Helô D'Angelo - Revista Cult
(Arte Andreia Freire / Reprodução)
Maria Lacerda de Moura se definia como intelectual, pacifista e feminista. Na imprensa, escreveu sobre os movimentos em que militou sem deixar de criticá-los: o feminismo, por não acolher mulheres negras e pobres; o comunismo, por pregar hierarquias excessivas no governo; o anarquismo, por ser tão radical a ponto de não aproveitar boas estratégias de outros sistemas políticos. A descrição poderia ser a de muitas jovens de hoje, mas pertence a uma mulher que viveu no século passado, e que foi uma das primeiras feministas do Brasil.
Nascida há 130 anos, em Manhuaçu (MG), Lacerda partia das próprias reflexões sobre a opressão da mulher para lutar contra outras formas de opressão, como a de classe. Por seu destaque como porta voz e crítica destes movimentos, chegou a ser conferencista tanto no Brasil quanto em outros países da América do Sul, tratando de temas polêmicos naquele contexto e ainda hoje, como direitos femininos, maternidade compulsória, antifascismo, amor livre e antimilitarismo.
“Seus escritos trazem questões datadas e também questões ainda muito atuais”, escreveu, em um artigo, a professora Miriam Moreira Leite, estudiosa da vida de Lacerda e diretora do documentário Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma Rebelde (2003).
Moreira Leite afirma que a luta da feminista centrava-se no “esclarecimento da mulher sobre sua situação de escrava da família e do marido, ou sua marginalização como solteirona ou prostituta”, e era posta em prática pela ideia de que as mulheres e as classes oprimidas em geral só conseguiriam qualquer tipo de emancipação quando alcançassem a liberdade intelectual: “Enquanto não souber pensar [a mulher] será instrumento passivo em favor das instituições do passado. E ela própria, inconsequente, trabalhará pela sua escravidão”, escreveu em 1922.
Esta emancipação intelectual era algo que ela mesma reconhecia, por experiência própria, como algo de difícil alcance. Por isso, esforçava-se para militar na esfera da educação, e falava, em seus textos, sobre tudo aquilo que julgava ser opressor: “Seus temas vão desde o Estado e o serviço militar obrigatório aos métodos de contracepção e a uma noção muito específica de amor”, explica a professora Ana Lúcia Ferraz, co-diretora do documentário. “Sua posição diferia de todas as outras em sua época. Por isso, ela não foi adotada por nenhum movimento.”
Anarquista, Lacerda não deixou de questionar o próprio anarquismo ao perceber que o movimento repudiava o sistema de educação comunista da União Soviética, que ela achava um bom modelo. Sufragista, colocou em xeque o movimento pelo voto feminino porque percebeu que as militantes também exploravam outras mulheres, mais pobres, nos trabalhos domésticos. Feminista, criticou o feminismo do início do século 20, pois entendia que a palavra “feminismo” estava perdendo seu significado de luta e se tornando uma espécie de moda – razão pela qual não poderia aceitar “nem o feminismo de votos, muito menos o feminismo de caridade”, como escreveu em texto de 1928.
Cena do documentário ‘Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma rebelde’ (2003), de Miriam Moreira Leite
Indesejável
Para Moreira, a trajetória da feminista mostra uma “coragem audaciosa, em contraste à submissão ainda corrente das mulheres à autoridade da família, do Estado e da Igreja”. E foi mesmo uma história de vida diferente: em vez de resignar-se com a própria situação, como era comum até mesmo entre mulheres que se proclamavam feministas, começou a estudar assuntos como feminismo, política, pedagogia e economia, e passou a se identificar como feminista.
Em 1919, no Rio de Janeiro, fundou a Liga pela Emancipação Feminina junto da bióloga Bertha Lutz, organização que lutava principalmente pelo sufrágio feminino. Mas por notar o caráter demasiadamente burguês e excludente das pautas defendidas pela Liga – como a inserção do estudo da História da Mulher no currículo básico escolar -, afastou-se do movimento sufragista e também do feminismo, que já considerava esvaziado de seu sentido original.
“A palavra ‘feminismo’, de significação elástica, deturpada, corrompida, mal interpretada, já não diz nada das reivindicações feministas. Resvalou para o ridículo, numa concepção vaga, adaptada incondicionalmente a tudo quanto se refere à mulher. Em qualquer gazela, a cada passo, vemos a expressão ‘vitórias do feminismo’ – referente, às vezes, a uma simples questão de modas”, elaborou, em 1928.
A consciência se intensificou a partir de 1921, quando foi viver em São Paulo e viu de perto as condições de trabalho e de vida do proletariado. Do espanto, veio o envolvimento mais intenso com ideologias de esquerda, em especial o anarquismo. “Em São Paulo, ela compartilha o ambiente politizado dos movimentos de trabalhadores, sem compreender as divisões entre aqueles que lutavam pelos interesses dos e das trabalhadoras: feministas, anarquistas, comunistas de então”, afirma a professora Ana Lúcia Ferraz.
Dentro da imprensa operária, escreveu em publicações anarquistas importantes como o jornal A Plebe e a revista Renascença, além de outros jornais independentes e progressistas como O Combate e O Ceará. Nestes textos, Lacerda falava principalmente de pedagogia e educação, mas não deixava de denunciar a opressão sofrida por mulheres e crianças.
“Sou ‘indesejável’, estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as forças interiores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla da sociedade sobre o indivíduo”, escreveu na época.
Por suas ideias, foi amplamente criticada principalmente em publicações pró-fascismo, mas também defendida por estudantes de esquerda e até por grandes nomes, como a romancista Rachel de Queiroz. Mesmo após a sua morte, em 1945, Lacerda não entrou para a história oficial, nem tampouco é citada em estudos sobre anarquismo no Brasil, segundo Moreira. E mesmo em outras esferas, como no feminismo, pouco se fala sobre ela. Mesmo assim, para Ferraz, sua importância está marcada.
“Maria Lacerda se destaca pela escrita como forma de fazer política”, afirma. “Sua obra dialoga com seus contemporâneos e com autores clássicos, sua erudição não deixa de ser profundamente engajada nos debates de seu tempo, com uma visão radicalmente libertária que interroga sobre o lugar da mulher na formação de nossas sociedades.”