O novo Dossiê sobre Feminicídios no Ceará elaborado pelo Fórum Cearense de Mulheres demonstra a subnotificação de casos de feminicídios no Ceará. Para o grupo, existe um problema sistêmico nas diversas estâncias públicas sobre o entendimento do que é um feminicídio, o que é ser mulher e da quantidade de casos notificados oficialmente.
A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista. Publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Dossiê sobre Feminicídios no Ceará, elaborado pelo Fórum Cearense de Mulheres (FCM), vinculado à Articulação de Mulheres Brasileira (AMB), denuncia a subnotificação pelo governo do Estado, via Secretaria de Segurança Pública e de Defesa Social (SSPDS), de dados sobre homicídios de mulheres e meninas. Para subsidiar a denúncia, o FMC trouxe contradados no dossiê depois de analisar e pesquisar homicídios de mulheres e meninas em 2019 a 2021.
O FCM produz os contradados, argumenta, “como uma ferramenta de luta feminista pelo fim da violência de gênero em sua consubstancialidade com raça e classe. Acreditamos que é necessário chamar a atenção do Estado – sobretudo dos órgãos de segurança pública e de justiça – para as mortes de meninas e de mulheres fora do contexto mais tradicional do feminicídio íntimo”, ou seja, fora do ambiente doméstico ou familiar.
Ao se reportar ao ano de 2019, o FCM encontrou diferenças gritantes quando analisou os dados disponibilizados pela SSPDS, informando o percentual de 15,5% das mortes de mulheres e meninas por feminicídio. Em contrapartida, na pesquisa do Fórum os crimes que vitimou mulheres e meninas representaram 41,3% do total dos Crimes Violentos Letais e Intencionais naquele ano. O organismo de segurança do governo só considerou na sua estatística o feminicídio íntimo, o que o Fórum contesta. O dossiê constata que mortes de mulheres com componentes de violência de gênero é muito superior ao divulgado pelo órgão.
Em 2020, o total de Crimes Violentos Letais e Intencionais, levantado pelo FCM, chegou a 336 casos, e 73 casos de morte de meninas até 19 anos de idade, quando, no mesmo ano, a SSPDS registrou apenas 29 casos de feminicídio. O mesmo critério foi usado pelo órgão de segurança para as estatísticas de 2021 e 2022.
O FCM denuncia, também, os casos que aparecem nas tabelas da SSPDS sob a notificação “não há informações suficientes”, ou seja, a inexistência de quaisquer dados, notícias e informações que possibilitem a tipificação do crime. Em 2020, foram 207 os casos nessas condições.
Daí que o FMC precisa recorrer a pesquisas próprias, com buscas em sites de notícias, blogs, redes sociais e veículos de comunicação do interior do Estado. Também recorreu ao sistema de informações processuais do Tribunal de Justiça do Ceará, onde tramitam os processos judiciais – eletrônicos – de todas as comarcas do Estado.
Uma outra dificuldade encontrada é que desde outubro de 2020 os nomes das mulheres mortas por violência não foram mais divulgados pela SSPDS sob a alegação do cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados, o que o FMC contesta, pois entende que a lei não se aplica a pessoas falecidas.
O dossiê destaca que o “transfeminicídios” – assassinato de transexuais e travestir por razões de gênero – não aparece nas estatísticas do Estado, assim como não há dados oficiais sobre o pertencimento étnico-racial das mulheres e vítimas de homicídios. O documento aponta que mulheres negras morrem cinco vezes mais que brancas. “A invisibilidade de pessoas trans quando de sua morte é, em nosso entender, uma outra forma de assassiná-las pela segunda vez”, frisa o FMC. Ele entende que a ausência de dados sobre o pertencimento étnico-racial das mulheres e meninas vítimas de homicídio, incluindo os feminicídios, “só torna mais evidente como o racismo está intrínseco ao modo como são formatados os dados e as política de segurança no Ceará”.
A capital Fortaleza é, segundo o dossiê, a sexta capital mais violenta no Brasil quando computado o número de mortes por 100 mil habitantes. Para o FMC, “é mais que urgente pensarmos – sociedade civil e poder público – numa agenda de prevenção aos feminicídios que incluam meninas de até 19 anos”.
O dossiê arrola sugestões aos órgãos do Estado e instituições da Justiça para proverem uma política de seguranças às mulheres. Sugere à SSPDS que registre os casos de mortes violentas de mulheres e meninas inicialmente como feminicídios e não como homicídio doloso, instaurando daí o processo de investigação. Pede a sistematização e publicação periódica dos dados sobre crimes contra mulheres e a inclusão do quesito cor/raça nos dados de crimes violentos e sobre crimes contra pessoas trans.
Ao Tribunal de Justiça do Estado, o FMC pede a ampliação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar, de modo especial nos municípios centrais das macrorregiões do Estado. Sugere às instituições a realização de cursos periódicos sobre violência de gênero com foco na aplicação das Diretrizes Nacionais do Feminicídio e a elaboração de uma política estadual de prevenção e enfrentamento ao feminicídio.
O dossiê constatou o aumento do percentual de crimes violentos letais cometidos com arma de fogo contra mulheres, que era de 67,1% dos casos em 2019 e passou para 79,7% no ano seguinte, 76,9% em 2021 e 73,8% em 2022. “Compreendemos que o gesto da ‘arminha’ com a mão utilizada nas campanhas eleitorais de Jair Bolsonaro é, na verdade, uma arma apontada para as mulheres e para as meninas”.
O dossiê fecha suas páginas com a admoestação de Verônica Isidoro, mulher negra e sapatão. É preciso “cuidar umas das outras e assim ter a força para enfrentar o silenciamento, a aniquilação, a violência e o descaso governamental. Estamos juntas! Sempre!”
O dossiê completo está disponível em https://ambfeminista.org.br/wp-content/uploads/2023/03/2023-Dossie-Contra-dados-sobre-Feminicidios-no-Ceara.pdf.
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