A lista de violências é infindável. Só mesmo estando na nossa pele para entender o que é ter que resistir a tudo isso. Resistir a todas as tentativas de deslegitimar nossas ideias, nossas dores, nossas lutas. Tudo o que, sentido na pela, deixa na alma marcas indeléveis.
Publicado 01/08/2022 em OutrasPalavras
Ser mulher é, em si, uma dor profunda. Nenhum homem, nem mesmo o mais consciente, sensível, empático e aliado das mulheres na luta feminista, consegue imaginar o que é isso. E é triste demais saber que, a despeito da nossa luta no presente, e das conquistas de todas as feministas que vieram antes, é tão utópica uma sociedade que não mais tolere as opressões machistas. Tão distante. Quantas gerações de mulheres seguirão sangrando.
São brutais as violências a que somos submetidas cotidianamente. São insuportáveis os horrores que vieram a público nas últimas semanas e que, na realidade, ocorrem o tempo todo, só que sem testemunhas, provas, holofotes. Quando vira matéria jornalística, provoca revolta e enxurrada de manifestações em redes sociais. Mas, e depois? Nada muda. São as mesmas violências machistas sempre.
Só uma mulher consegue alcançar a profundidade real de tudo isso que nos desumaniza e destroça. Só uma mulher sente a dor dessa tortura que segue sendo praticada como regra.
É o anestesista que droga e estupra uma mulher durante o parto; o marido que agride a esposa durante uma discussão; o patrão que dá tapa no rosto da diarista; o parente ou conhecido da família que estupra uma menina; o Judiciário que nega o direito ao aborto; o chefe que assedia a funcionária; o ex que mata a mulher que rompeu com ele; o homem que deixa as tarefas domésticas e parentais para a esposa; o que faz isso e ainda justifica a postura com a alegação de que é ele quem paga as contas; o colega de trabalho que não aceita ser contrariado pelas mulheres da equipe; o passageiro que ejacula na perna da mulher no transporte coletivo; o homem que não apoia a construção profissional da companheira; a empresa que remunera melhor homens do que mulheres; o motorista que assedia a passageira; o cara que não aceita o não da mulher numa noitada; o que se utiliza da embriaguez de uma mulher para estuprá-la numa festa; o homem que subestima as capacidades da esposa e desqualifica suas opiniões; o deputado que tenta silenciar a deputada em plenário; o presidente que manda a repórter que lhe fez uma pergunta calar a boca; o pastor que abusa da obreira da igreja; o filho que só reconhece o pai como autoridade; o professor que assedia a aluna; o bombado que filma o corpo da mulher na academia; o stalker que persegue mulheres em redes sociais; o marido que culpa a esposa cantada por outro homem; o tio que faz piada machista no almoço em família; o vizinho casado que dá em cima da mulher que se mudou pro prédio no elevador; o cara que deslegitima o discurso da mulher na roda de amigos; o homem que responsabiliza a vítima do estupro; o marido que considera seu trabalho mais relevante que o da esposa e joga na cara dela que ela ganha menos; o chefe que demite a funcionária que retorna da licença-maternidade, o cônjuge indiferente aos desafios do puerpério da companheira; o homem que mantém a esposa ou filha em cárcere privado; o homem que chama a mulher de desequilibrada quando ela, exausta de todas as opressões que sofre, muitas vezes depois de ser ofendida por esse homem, reage, grita, sobe o tom de voz numa discussão; o homem que nega à mulher o direito de reagir às violências machistas.
A lista de violências é infindável. Violências de todos os tipos, em todos os âmbitos, acontecendo todos os dias, em todos os lugares e meios. Só mesmo estando na nossa pele para entender o que é ter que resistir a tudo isso. Resistir a todas as tentativas de deslegitimar nossas ideias, nossas dores, nossas lutas. Só mesmo sentindo na pele o que, na alma, deixa marcas indeléveis.