O Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19 lança o Informe Desconstituição dos Serviços Públicos no Brasil com dados das áreas da educação, saúde, segurança alimentar e políticas socioambientais durante o período mais crítico da pandemia no país
por Ivonne Ferreira
O Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19 lança o Informe Desconstituição dos Serviços Públicos no Brasil com dados das áreas da educação, saúde, segurança alimentar e políticas socioambientais durante o período mais crítico da pandemia no país. Nestes segmentos, verifica-se como a atuação do governo federal produziu significativos impactos nos direitos sociais e desafios na luta em defesa dos direitos humanos.
Em adição, o estímulo ao ódio e à violência por parte do presidente da República, as disputas entre os poderes e entre as esferas federativas, a interrupção de longos ciclos de políticas públicas e o desfinanciamento das políticas sociais produziram a maior e mais grave crise de toda história brasileira, desde 1988.
O Informe pretende mostrar também o avanço no quadro de desmantelamento dos serviços públicos, no contexto da pandemia, e os indicadores de como este cenário tem impactado nas violações dos direitos humanos, sobretudo da população negra, dos povos e comunidades tradicionais, das mulheres e das pessoas LGBTQIA+.
O sucateamento da educação pública no Brasil
A pesquisa revela que na área da educação, as situações de desigualdades social, racial, econômica e de gênero foram agravadas durante a pandemia por causa, principalmente, das dificuldades no acesso à internet e da omissão do governo federal na coordenação das políticas educacionais, acarretando no aumento do índice de evasão escolar. Para piorar, a falta de planejamento orçamentário para 2023 confirma a ausência de estratégia nacional sobre como corrigir as assimetrias sociais no retorno das aulas presenciais.
No que se refere ao acesso à internet, de acordo com a PNAD Contínua TIC, de 2020, cerca de 36,5 milhões de pessoas não possuíam acesso à rede em 2019. Neste mesmo ano, 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas afirmaram que não possuíam computadores em casa e 21% tinham acesso à internet somente através do celular. Estes dados mostram que no período anterior a pandemia da Covid-19, o acesso às tecnologias da comunicação e informação no país não comportava a adoção de ensino remoto sem o desenvolvimento de estratégias e dotação de recursos para a aquisição de equipamentos e conectividade, ações que poderiam evitar o agravamento das desigualdades e assimetrias sociais e econômicas entre estudantes das redes pública e privada.
As diferenças regionais no acesso à internet também são gritantes. Nas regiões Norte e Nordeste apenas 68,4% e 77% de estudantes da rede pública, respectivamente, tinham acesso à internet. Nas outras regiões, este percentual ficou entre 88,6% a 91,3%, uma diferença de cerca de 20% entre as regiões. Além disto, a maioria das pessoas sem acesso à internet é negra ou indígena, aumentando a desigualdade já existente se considerarmos a cor, raça e etnia dos estudantes.
Esta dificuldade que muitas crianças, adolescentes e jovens tiveram para estudar durante a pandemia pode ser uma fonte de ampliação da desigualdade no futuro, pois os estudantes que não puderam estudar neste período estão em desvantagem em relação àqueles que tiveram acesso ao ensino remoto e as consequências negativas para os estudantes com piores condições econômicas e sociais podem ter sido ampliadas de forma considerável.
Falta de coordenação do MEC e aumento da evasão escolar
O levantamento feito também traz informações recentes sobre a falta de coordenação do Ministério da Educação (MEC), entre 2019 e 2022, e o agravamento na evasão escolar. Dados revelam que, neste período, o MEC atuou de forma sistemática com o objetivo de desmontar as políticas educacionais, fruto de anos de luta das organizações da sociedade civil e dos movimentos organizados. Os gestores que passaram pela pasta durante a pandemia da Covid-19 se empenharam em realizar medidas meramente polêmicas voltadas ao fortalecimento de um projeto político conservador. Além disto, continuaram afrontando a democracia, a laicidade e a liberdade de pensamento; realizaram cortes sistemáticos de verbas para a educação e as políticas interfederativas e ações em parceria com os entes subnacionais foram desarticuladas.
“O ministério tem um conjunto de profissionais de altíssima qualidade que estão ali para servir o Estado e não governo A, B ou C. A condução de políticas educacionais é uma das maiores perdas da gestão do MEC”, afirma o professor Erasto Fortes, da área de políticas educacionais e gestão da educação da Universidade de Brasília (UnB).
Os dados mostram também que cerca de 1,38 milhões de alunos com idade entre 6 e 17 anos, ou cerca de 3,8%, abandonaram as escolas em 2020. Uma taxa superior à média da PNAD de 2019, que registrou um percentual de evasão de 2% dos estudantes. Na faixa etária de 5 a 9 anos, a taxa de evasão sai de 1,41%, em 2019, para 5,5%, em 2020. Em 2021, este índice chegou a 4,25%.
De acordo com o IBGE, mais de 5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação em 2020, atingindo, principalmente, as crianças e adolescentes pretos(as), pardos(as) e indígenas. Além disto, existe uma relação estreita entre pobreza e exclusão da escola. Em 2019, mais de 90% dos estudantes fora da escola viviam em famílias com renda per capita menor que um salário mínimo. Este patamar de renda indica que as condições de vida e o acesso às demais condições de dignidade e aos demais direitos também podem estar comprometidos.
No levantamento feito para verificar como o Ministério da Educação (MEC) pretende solucionar estes problemas, o relatório do TCU, de 2021, aponta que não há sinais de planejamento para enfrentar os efeitos negativos da pandemia na pasta da educação, nem planos de contingência para alterar essa realidade nos próximos anos.
O descaso nas políticas de saúde
Os dados da área da saúde comprovam que o governo federal abandonou os brasileiros à própria sorte durante a pandemia de Covid-19. O Programa Nacional de Imunizações (PNI), responsável pelo controle das doenças no país, está literalmente abandonado desde julho de 2021, quando a então diretora Franciele Fontana deixou o cargo. O seu substituto, Ricardo Gurgel, nem chegou a tomar posse, porque era favorável às vacinas. Ficou evidente que um dos requisitos para coordenar o PNI é que o indicado seja contra as vacinas. Contraditório? Para este governo apenas mais uma importante área garantida pela Constituição Federal, o direito à saúde pública, que está sendo sucateada.
Desde 2020, a pandemia da Covid-19 já matou cerca de 700 mil brasileiros e brasileiras e não tem ninguém para coordenar a área responsável pela vacinação. O descaso atinge a imunização de outras doenças. A cobertura vacinal caiu para 75%, em 2020, contra 97% de cobertura, em 2015. Doenças como a tuberculose, poliomielite, pneumonia, meningite, hepatites A e B podem voltar a se alastrar na sociedade brasileira pressionando ainda mais o sistema de saúde e ameaçando a vida da população.
O Brasil volta ao Mapa da Fome
A crise econômica no período da pandemia levou muitas pessoas a buscarem doações de alimentos e cenas da população comprando ossos, carcaças e peles de frango por não possuírem dinheiro o suficiente para comprar comida, se tornou frequente.
Segundo a FAO, o Brasil está em um cenário mais grave do que a média global. Entre 2019 e 2021, 4,1% da população brasileira estava subalimentada. No levantamento anterior, este percentual era de 1,7%. O país chegou a esta grave situação por vários fatores como o desemprego, a perda de renda, o modelo de produção e o acesso aos recursos hídricos, além da fragilização da agricultura familiar e o desmonte das políticas públicas.
Na agropecuária, a desigualdade racial também é visível: produtores pretos ou pardos se concentram em pequenos estabelecimentos, enquanto os brancos são a maioria conforme aumenta a área. A estrutura agrária brasileira é, ao mesmo tempo, um exemplo de concentração de terras e de reprodução de lógicas racistas de poder e de exclusão que afetam a produção de alimentos e o manejo dos recursos naturais. Inúmeros conflitos e violências expulsaram o povo negro de seus territórios produzindo ao longo dos séculos intensos êxodos para as cidades. Hoje, a maioria da população negra se encontra nos centros urbanos e novamente privada de direitos fundamentais como território, educação, trabalho, renda e, consequentemente, alimentação.
Os conflitos socioambientais triplicaram nos últimos anos
O levantamento traz também dados sobre a Amazônia e como a região vem sendo dominada pela lógica dos grupos armados e criminosos, que parece influenciar na vida da população e vem corrompendo e ocupando a economia, a política e o cotidiano das pessoas. Em 2021, a Amazônia Legal, que concentra apenas 24% da população rural do país, registrou três vezes mais conflitos que o restante da região. Foram 29 mortes na região, que é composta pelos estados do Norte do país, além do Mato Grosso e Maranhão.
Taxas de mortes violentas intencionais, por tipo de município rural-urbano Brasil e Amazônia Legal
Fonte: Adaptado a partir de Couto (2022, p. 54). Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; PC-MG; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O número de conflitos por terra na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) já supera todos os governos anteriores desde a redemocratização, em 1985. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre 2019 e 2021, o país somou 4.078 conflitos gerados pela tensão no campo. Em apenas três anos, estes dados já superam o da gestão anterior que foi de 3.973 conflitos por terra entre 2015 e 2018.
Conflitos por terra no Brasil de 1985 a 2021 – conforme mandatos dos presidentes da república
Fonte: Adaptado a partir de Madeiro (2022b)
*Nota: Governo ainda incompleto.
O Informe mostra que as consequências da desconstituição dos serviços públicos têm ocasionado o aumento da violência no campo e o desmonte das políticas públicas fundiárias e ambientais, colocando grupos sociais já historicamente vulnerabilizados numa situação de extrema violência. Os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os ribeirinhos, os pescadores, os trabalhadores rurais e os pequenos proprietários têm seus direitos frequentemente violados com o crescimento do déficit democrático e as fissuras nas instituições do Estado que deveriam se encarregar pela garantia desses direitos.
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2022/10/Desconstituicao-dos-Servicos-Publicos-no-Brasil.pdf