Quase lá: Tráfico de pessoas, exploração sexual e trabalho escravo: uma conexão alarmante no Brasil

No Brasil, entre 2012 a 2019, foram registradas 5.125 denúncias de tráfico humano no Disque Direitos Humanos (Disque 100) e 776 denúncias na Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180)

 

Paola Lima
Publicado em 21/7/2023 - Agência Senado

No próximo dia 30 de julho, o Brasil se une a países ao redor do mundo para marcar o Dia de Combate ao Tráfico de Pessoas. A data tem como objetivo alertar a sociedade sobre o crime que afeta cerca de 2,5 milhões de pessoas e movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A atividade criminosa é persistente por ser lucrativa e por estar diretamente ligada à desigualdade social, econômica, racial e de gênero. Essas desigualdades, também chamadas de estruturais por serem sistemáticas e duradouras, contribuem para que grupos vulneráveis da população, como as mulheres e crianças pobres, os migrantes, os refugiados e os socialmente excluídos, aceitem propostas enganadoras e abusivas.

No Brasil, entre 2012 a 2019, foram registradas 5.125 denúncias de tráfico humano no Disque Direitos Humanos (Disque 100) e 776 denúncias na Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), ambos canais de atendimento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Entre os anos de 2010 e 2022 foram contabilizadas 1.901 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN). Além disso, 60.251 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão entre 1995 e 2022, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

Esses números não representam a totalidade de casos existentes no país. A suposição é de que haja muito mais, uma vez que não há um sistema unificado de coleta de dados sobre o tema. Os registros atuais são feitos por órgãos do governo e de instituições que não podem ser somados, considerando que não são utilizados os mesmos critérios para o registro das situações de tráfico, conforme aponta o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), no Relatório Nacional Sobre Tráfico de Pessoas (2017-2020).

A ONU estima que o crime de tráfico de pessoas faça 2,5 milhões de vítimas por ano em todo o mundo UN/MINUSTAH

Violência de gênero

As mulheres e as meninas são a maioria das vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual no Brasil. Nos últimos dez anos, 96% das vítimas desse crime em ações penais com decisão em segunda instância na Justiça Federal eram mulheres. As informações são de relatório sobre o funcionamento do sistema de justiça brasileiro na repressão do tráfico internacional de pessoas, feito pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021. O relatório reúne 144 ações penais com decisão em segunda instância da Justiça Federal.

O Brasil é indicado como o país de origem de 92% das 714 vítimas citadas nos processos. Quase todas as vítimas brasileiras (98%) foram levadas para o exterior ou, pelo menos, houve a tentativa de enviá-las, para a prática de prostituição, em sua maioria na Europa. A Espanha é o país que mais recebeu as vítimas traficadas do Brasil (56,94%), seguida por Portugal, Itália, Suíça e Suriname. Estados Unidos, Israel e Guiana também foram destinos escolhidos para o tráfico.

Os meios mais utilizados para cometer o crime foram fraude (50,69%), abuso de situação de vulnerabilidade (22,91%), coação e grave ameaça (4,16%).

Mulheres e meninas são as vítimas mais frequentes do tráfico de pessoas UNODC

A mestre em Relações Internacionais e Integração na América Latina, Anna Carolina da Conceição Aureliano, explica porque mulheres e meninas são a grande maioria das vítimas:

— É um crime que tem perspectiva de gênero. As relações desiguais de gênero socialmente construídas, culturalmente aceitas e historicamente reproduzidas confirmam-se de forma definitiva no âmbito do tráfico de pessoas, configurando-se como uma das piores formas de violência de gênero.

Para Anna Carolina, que também é especialista em temas relacionados à perspectiva de gênero e tráfico humano, os dados mais recentes sobre a exploração de mulheres são essenciais para a eficácia da prevenção, detecção e combate ao crime e para o atendimento às vítimas.

— Ainda é necessário caminhar para alcançar o combate aos elementos inerentes ao fenômeno do tráfico internacional de pessoas, sobretudo no que se refere à articulação e transversalização das políticas nacionais e regionais, para a efetividade de uma rede de enfrentamento, com estratégias de superação das desigualdades e violências de gênero — conclui a especialista.

Trabalho escravo

Além da exploração sexual, o trabalho escravo é outra finalidade comum ao tráfico de pessoas. A escravidão moderna atinge 50 milhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização Nacional do Trabalho (OIT). A procuradora do Ministério Público do Trabalho Andrea Gondim explica que o principal desafio para o combate do tráfico de pessoas, principalmente da exploração de trabalhadores escravizados, está relacionado à superação da pobreza e desigualdade social.

— As pessoas aceitam uma oferta de emprego sempre buscando mudar ou melhorar de vida e buscar melhores condições de trabalho. Então, se a gente vive num contexto de desigualdade social e de pobreza, as pessoas vão querer aceitar essas propostas e migrar para locais em que supostamente teriam melhores condições de vida e de trabalho — afirma.

Os locais de naturalidade e os de residência dos trabalhadores resgatados são geralmente marcados por baixo índice de desenvolvimento humano e costumam se caracterizar pela falta de oportunidades de emprego, pela pobreza, baixa escolaridade, desigualdade e violência. Já os locais de atração em que foram resgatados os trabalhadores possuem dinamismo produtivo e econômico. Nesses locais há a demanda por trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação profissional ou educação formal para exercer atividades de baixa remuneração. 

Legislação

Como medida de prevenção, repressão e punição ao tráfico de pessoas, foi assinado em 2000 o Protocolo de Palermo, criado pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. O texto, constituído por 41 artigos, reúne orientações aos países para enfrentamento e combate ao crime. O Brasil ratificou o protocolo por meio do Decreto nº 5.017, em 2004. O documento define o tráfico humano como sendo o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de posição de vulnerabilidade. O crime também pode ser caracterizado pela prática de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração.

Na legislação brasileira, o crime de tráfico de pessoas abrangia apenas a exploração sexual. Só em 2016 foram incluídas outras modalidades, após os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Tráfico de Pessoas, que funcionou no Senado entre 2011 e 2012. O relatório final da CPI mostrou que o Brasil aparece na rota do tráfico humano, tanto como origem quanto como destino final. Foram identificadas 110 rotas de tráfico interno e 131 de tráfico internacional, sendo a maioria na região Norte, onde se localiza a maior parte das fronteiras internacionais. As ações da CPI resultaram na Lei 13.344, de 2016, que incluiu na legislação novas modalidades do crime: trabalho análogo à escravidão, servidão, adoção ilegal e remoção de órgãos e tecidos. 

Desde 2016 a Lei 13.344 prevê punição para a remoção e o tráfico e órgãos e tecidos Reprodução/Curso Adeline e Getty Images/iStockphoto

Ainda há normas a serem aperfeiçoadas. O senador Magno Malta (PL-ES) propôs neste ano o PL 1.668/2023, que permite o confisco de bens utilizados por acusados nos crimes de tráfico de criança ou adolescente ou contra a liberdade e dignidade sexual deles. Pela proposta, esses bens podem ser revertidos em indenização à vítima ou ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente do estado em que foi cometido o crime. O intuito do projeto ao alterar é coibir pessoas ou grupos que praticam esses crimes com o objetivo de obter lucro. 

— A proposta do PL busca endurecer as penalidades e desarticular as redes de pedofilia, visando à proteção dos direitos e da dignidade das vítimas envolvidas nesses crimes — defende o senador.

O projeto foi criado com base nas conclusões da CPI dos Maus-tratos, instalada no Senado em 2017 e presidida por Magno Malta. O senador conta que a comissão identificou a atuação de uma verdadeira máfia da pedofilia no país, com estrutura e organização sofisticadas. 

— Só uma legislação específica para desmobilizar essas organizações criminosas, confiscando os bens e valores utilizados ou obtidos com esses crimes. A ideia é combater o comércio, a distribuição e o armazenamento de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes, que têm se tornado cada vez mais frequentes com o avanço da internet — explica.

A CPI apresentou 33 projetos de lei em 2018. As propostas tratavam de temas como fornecimento de atendimento psicológico e educação emocional no currículo escolar; aumento de punição para abusos praticados por profissionais e pessoas responsáveis por menores; e a proibição da entrada de crianças e adolescentes em bailes funk, ou em qualquer outro evento em que haja o livre fornecimento de bebidas alcoólicas.

Crime hediondo

Também tramita no Senado o PL 2.562/2021, de autoria da então senadora Nilda Gondim (MDB-PB), que propõe a inclusão no rol dos crimes hediondos o conteúdo previsto no artigo 239 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA - Lei 8.069, de 1990). O estatuto tipifica como crime a conduta de promover ou auxiliar o envio ilegal de criança ou adolescente para o exterior, principalmente quando envolve a obtenção de lucro.

"Propomos, com o presente projeto de lei, que os crimes mais graves envolvendo a infância e a juventude como vítimas passem a constar do rol dos crimes hediondos. A exploração da prostituição infantil ou a comercialização de fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente não podem mais serem tratados como crimes comuns, que permitem toda a sorte de benefícios aos condenados", diz Nilda Gondim, na justificativa do PL 2.562/2021.

O relator do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS), conta que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990) surgiu como uma resposta aos crimes que causam repulsa da sociedade.

— O projeto vem para definir os crimes praticados contra crianças e adolescentes previstos nos referidos artigos do ECA como hediondos, ou seja, crimes hediondos significam que não há prisão provisória, está vetado o direito a indulto, anistia ou graça e é inafiançável.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, Paim considera o tráfico humano uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos. Os crimes contra a humanidade ferem princípios fundamentais e de grupos, indo contra os direitos à liberdade, à dignidade, ao trabalho digno e justo, e à vida. O senador explica que todas as denúncias sobre isso que chegam até à CDH são apuradas e, para muitas delas, são feitas diligências que depois são encaminhadas aos órgãos competentes.

— O tráfico de pessoas é um crime bárbaro, pois vem seguido de muita violência em forma de ameaça, uso da força, abuso de poder com pessoas geralmente em condições de vulnerabilidade. Esse crime carrega junto a exploração sexual de crianças e adolescentes, o trabalho infantil e o trabalho escravo — alerta Paim.

Proposto pela ex-senadora Nilda Gondim e relatado pelo senador Paulo Paim, o PL 2.562/2021 classifica o tráfico de crianças e a pornografia infantil como crimes hediondos Roque de Sá e Geraldo Magela da Agência Senado e Getty Images/iStockphoto

Liberdade

Pelo país, algumas ações tentam alertar a população sobre a presença e o risco do tráfico de pessoas. O Ministério Público do Trabalho promove o projeto “Liberdade no Ar”, lançado em 2020 com a participação de organizações nacionais e internacionais como o UNODC, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Criança e da Juventude (ASBRAD) e a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).

— O projeto busca divulgar informações sobre tráfico de pessoas para trabalho em condição análoga a de escravo, conscientizando dos trabalhadores do setor de transporte aéreo e rodoviário e a comunidade, por meio de vídeos tanto nos terminais de rodoviária e aeroportos, como pela internet — explica Andrea Gondim, procuradora que gerencia o projeto. 

Um dos resultados da iniciativa foi a produção de uma web série com entrevistas de especialistas sobre o tema tratando dos principais desafios no enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Os vídeos publicados no canal da ASBRAD e na TVMPT já foram reproduzidos em países como Moçambique, Portugal, Espanha, Uruguai, Estados Unidos, Argentina e Venezuela. 

 
A campanha Liberdade no Ar visa alertar a população sobre o crime de tráfico de pessoas e ajudar a capacitar profissionais que atuam no transporte de passageiros para identificar e denunciar ocorrências OIM Brasil
 
 

Pureza

O tráfico de pessoas também é retratado no cinema brasileiro. O filme “Pureza”, por exemplo, evidencia o trabalho análogo a escravidão. A trama, baseada em fatos reais, conta a história de Pureza Lopes Loyola, mãe solo e maranhense, que sai de casa em busca do filho caçula, Abel Lopes, vítima de exploração. A mulher levou cerca de três anos para encontrar o filho. Durante a busca, iniciada em 1993, viu de perto o sistema de exploração que acontecia em garimpos, carvoarias, fazendas e na floresta amazônica, em que os trabalhadores eram forçados a derrubar grandes extensões de árvores.

Para denunciar a exploração, Pureza escreveu cartas para três ex-presidentes (Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso) e contou os casos às autoridades em Brasília com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um dos grandes desafios enfrentados por ela foi a falta de credibilidade de seus testemunhos e de suas evidências. A partir disso, ela documentou com uma câmera e um gravador de áudio as condições que havia presenciado.

Sua ação colaborou para a criação do Grupo Especial Móvel de Fiscalização e mobilizou um movimento nacional. Em reconhecimento de seu trabalho, Pureza recebeu o prêmio Heróis no Combate ao Tráfico, nos Estados Unidos, sendo a primeira mulher brasileira a receber a honraria.

 

O filme Pureza conta a história de Pureza Lopes Loyola, que,ao buscar o filho vítima de tráfico humano, empenhou-se no combate ao crime e chegou a receber um prêmio por seu trabalho das mãos do secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken Divulgação e Chuck Kennedy/State Department

A luta dessa mãe também ficou gravada no longa-metragem chamado “Pureza”, de 2022, dirigido por Renato Barbieri e protagonizado por Dira Paes. O filme recebeu 28 prêmios nacionais e internacionais e se tornou símbolo do combate ao trabalho análogo a escravidão e do tráfico humano.

— O audiovisual pode ser um espelho da nossa sociedade, fazendo o espectador ver, pensar e o mais importante, sentir sobre temas sérios. Não digo que o cinema é a realidade em si, mas uma dimensão do que escolhe mostrar já causa um grande impacto se for feito com qualidade e sensibilidade. Podemos impactar com histórias. Dimensões da nossa realidade mostradas na tela podem conscientizar sobre diversos assuntos. Tanto o cinema ficcional como o documental podem buscar a transformação de consciência do espectador — explica a cineasta Ilana Lara Bonfim.


Reportagem: Jeovana Carvalho, sob supervisão de Paola Lima
Edição: Moisés Nazário
Edição de fotos e Multimídia: Pillar Pedreira
Montagem: Pillar Pedreira
Foto da abertura: UNMIT Photo/Martine Perret
 

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: Agência Senado - https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2023/07/trafico-de-pessoas-exploracao-sexual-e-trabalho-escravo-uma-conexao-alarmante-no-brasil

 


Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...