Cândido Grzybowski
A renovação democrática que o Governo Lula apontou tem, sem dúvida, uma dimensão política, institucional e legal que cabe aos poderes impulsionar. Tarefa difícil porque exige ação exemplar, dentro do estrito respeito às regras constitucionais, dos que receberam os mandatos pelo voto democrático. No entanto, os poderes devem mover-se tendo presente os blocos históricos de correlações de forças, que exigem muita sabedoria política, liderança, determinação e muita negociação. Isto Lula tem de sobra. O resultado não é sempre o desejável, mas o possível no momento. Assim são os governos democráticos. Mas cabe à cidadania com sua ação ser ator decisivo no resultado.
Nunca é demais lembrar que a força viva das democracias não reside nas instituições estatais, por mais necessárias e fundamentais que sejam. Para ser claro, lembro aqui os princípios e valores éticos que qualificam os direitos fundamentais da democracia: liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade de todas e todos. São direitos nossos, da cidadania constituinte e instituinte da democracia. O que esperamos e exigimos legitimamente é que as instituições estatais garantam tais princípios e direitos a todas e todos, sem discriminações. É com base neles que poderemos construir uma sociedade com sentido de viver e conviver que tenha lugar para todo mundo, sem exclusões e destruições ecossociais.
Contudo, a “cultura democrática de direitos” é, por si mesmo, algo vivo, em disputa e em construção permanente no seio da própria sociedade civil. Nunca é possível considerá-la estabelecida e pronta! O nosso presente histórico é suficientemente eloquente para ver o quanto ainda são frágeis a nossa cultura democrática e suas bases. Uma potente estratégica de comunicação implantada no Brasil com difusão de informações falsas via as redes digitais, com articulação internacional, criou um ambiente corrosivo do sentido mesmo da democracia, seus princípios, valores e sua institucionalidade. No nascimento de tal esfera paralela, os grandes meios abertos de comunicação também contribuíram com sua pregação em defesa da criminosa operação policial e judicial da “lava jato”. Aí deu no que deu em termos de ataque amplo à democracia.
Não vale a pena lembrar toda a agenda de desconstrução sistemática de direitos e conquistas democráticas desde 2016, com o golpe parlamentar contra da Presidente Dilma. Mas para a questão da cultura democrática gostaria de destacar o ressurgimento em pleno cenário de uma direita autoritária que sempre tivemos e a estratégia de alimentar e difundir amplamente uma cultura de ódio e exclusão de viés fascista no seio da sociedade civil. Temos um câncer destrutivo de princípios e valores éticos da democracia ecossocial entre nós e bastante difundido para a gente ficar muito vigilante e ativa. O retrato do que aconteceu com o Povo Yanomami mostra o quanto de destruição tanto democrática e como ecossocial, com genocídio, é capaz de produzir uma proposta assim em pouco tempo. Isto sem contar a agressão destrutiva dos símbolos do poder democrático uma semana após a posse do Lula. Temos muito a enfrentar democraticamente.
A vigilância e ação cidadã em prol da democracia precisam ser permanentes. E é nos territórios em que vivemos que ela deve criar raízes de resiliência, pois eles são a base viva em que a sociedade se faz. Os territórios são nossos, um comum natural e construído e compartilhado entre muitos. São de fato nossos? São concebidos e vividos como nossos, com um comum que nos cabe qualificar e, de algum modo, gerir? Se são e quando são territórios comuns e geridos com participação plena da cidadania, o Estado os reconhece? Ou o Estado continua deixando tudo aos milicianos, traficantes, especuladores de terras, grandes grupos econômicos e financeiros e seus grandes projetos privados, com os poderes institucionais capturados ao seu serviço? Esta é uma questão democrática essencial, nas floretas, nas águas, nos campos e nas cidades, que tem a ver com consciência e ação cidadã como condição sine qua não.
Os nossos territórios formam um mosaico com o conjunto de todos os demais. Nessa integração e interdependência é que se forma o sentido de viver e conviver em conjuntos que nos tornam iguais na diversidade, formam regiões e uma nação democrática.
Por isto, surgem a necessidade e a legitimidade de integrar e participar de movimentos, redes, fóruns, conselhos, coalizões e grandes manifestações, bem como de partidos com expressões da diversidade em disputa. O fazer e o disputar políticas são uma condição fundamental para a ação da cidadania se desenvolver e adquirir autonomia e potência. Mas suas raízes são territoriais. Elas tem mais força quanto mais bem plantadas no seio das células da sociedade civil, que são os territórios de vida e trabalho, de convivência e de compartilhamento, sejam urbanos ou rurais. Mas, são territórios que precisam ser tornados de cidadania, pois as lógicas econômicas e de poder dominantes os tem como territórios de exploração. Só o fato de termos enormes “periferias” por toda parte dá a dimensão do problema real.
A cultura democrática como um comum praticado e pensado, neste sentido, deve ter raízes e se inspirar na diversidade de territórios de cidadania, um grande dom que um país gigante como o Brasil pode conter. Fortalecer tais raízes, cuidá-las e se inspirar nelas é o que pode ser a base de uma cultura democrática ecossocial transformadora. Todas e todos são necessários, vendo com tal ótica. O que a cultura democrática precisa é aguçar um olhar de direitos ecossociais em questão sobre os modos de viver e enfrentar os muitos desafios do cotidiano. A cultura democrática cria raízes no caldo formado pelas vivências, estratégias diante de carências e sofrimentos, as resistências, as redes de solidariedade, as expressões culturais, os desejos, os sonhos e as preocupações compartidas. Os canais de conexão, informação e comunicação são os elos de um movimento construtor de cultura democrática que alimentam o sentido de pertencer e conviver, as práticas de proteção e cuidado, as experiências culturais de todo tipo e de busca de reconhecimentos dos direitos iguais possíveis no momento histórico dado. É disto que surgem as potentes identidades e forças da diversidade cidadã, capazes de qualificar as democracias.
Conflitos e disputas que surgem daí são parte da vida e motores de democracias, pois temos direito à igualdade na nossa enorme diversidade. Quando este caldo de ação cidadã tem o sentido de buscar formas de cuidar, conviver e compartilhar, pela participação social ampla transformaremos conflitos e disputas em forças construtores de democracia ecossocial viva e includente. Já fizemos e continuamos fazendo isto tudo. A hora é de renovar e voltar a dar maior potência à nossa ação, condição para Lula liderar um governo que valha a pena ter. Bota desafio nisto para renovar nossa democracia!
fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/