Fundadoras de uma “contracultura jurídica nacional”, duas juristas negras pioneiras nas pesquisas envolvendo as questões raciais e a justiça são apontadas, em estudo da UFSC, como protagonistas
Fundadoras de uma “contracultura jurídica nacional”, duas juristas negras pioneiras nas pesquisas envolvendo as questões raciais e a justiça são apontadas, em estudo da UFSC, como protagonistas na formação de um campo de pesquisa e de prática que hoje repercute em novas leis e na atualização do judiciário. A análise é desenvolvida no estudo de mestrado Pelos Becos da Memória jurídica: as escrevivências de Eunice Prudente e Dora Bertulio na formação do quilombo jurídico teórico-prático Direito e Relações Raciais, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
No estudo, o pesquisador Edmo de Souza Cidade de Jesus utiliza o conceito de “quilombo jurídico teórico-prático” para demonstrar como a trajetória e o pensamento das juristas Eunice Prudente e Dora Bertulio inaugurou o campo de estudos Direito e Relações Raciais, que hoje influencia decisões tomadas na mais alta corte da justiça nacional, o Supremo Tribunal Federal. É como se as mulheres pioneiras – muitas vezes ocultadas como tal – tivessem possibilitado as condições teóricas e práticas para que novos pensamentos surgissem e incidissem diretamente na prática.
Ao investigar as trajetórias de Eunice Prudente e Dora Bertulio, fundadoras deste quilombo jurídico, ele percebeu lacunas sobre a repercussão da produção das juristas. “Apesar de atualmente haver um profusão de pesquisas que tematizam e debatem o papel de centralidade do racismo no Direito, as duas primeiras juristas a fazerem essa crítica na maioria das vezes não eram sequer referenciadas pelos acadêmicos. Temas que elas já haviam trazido em suas reflexões pareciam ter sido objeto de inovação de juristas muito mais novos”, explica.
O pesquisador já tinha as professoras Eunice Prudente e Dora Bertulio como norteadoras da pesquisa, mas sua ideia original não era necessariamente tratar dos percursos e da história de vida das intelectuais, nem dos desafios e obstáculos enfrentados por elas. “Essas juristas negras insurgentes dedicaram as suas escritas a despertar os seus pares de seus sonos injustos; a romper com o pacto de silêncio sobre a questão racial que impera na área jurídica; a desmantelar a ficcional neutralidade normativa que os juristas tentam a todo custo defender”, registra, no texto da dissertação.
O quilombo jurídico, explica Cidade, é formado majoritariamente por pessoas negras, historicamente marginalizadas e invisibilizadas nas instituições científicas e jurídico-políticas. Os impactos institucionais desse novo campo protagonizado por duas mulheres pioneiras já podem ser notados. “Especificamente no que diz respeito ao Sistema de Justiça brasileiro, já é possível identificar a utilização de conceitos desenvolvidos na fundamentação de decisões judiciais, bem como, uma postura proativa no sentido de exigir que membros do Poder Judiciário e do Ministério Público se capacitem para o manuseio desse instrumental teórico”.
Intelectuais pioneiras e insurgentes
Eunice Aparecida de Jesus Prudente é professora sênior do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP e empreendeu, na sua pesquisa de mestrado, a primeira “crítica racializada sistemática ao ordenamento jurídico brasileiro”, intitulada Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil. Ao entrevistá-la, Edmo resgata uma trajetória influenciada por uma família politizada e impactada pela orientação do professor Dalmo Dallari. Ele recomendava que ela estudasse autores defensores do regime escravagista para ter “uma visão ampla e aprofundada do fenômeno do racismo”. A pesquisa de Eunice foi publicada como livro nove anos após ser avaliada pela banca.
Já na trajetória de docente, a intelectual percebeu um embranquecimento e uma elitização dos alunos. Além disso, ela era a única professora negra da faculdade e, até hoje, mantém o hábito de usar o crachá de identificação permanentemente. “A jurista exemplifica que, em eventos do próprio Tribunal de Justiça, em outros locus de poder, o seu ingresso nos espaços é por vezes questionado e de certa forma obstaculizado, por isso a necessidade de, invariavelmente, empunhar o seu crachá de identificação”, conta Cidade, no texto do estudo.
Dora Lucia de Lima Bertulio é procuradora jurídica da Universidade Federal do Paraná, mas foi na UFSC que defendeu outro estudo fundador analisado na dissertação. Intitulada Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo, a pesquisa foi defendida de forma histórica, pois a data da defesa é lembrada por ela como um momento único, que reuniu, em uma sala, muitos espectadores negros.
Ao pesquisador, a intelectual contou que decidiu focar nos estudos pela “necessidade de estabelecer estratégias para se blindar da violência racial”. Nascida em uma família com ligação sindical e com um pai que ascendeu socialmente e chegou a ser preso político, ela estudou em escolas privadas, mas não conseguia construir relações com as colegas brancas fora da escola. Ao mesmo tempo, as crianças negras do seu entorno também a viam com estranhamento por frequentar ambientes de brancos.
Nos estudos acadêmicos, publicados apenas 30 anos após a defesa, Dora demonstra as imbricações entre Direito, raça e racismo, e o quanto essa dinâmica está incrustada na cultura jurídica nacional, analisando também suas consequências. “A pretensão da jurista decorre da constatação de que o racismo produzido e reproduzido desde o período colonial era desconsiderado pela produção acadêmica do Direito e da Ciência Política nacionais”, resume Cidade.
Debate oculto
“Percebi que o problema não era a ausência de produção na área, mas sim a ocultação do debate”, sinaliza o pesquisador, segundo o qual desde a década de 1980 já havia um pensamento jurídico afrodiaspórico brasileiro, com críticas sendo formuladas. Cidade comenta, ainda, que conheceu tardiamente as obras que fundaram esses debates. “Fui percebendo, com o tempo, também, que apesar de as juristas negras, em geral, terem uma produção teórica mais expressiva e de impacto, são os juristas negros e suas obras que estão nos debates realizados na esfera pública, na mídia etc”.
O prejuízo histórico é claramente identificado quando o pesquisador comenta que a discussão sobre justiça e racismo já era mais sólida nas universidades dos Estados Unidos e, aqui, os juristas resistiam. “Defendiam a ideia de que tais debates não eram jurídicos e deveriam, se fosse o caso, serem tratados nos departamentos de sociologia ou antropologia das instituições de ensino e pesquisa”.
O recorte de gênero também ganhou evidência no estudo de Cidade ao mapear a trajetória das mulheres, protagonistas na fundação de um campo científico que hoje vive uma fase de vasta produção teórica. Segundo ele, são as mulheres negras que têm um papel determinante e de protagonismo na luta contra o racismo. “Assumi como um dever ético, enquanto pesquisador negro, a tarefa de conferir papel de destaque em minha pesquisa às juristas que inauguraram esse debate no Brasil e que, por consequência, foram as responsáveis por fundarem um campo científico, das quais somos todos legatários”, pontua.
Conforme o pesquisador, elas foram precursoras na formação de um pensamento que hoje vive um “potente debate acadêmico” e que impacta na realidade concreta. Edmo atribui essa abertura do campo de pesquisas às políticas de ações afirmativas, que elevaram a presença de negros e negras nas universidades.
A recentemente sancionada Lei 14.532/2023 é vista por ele como um exemplo disso. O dispositivo tipifica como crime de racismo a injúria racial, prevê pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prevê pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.
A pesquisa de Edmo também exemplifica o impacto do quilombo inaugurado pelas intelectuais negras Eunice e Dora, demonstrando, através da análise de acórdãos do Supremo Tribunal Federal, o quanto os ministros têm se apropriado dessas produções teóricas para fundamentarem os seus votos. Hoje, obras de estudiosos que compões esse quilombo são citadas nas decisões de ministros e também figuram em indicações bibliográficas de diferentes instâncias do Judiciário.
Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC