pelas tecnologias digitais.

É preciso ficar claro que o EaD não é um sistema complementar ao ensino presencial, como pensado originalmente, voltado para regiões sem infraestrutura universitária. O EaD é um sistema concorrente que busca tanto adentrar em novas frentes de expansão no território quanto ganhar espaço em regiões já atendidas por universidades. Como mostra a Tabela 1, verifica-se, de fato, a forte expansão do EaD na região Norte do país, onde os deslocamentos que as pessoas precisam fazer para ter acesso ao ensino superior estão entre os maiores do país, atingindo, por exemplo, uma média de 409 km no estado do Amazonas e 180 km para Acre, Pará e Roraima (IBGE, 2020). Nessa região, os alunos concluintes no EaD saltaram de 18,1% em 2010 para 39,6% em 2022. Contudo, nota-se que o maior percentual de formados por EaD em relação ao ensino presencial (público e privado) está na Região Sul, que conta com uma forte infraestrutura universitária geograficamente distribuída nas metrópoles, capitais regionais e centros sub-regionais. Na região Sul, a participação do EaD passou de 21% do total de concluintes no ensino superior em 2010 para 45,4% em 2022. As regiões Norte e Sul já possuem a maior parcela dos formados no ensino superior na modalidade EaD.

 

Pensando por essa lógica, o EaD foi eficiente em alcançar um perfil de estudantes potenciais não acessado pelos modelos tradicionais, atraídos não apenas pelo acesso remoto que elimina deslocamentos dispendiosos, como também pelo baixo valor das mensalidades e facilidades de ingresso que compensam renunciar a burocracias e exigências requeridas pelas bolsas ofertadas pelas políticas públicas. Contudo, essa modalidade enfrenta limites para transmitir um conhecimento com maior grau de complexidade, que envolve uma dimensão tácita e requer longos anos de contatos pessoais para ser compreendido.

Nesse contexto, importante considerar as diferentes intensidades de penetração do EaD, conforme a área de conhecimento (Tabela 2). Nota-se um baixo percentual do EaD em áreas como ciências naturais, matemática e estatística (que inclui cursos como licenciaturas e bacharelados em química, biologia, ecologia, geologia e oceanografia); agricultura, silvicultura, pesca e veterinária; saúde e bem-estar (que inclui cursos de medicina e odontologia); e engenharia, produção e construção. A continuidade do ensino presencial se explica por serem cursos que combinam a necessidade de um aprendizado tácito com elevados dispêndios em laboratórios e/ou campos de experimentações e atividades de campo. Destaca-se também a área de ciências sociais, comunicação e informação (que inclui o curso de psicologia), onde a dimensão tácita também restringe a expansão do EaD.

No lado oposto, estão as áreas de computação e TIC; educação; negócios, administração e direito; e artes e humanidades, com expressivos crescimentos do EaD privado. Merece destaque a área da computação e TIC, cujo EaD privado representou 15,8% dos alunos concluintes em 2016 e 51,1% em 2022, em uma clara substituição de matrículas do ensino privado presencial para o EaD. A área de educação, também merece uma atenção especial por apresentar o maior percentual de profissionais (cerca de 60,0% em 2022) formados na modalidade EaD.

 
O elevado crescimento do EaD na área de computação sugere não apenas que esta é tida como uma área “antenada aos tempos modernos”, mas também que os jovens avaliam que o que esperam aprender não precisa ser em formato presencial, prescinde da interação face-a-face. Contudo, o crescimento do EaD na computação suscita reflexões, inclusive sobre os efeitos do isolamento ao longo da formação a distância sobre a subjetividade dos indivíduos, possivelmente acentuando a tendência contemporânea ao individualismo, e, por consequência, introduzindo vieses nos códigos por eles desenvolvidos em sua atuação profissional. Em que pese as efetivas oportunidades abertas a uma população antes impedida de acessar o ensino superior, a formação via EaD pode reduzir as chances de formação de redes de relacionamento (“networking”) tão necessárias na futura atuação profissional.
 

 

As áreas de educação e artes e humanidades (que compreende cursos de licenciatura como história e letras) por não demandarem grandes recursos técnicos e poderem ser acessadas por jovens docentes sem formação superior que já atuam nos rincões do país, acabam sendo um dos principais campos de expansão do EaD. É preocupante a formação de professores que lidam com o ensino de crianças e adolescentes, que depende fundamentalmente de um trato pessoal, por relações a longa-distância incapazes de simular o ambiente de uma sala de aula (Palhares, 2022).

Considerando, por um lado, que a crescente presença da ciência em nossa vida cotidiana demanda maior envolvimento de diferentes camadas sociais, sobretudo da população de baixa renda, na produção do conhecimento, e, por outro lado, que o contato face-a-face é central para tornar esse aprendizado eficaz, nosso entendimento é que o momento atual fortalece a importância de um ensino público, presencial, gratuito, com alta qualidade. O EaD é um meio de formar muita gente com limitadas habilidades, suscetível à superexploração do trabalho, contribuindo para o achatamento da participação dos salários no total da riqueza gerada no país. Esses profissionais podem atender algumas demandas específicas e pontuais, mas não tem capacidade de produzir efeitos sistêmicos condizentes com nossos complexos desafios.

Finalmente, é bom lembrar que a emergência e expansão de um novo mercado de ensino superior promovido pelas TICs ocorrem no contexto da revolução desencadeada pela extraordinária difusão de aplicações de inteligência artificial, com forte repercussão sobre os mais jovens, cujas profissões sofrerão mais intensos e prolongados impactos. Nesse contexto, já são frequentes os questionamentos no espaço público em geral acerca da valia de cursos mais longos e custosos, sendo as universidades públicas aquelas às quais se dirigem as críticas mais ácidas. As transformações aqui observadas são modestas contribuições a um debate qualificado acerca dos efeitos da revolução digital sobre o ensino superior público. Debate esse cuja urgência se acentua diante da greve em curso, que pode bem oferecer um espaço privilegiado para as necessárias reflexões sobre a missão da universidade pública na formação das novas gerações.

Referências

CARLOTTO, M. O campo brasileiro de ensino superior em perspectiva estrutural: tendências históricas e contemporâneas. Pensata, 10, n. 1, 2021.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades – 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior. Brasilia: MEC, 2023. Disponível em: https://bit.ly/3xmJmAY. Acesso em: 03 de maio de 2024.

PALHARES, I. A cada dez professores formados no país, seis fizeram graduação a distância. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/4dMVCi6. Acesso em 12 de maio de 2024

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2014.

STORPER, M.; VENABLES, A. J. Buzz: face-to-face contact and the urban economy. Journal of Economic Geography, 4, n. 4, p. 351-370, 2004.

1 O somatório dos percentuais da tabela não será igual a 100% por não termos incluído os dados do EaD público. Essa modalidade de ensino ainda é pouco representativa no país, respondendo em 2022 por 1,3% do total de alunos concluintes.



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