À frente de filmes reflexivos, mulheres diretoras se destacam no cenário da produção cinematográfica brasileira mais recente
Seja na criação de universos de ficção, seja no registro, em filme, de episódios verídicos entre personalidades populares, e ainda na abordagem de dramas com intensa carga pessoal, é num crescente que as diretoras de cinema têm conquistado espaço na tela de cinema. "Para mim, era fundamental entender como aquela experiência que parecia tão íntima e individual — com a anorexia — se conectava com tantas experiências de tantas outras mulheres", comenta a diretora Moara Passoni, à frente de Êxtase, fundamentado pelos relatos do diário dela e de muitas outras mulheres, numa pesquisa que atravessou anos. Desde cedo, quando morou em Brasília, Moara se viu conectada ao cinema e a ações politizadas. Em criança, por exemplo, ela criou, com inúmeras demandas, o PC (Partido das Crianças).
Emblemática para a libertação da figura feminina no país, e com parte da carreira a ser ilustrada no cinema, a cantora Gal Costa terá cinebiografia pelas mãos de uma dupla de diretoras, Lô Politi e Dandara Ferreira. "É uma Gal muito potente que está no filme", adianta Lô, em entrevista ao Correio.
Responsabilidade no olhar e nos registros em cinema consolidam a produção da diretora Julia Murat, multipremiada pelo filme Regra 34, que entrará em cartaz em 19 de janeiro. Vencedor do Leopardo de Ouro (troféu supremo, no festival suíço de Locarno), o longa traz revela o cotidiano de Simone (Sol Miranda), uma defensora pública que, entre laços de erotismo vinculado à violência, defende mulheres vítimas de abusos. Diretora de obra antirracista, Murat, que, com o filme, obteve o prêmio especial do júri Novo Cinema Latino-Americano de Havana (Cuba), aplica as ideias firmes no combate dos abusos do Estado contra cidadãos, tema projetado em Regra 34. "O sistema penal brasileiro tem um alvo claro: o aumento de maior punição resulta no aumento de homens, jovens, pobres e pretos na cadeia. E apenas eles", diz Julia Murat (leia entrevista).
De um ardente sol a Gal
"Acho interessante falar de reconexão no cinema. As pessoas se desconectaram, por política, pandemia, e, novamente, tenho sentido uma sede de conexão em todo mundo. Acho que nosso filme (Sol) passou numa hora muito boa", avalia a diretora Lô Politi. Temas masculinos povoam o longa estrelado pelo brasiliense Rômulo Braga (vencedor de três prêmios no exterior) e o paraibano Everaldo Pontes. "Tenho muita atração em entender como os homens lidam com fortes emoções e conflitos internos. Tudo fica refletido na relação com as mulheres, com filhas e as mães. Generalizando, muitos têm dificuldades em acessar as emoções mais profundas", comenta a cineasta, motivada pelo exame de dados de abandono parental e ligações entre pais e filhos.
Confronto de expectativas e inabilidade emocional dão o norte na trama de Sol, que, na ótica da diretora, revela contraste entre as personalidades dos personagens e os ambientes em que vivem. Passadas as experiências com o longa de estreia, a ficção Jonas e o documentário Alvorada, sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff (feito ao lado de Anna Muylaert), Lô Politi se prepara para, em 2023, ver o lançamento de Meu nome é Gal, longa feito em parceria com Dandara Ferreira.
"O filme está praticamente pronto. Demos uma paradinha para digerir a morte da Gal. Ficamos muito tristes de ela não poder ver, porque é uma Gal muito potente que está no filme — muito, muito, muito forte e muito revolucionária. É uma Gal dos anos 1960 e 1970. Ainda estamos sob o impacto da morte dela. Dandara era muito amiga dela. Eu, na verdade, escrevi o roteiro e, para mim, até não era bom ter tanto contato com a Gal de hoje. Minha Gal se confunde com a imagem da Sophie Charlotte. Para mim, morreu um ídolo — um super-ídolo — e uma pessoa em cuja história estava muito mergulhada, mas ela não era minha amiga pessoal. O filme é um mergulho violento nesta enorme personalidade", conclui.
Exame denso
Foi na complexidade do padecimento pela anorexia, condição experimentada ao longo de sete anos, que a cineasta Moara Passoni encontrou material para e estreia em longa, com o filme Êxtase (atualmente disponível, de graça, na plataforma cinepasseio.org). "Boa parte das vozes em off, no filme, partem dos meus diários. Não quis romantizar, nem ser condescendente, nem amenizar o delírio da anorexia. Incluí ainda o prazer de uma busca autoritária de êxtase, sem abertura ao outro", conta a artista, que lança olhar sobre uma particularidade do universo, no geral, feminino.
Para Moara, estava claro que exibir corpos de mulheres com anorexia não seria uma solução, dado o "risco de construir estigmas e espetáculo". Garantira a autenticidade do discurso levou a diretora à descoberta: "O que experimentamos de mais íntimo e particular, muitas vezes, é universal e faz parte de experiências que não são só nossas". Numa pesquisa que atravessou anos, foi desfeita a ideia de que a anorexia fosse "tão íntima e individual". "Tudo, no filme, parte de experiências vividas. Tudo é verdade. Construímos uma dramaturgia e linguagem a partir do vivido. O resultado é uma espécie de geometria da fome, feita na implosão e na subversão das vivências", conta. Pelo que pretende Moara, Êxtase é filme de ensaio, sem narrativa convencional.
Tratar de temas como os do claustro e da emancipação do distúrbio com anorexia levou Moara a reforçar a colaboração com Petra Costa, diretora de filmes como Democracia em vertigem (indicado ao Oscar) e Elena, que é produtora de Êxtase. Petra, além da visibilidade, trouxe o gás para a conclusão do longa, urdido por 10 anos. Revestir com simplicidade o tema complexo foi dos ganhos da parceria. "Com o amadurecimento, sinto que tanto Petra como eu investigamos as relações entre subjetividade e poder", conta Moara. "O mais fundamental da vida, o alimento, está mergulhado em interesses de uma indústria perversa", observa. Privação e fome, contrapostas à ganância e ao desperdício, com o peso da indústria dos agrotóxicos e a invenção de "alimentos que não alimentam, mas viciam e vendem", levantam preocupações de Moara, que aponta elementos da "falência de modelo civilizatório".
O ativismo de Moara, em cinema, a levou a estudos de cânones da narrativa da sétima arte para, justamente, optar pela implosão deles. Na expansão de formatos narrativos, Moara foi para Cuba em busca de cinema novo latino-americano, e "poéticas próprias para contarmos nossas histórias". Nos EUA, celebrou a valorização de centros experimentais, a exemplo do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York).
Brasília
A vivência na capital do país, que bem estampa "o sonho e a utopia da democracia", impactaram, pelos "traços limpos e duros", a cineasta paulista que chegou em Brasília, aos 11 anos. "Sou completamente fascinada por Brasília. Ter brincado nos subterrâneos do Congresso só me fez perceber a dimensão lúdica das formas de Oscar Niemeyer", explica a diretora, que, antes, diz ter aprendido política com as mulheres do bairro Bairro do Jardim Ângela, ao lembrar da "imensa festa" que era a política na comunidade em que os pais se enfronhavam nos movimentos sociais.
"Ainda criança, passei muito tempo em Brasília, especialmente no período da Constituinte. Na época, eram poucas deputadas mulheres e não havia um local onde se deixar as crianças. Enquanto minha mãe exercia a função de parlamentar, eu ficava andando pelos túneis subterrâneos do Congresso Nacional; brincando de detetive, escrevendo meu jornalzinho de política Bla, Bla, Bla e formando meu partido, o PC (Partido das Crianças). A gente tinha inclusive estatuto", diverte-se.
Novos ares para as artes são celebrados pela cineasta, que comemora novamente "ter ar para respirar, junto com liberdade". No imenso desafio, comum a todos os brasileiros, ela quer ver o a renovação de um país "desmontado e falido", depois do "vale tudo" testemunhado durante as eleições.