'A única coisa que mereço é uma morte digna': a mulher que conseguiu descriminalizar a eutanásia no Equador
O Equador descriminalizou a eutanásia numa decisão histórica sobre o caso de Paola Roldán. Isto torna o país o nono no mundo a descriminalizar a morte assistida.
A vida de Paola Roldán tomou um rumo inesperado em agosto de 2020.
Ela desmaiou enquanto fazia ioga. E, um tempo depois, sentiu como se estivesse se afogando ao empurrar o carrinho do bebê.
No início, os exames não revelaram nada. Mas, diante do mal-estar persistente, Paola decidiu continuar investigando o que estava acontecendo.
Até então, ela levava uma vida saudável. Praticava exercício físico todos os dias e tinha uma alimentação saudável.
Mas nada disso evitou seu diagnóstico: Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).
A ELA é uma doença degenerativa progressiva que não tem cura.
É uma das doenças do neurônio motor que acometem duas em cada 100 mil pessoas no planeta, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os neurônios dos pacientes com a doença se deterioram ou morrem — e não são mais capazes de enviar mensagens aos músculos.
A curto e médio prazo, isso provoca enfraquecimento muscular, contrações involuntárias, incapacidade de mover os braços, as pernas e o corpo.
Paola passou por tudo isso.
Hoje, aos 42 anos, ela está acamada, vivendo com o auxílio de um respirador. Só tem controle dos músculos do rosto.
Em meio a todo sofrimento, ela decidiu travar uma batalha pública — acompanhada do marido, Nicolás, e do filho pequeno, Oliver — para que a eutanásia se tornasse um direito em seu país, o Equador.
Foi assim que ela pediu perante a Corte Constitucional do Equador a inconstitucionalidade do artigo 144 do Código Penal do país, que prevê penas de 10 a 13 anos de prisão para homicídio simples, incluindo a prática da eutanásia.
"Vivi uma vida plena, e sei que a única coisa que mereço é uma morte digna", declarou a equatoriana em novembro, em meio ao processo.
Após vários meses de deliberação, a Corte atendeu na última quarta-feira (07/02) ao pedido dela, emitindo uma decisão favorável. Com isso, o Equador se tornou o nono país do mundo a descriminalizar a morte assistida em circunstâncias extremas.
O pai de Paola, Francisco Roldán, disse que ficou satisfeito porque a filha conquistou um "feito histórico e um legado para a sociedade equatoriana".
Mas admitiu que está "com o coração meio partido, porque o desfecho que a gente sabe que pode ocorrer, e a família vem processando, a morte da nossa filha, é muito forte".
Como a doença mudou sua vida
Após ser diagnosticada, Paola tentou de tudo. Tratamentos científicos e alternativos, sempre na esperança de que seu corpo conseguiria enfrentar a doença.
Mas, alguns meses depois de agosto de 2020, os sintomas se tornaram cada vez mais evidentes.
Desde então, ela passou por diversas internações, sofreu com infecções e seu corpo mudou radicalmente.
Episódios de engasgo também mostraram como sua vida estava por um fio. Entre outras coisas, a ELA causa enfraquecimento dos músculos envolvidos na deglutição, tornando mais arriscado ingerir alimentos.
Segundo o jornal El País, o apartamento em que ela mora – localizado a cerca de 20 minutos da capital, Quito – precisou ser adaptado à sua nova realidade, com uma cama hospitalar instalada onde antes era a sala de jantar.
No dia 17 de janeiro, Paola contou por meio de sua conta no X (antigo Twitter) parte do que precisa enfrentar todos os dias.
"Hoje faz 162 dias desde que apresentei meu pedido perante a Corte. Para muitos, 162 dias não são nada, mas para mim foram 3.888 horas de sobrevivência", ela disse.
"Desde 8 de agosto passei por seis médicos que me abandonaram, dezenas de episódios de engasgo, 10 dias entre o Natal e o início deste ano com crises tão graves que me fizeram a unção com óleo e me despedi da minha família. Meu corpo começou a rejeitar alimentos intravenosos, então estou vivendo à base de soro há 17 dias. Não sei quanto tempo me resta nessa lenta agonia…"
Em outra postagem na mesma rede social, Paola revelou o alto custo que a doença tem para ela e para sua família.
Isso considerando as três enfermeiras que cuidam dela "24 horas por dia, 7 dias por semana", os mais de "3,5 mil tratamentos que fiz nestes três anos", e as inúmeras viagens internacionais "em busca de ajuda".
"Já fiz tudo, não há tratamento ou medicação que me poupe, e posso garantir que não tenho um minuto sem dor física, muito menos emocional", declarou.
"Poderiam me dopar continuamente com morfina, para não sentir, isso é vida para você?"
A família
A parte mais difícil da doença talvez seja ver o filho, Oliver, que está com quase 4 anos, crescer.
Em suas redes sociais, Paola disse que há um ano vem fazendo uma "cápsula do tempo" com presentes para seus futuros aniversários, uma caixa com recordações dela, das primeiras memórias dele e para os momentos mais importantes de sua vida — como quando se apaixonar pela primeira vez e entrar para a universidade.
"Tem sido difícil pensar em um símbolo para cada um desses momentos, principalmente porque não sei do que meu filho vai gostar ou quem ele vai se tornar. Não queria que esses presentes virassem um preceito do que eu queria para ele, mas, sim, que oferecessem a ele cada vez mais liberdade", acrescentou.
A equatoriana também disse que, embora sempre tenha suposto que estaria em todas as apresentações do filho – incluindo momentos como a formatura dele –, não foi isso que a vida reservou para ela.
Ela falou ainda sobre o marido, Nicolás, que vem lutando ao seu lado nestes últimos três anos.
"Nada disso teria acontecido sem a incondicionalidade e resiliência do meu marido", ela afirmou em uma postagem no Instagram em novembro de 2023.
He pasado más de un año armando la cápsula del tiempo para Oliver. Regalos para sus cumpleaños, una caja con recuerdos míos, una caja con sus primeras memorias, cajas para los momentos importantes en su vida: cuando se enamore por primera vez, cuando le rompan el corazón, cuando… pic.twitter.com/HpagIBpOT7
— Paola Roldan Espinosa (@PaolaRoldanE) January 15, 2024
Segundo seus advogados, o que levou Paola a exigir o acesso à eutanásia ativa foi perceber que com o tempo ela perderia também a capacidade de se comunicar com o marido e o filho, que a acompanham em todos os momentos.
'Unidimensional'
A decisão de se expor nas redes sociais e lutar por uma morte digna teve um preço.
Paola afirmou que, em determinado momento, até se arrependeu de ter chamado a atenção para sua situação e de sua família.
Em suas próprias palavras, ela é para alguns "corajosa e heroína", enquanto, para outros, "covarde e vilã".
"É como se um rolo compressor tivesse me transformado em uma caricatura unidimensional", observou ela no X em novembro do ano passado.
"Há um mês e meio, eu era mamãe, maninha, filhinha, amor ou apenas Pao. Agora sou 'uma mulher de 42 anos com ELA, lutando pela eutanásia'", acrescentou.
Paola não sabia se estaria viva quando saísse a decisão do tribunal sobre seu pedido.
No início de fevereiro, ao saber que a decisão seria anunciada em questão de dias, ela disse:
"Sobrevivi e agora quero ver se nas veias deste país corre o sangue da justiça e da humanidade. Ou se continuarmos no pensamento retrógrado que enaltece o sofrimento."
Em entrevista coletiva virtual realizada após o anúncio da decisão da Justiça, Paola afirmou:
"Agradeço a todos porque hoje o Equador é um país um pouco mais acolhedor, mais livre e mais digno."
Ela também explicou que passará os próximos dias com a família assimilando o que significa a decisão. Porque "receber a informação é diferente de sonhar com ela".
O veredicto é de "cumprimento imediato". E a decisão de colocá-lo em prática está agora nas mãos de Paola.
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