USP: Estudo realizado pela Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto aponta práticas que encorajam e outras que desestimulam as mulheres no esporte
Jornal da USP
Texto: Ana Beatriz Fogaça
Arte: Joyce Tenório
Mulheres disputando campeonato oficial de karatê Foto: Sharkolot/Pixabay
A democratização da participação das mulheres em espaços públicos ainda tem um longo caminho a ser percorrido, especialmente no esporte. Mesmo essa área sendo considerada uma impulsionadora para a equidade de gênero, no esporte algumas modalidades ainda são, essencialmente, masculinas e caminham a passos lentos para uma maior participação feminina, como é o caso das artes marciais.
A negligência no ensino das lutas, como boxe, muay thai, judô, por exemplo, segregacionismo, ausência de compreensão à singularidade feminina, abusos e assédios podem estar no cerne do problema, é o que revela o estudo Aprendendo e ensinando mulheres a lutar: práticas exemplares e reprováveis nas artes marciais, da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) da USP e publicado em outubro do ano passado na Revista Brasileira de Psicologia do Esporte.
A partir do relato de mulheres praticantes de algum tipo de luta, os pesquisadores identificaram o que as encoraja e o que as desmotiva para essas modalidades de esporte. Para o professor da EEFERP e um dos autores do estudo, Cristiano Roque Antunes Barreira, o ponto de partida foi perceber que certas práticas tinham o poder de influenciar negativamente as mulheres no meio das lutas e das artes marciais e que isso se traduz em um número muito menor da participação delas nessas modalidades em relação aos homens. “A literatura internacional confirma essas práticas e o baixo número de mulheres nas lutas como um problema mundial, então nós queremos fazer uma pesquisa exploratória desse assunto, mas não meramente informativa”, comenta o professor.
Cristiano Roque Antunes Barreira.
Segundo o professor, para isso, “apenas levantar e analisar dados não era suficiente, por isso o estudo ouviu oito mulheres praticantes de diferentes tipos de luta, para entender quais eram as suas principais queixas, mas também o que elas consideram pontos positivos e que devem ser levados como exemplo”.
Práticas reprováveis
Sobre a negligência no ensino dessas modalidades, apontada como prática desestimulante, as mulheres relataram se sentirem esquecidas e menosprezadas pelos professores e também pelos demais praticantes, levando-as ao desânimo progressivo com relação à prática. “Uma situação comum quanto a isso é elas se dedicarem mais do que os rapazes, mas nem por isso terem reconhecimento”, acrescenta.
Outro aspecto relatado é se perceberem tratadas pelos professores de modo estereotipado, como se fossem todas uma mesma massa de iguais, “sem diferenciação individualizada que permite agregar desafio no nível dos objetivos mais elevados e definidos”, conta o professor.
Assédio e abuso de poder por parte dos treinadores e dos praticantes homens também estão entre as práticas reprováveis. Essas práticas aparecem na forma de falas inapropriadas e até mesmo na forma física, desde certos modos de se dar o contato corporal até condutas mais sutis, como olhares excessivos ao corpo das alunas.
Para servir como modelo
Por outro lado, os bons exemplos existem e foram definidos no estudo como boas práticas, entre elas estão: atenção à singularidade, questões técnicas direcionadas especificamente às mulheres, clima cooperativo, autoridade respeitosa e respeitável, reconhecimento e valorização. “Essas práticas refletem a atenção e singularidade de cada participante, como sua personalidade, suas dificuldades e facilidades técnicas, as inseguranças em movimentos, treinos e competições. E também quanto ao estado físico e emocional, devido às eventuais indisposições do ciclo menstrual, lesões, etc.”, pontua Cristiano Barreira.
As boas relações e interações interpessoais dentro do momento da prática também foram levantadas como um aspecto positivo pelas mulheres ouvidas. Tanto na relação professor-aluna, como entre aluna e demais participantes, incluindo condutas colaborativas, solicitude e companheirismo, proporcionando às praticantes o sentimento de segurança e confiança.
Novos valores
Apesar de ser uma pesquisa qualitativa, o professor adianta que outros estudos na área estão sendo realizados e que o descrito na pesquisa corrobora os novos resultados. “Essa foi só uma pesquisa inicial, dando sequência à investigação com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), permitindo que dezenas de mulheres de capitais das cinco regiões do País fossem entrevistadas e ampliando o número de modalidades e a faixa etária”, aponta o professor.
A tematização do assunto já dá luz a um problema muitas vezes tido como uma queixa pessoal e não um problema generalizado. A pesquisa, ao nomear as ações tidas como reprováveis e destacar aquelas positivas, pode reduzir a desigualdade da participação feminina e garantir a elas um lugar seguro e confortável para realizar o esporte.
Nesse sentido, o Centro Internacional de Artes Marciais (ICM) para o Desenvolvimento e Engajamento de Jovens da Unesco, através de convênios com instituições de ensino, como a EEFERP, tem como principal objetivo utilizar os preceitos e filosofias específicos das artes marciais para desenvolver valores, além de estimular a participação equitativa de mulheres na prática esportiva. “O ICM tem esse papel de congregar e estimular produções científicas e culturais que favoreçam não só o entendimento das artes marciais, mas também que promovam sua prática mundo afora”, finaliza Barreira.
Também participaram da pesquisa Luiza Ferreira Figueiredo, Thabata Castelo Branco Telles, todas da EEFERP, e Leila Curvello de Mendonça, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.
Mais informações:
Ouça no player abaixo entrevista do professor Cristiano Barreira à Rádio USP