A velha direita odiava a revolução dos costumes. Os neoliberais temiam o estado de bem-estar social. Novo livro conta: primeiro, eles jogaram a Família contra o Público. Depois, produziram a maré conservadora que varre o Ocidente há 40 anos
Por Nuria Alabao, no CTXT | Tradução: Vitor Costa
Muitas vezes, a “esquerda” é acusada de ter se lançado nos braços de “um pós-modernismo dissolvente de identidades”, de ter abandonado a defesa da família ou da nação e de caminhar lado a lado com o neoliberalismo. O conceito de “neoliberalismo progressista” de Nancy Fraser é frequentemente invocado nesses argumentos, embora não seja progressista em si: ele pode funcionar para dissolver laços sociais, ao mesmo tempo em que se apoia em instituições tradicionais. É disso que trata o livro de Melinda Cooper, Los valores de la familia [Os valores da família, 2022], que demonstra como a ascensão do neoliberalismo nos EUA nas décadas de 1970 e 1980 – algo que pode ser estendido para a Inglaterra e outros lugares – foi possível a partir de uma aliança com o conservadorismo mais atávico.
Em sua obra, Cooper analisa como a Nova Direita estadunidense, que levaria Ronald Reagan ao poder nos anos 1980, baseou-se na fusão entre os grandes princípios liberais e o puritanismo religioso. Desde então, o movimento conservador pró-família se expressaria a partir dessa tensão inerente entre a celebração entusiástica do capitalismo de livre mercado e a defesa simultânea dos valores familiares tradicionais e antifeministas. Por isso, hoje não é estranho ver parte das extremas direitas – tanto o Vox na Espanha quanto Bolsonaro no Brasil, por exemplo – combinar um firme apoio ao livre mercado e ao Estado mínimo com a defesa dos “valores familiares”. Eles não são incompatíveis. O livro comprova isso através de uma análise de dados históricos e aprofunda-se na literatura dos teóricos fundamentais do neoliberalismo como Irving Kristol, Milton Friedman ou Friedrich Hayek, onde a autora encontra claramente essa defesa da família. “Os dois pilares gêmeos da civilização: moralidade tradicional e mercados competitivos”, dizia Hayek, sem desenvolver mais que isso.
Na década de 1970, o neoliberalismo e o neoconservadorismo estadunidenses emergiram como forças dominantes no tabuleiro político. Embora suas posições sobre a reforma do Estado de bem-estar fossem diferentes, ambas as correntes convergiam para a necessidade de restaurar a família como o pilar da ordem econômica e social contra a Nova Esquerda e suas políticas “antifamília” e contraculturais. O contexto em que foram promovidas foi o de sucessivas campanhas de pânico moral sobre o aumento da delinquência juvenil, que foi atribuída à suposta crise da família e a uma atmosfera de paternidade permissiva, a proliferação do divórcio e a falta de controle dos filhos devido ao trabalho das mães. Tudo isso é atribuído à “crise de valores”, ou seja, às transformações sociais decorrentes das lutas de 1968.
Assim, a crise econômica, a inflação, o uso de drogas ou a delinquência, tudo estava relacionado à contracultura e às revoltas de 1968 – contra a Guerra do Vietnã, as lutas feministas ou pela diversidade sexual, ou as raciais. Esse ativismo, aliás, é importante não esquecer, estava plenamente conectado à defesa do welfare, muito atuante naqueles anos ao clamar pela extensão dos programas sociais. Se as lutas que hoje são consideradas “pela diversidade” pedem o Estado de Bem-estar, então para a direita era necessário derrotar ambos para vencer. Essa foi a receita. “Só poderíamos chegar às raízes do crime, e de muitas outras coisas, se focássemos no fortalecimento da família tradicional”, propôs Thatcher como receita contra esses males.
A chave simbólica que permitiu aos conservadores mirar nas lutas antinormativas ao mesmo tempo que no Estado de Bem-estar Social foi encontrada pelos conservadores num programa de auxílio relativamente marginal: a Ajuda às Famílias com Filhos Dependentes, que proporcionava uma renda mínima às mães solteiras. Esse pequeno programa absorvia uma mísera quantia do orçamento de assistência social, mas acabou se tornando um símbolo de tudo o que a direita via de errado no Estado de Bem-estar Social. Segundo Cooper, porque sintetizava os medos existentes sobre a degeneração racial e sexual. Tanto nos EUA quanto na Inglaterra thatcherista, grandes ataques foram lançados contra as welfare queens – as “rainhas do bem-estar” – e sua imagem distorcida de mulheres que têm filhos “para não trabalhar”. A mãe solteira, como beneficiária do auxílio, assumiu o antigo lugar dos desajustados sociais que eram vistos como um fardo para o contribuinte honesto. Nos EUA, o racismo também teve um papel, pois a existência dessas mães solteiras era identificada com a desestruturação da família negra. O debate também chegou à Inglaterra, onde, segundo Thatcher, “as jovens eram tentadas a engravidar porque a gravidez lhes proporcionava moradia e renda do Estado”. Desde então, as welfare queens permanecem como um estereótipo que contribui para a construção do classismo e que é trazido como argumento recorrente em todas as discussões sobre assistência social ou sobre o Estado de Bem-estar. Owen Jones explica isso muito bem em seu livro Chavs: la demonización de la clase obrera (Capitán Swing).
A principal preocupação dos conservadores era que o Estado de Bem-estar Social havia acabado financiando formas de assistência social que, segundo eles, contribuíam para a desintegração da família. O que estava em jogo aqui, segundo Cooper, é que esses auxílios sociais permitiam “às mulheres divorciadas ou solteiras e a seus filhos viverem independentes de um homem enquanto recebiam uma renda garantida pelo Estado, livre de exigências morais”. Esse tipo de ajuda tornava as mulheres independentes e as libertava das obrigações da família privada. Lembremos que eram tempos em que, embora já estivesse se dissolvendo, o “salário-familia”, um dos pilares do New Deal, ainda vigorava e cabia ao homem sustentar a mulher e os filhos. (Na verdade, Cooper explica que não é tão claro que uma família “tradicional” tenha existido, e que em grande medida seria uma invenção do próprio Estado de Bem-estar Social através de medidas como o salário-família ou benefícios familiares). O que tornou essa ajuda especialmente perigosa é que ela combinava a redistribuição de renda com os componentes antinormativos ou antipatriarcais de que estávamos falando, o que abriu as portas para novos estilos de vida. Foi isso que levou os conservadores à loucura. Ver que com o auxílio as mulheres não precisavam se casar para viver!
Gays, se vocês querem transar, assumam as consequências
Os neoliberais vieram de uma posição diferente, de acordo com Cooper. Eles achavam que essa extensão do welfare a modos de vida não normativos – em particular, em domicílios chefiados por mulheres negras – significava um transbordamento dos pactos do New Deal. Na época, o consenso sobre o Estado de Bem Estar Social era tão grande que muitos desses primeiros neoliberais não achavam que ele fosse tão ruim, desde que fosse limitado de alguma forma. Os movimentos sociais sempre queriam mais e ele vinha se expandindo desde suas origens. Como limitar sua expansão? Que se associasse a formas familiares que também reprivatizavam o bem-estar. Além disso, outra crítica a esse subsídio para as mães solteiras era que as mulheres negras não deveriam receber assistência social, pois tinham que ser empurradas para o seu papel: trabalho agrícola ou doméstico – pago – como mão de obra barata.
O primeiro objetivo, então, foi conter a extensão dos auxílios sociais ou de direitos como saúde e educação, e quando o consenso fosse suficientemente minado por campanhas e guerras culturais como a história das welfare queens, desmantelar o Estado de Bem-estar. E eles venceram a batalha.
No entanto, seu objetivo não era preservar a norma heterossexual ou patriarcal. Esses neoliberais poderiam apoiar o divórcio, o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo – desde que essas relações alternativas de parentesco assumissem os custos de saúde ou os cuidados que o Estado teria que arcar caso eles não o fizessem. Assim, eles argumentaram que o governo não deveria arcar com os custos da crise da AIDS porque ela era produto de comportamentos sexuais de risco praticados por indivíduos que tiveram que arcar com as consequências “econômicas” de seus atos. A solução que propuseram foi privatizar os “riscos da homossexualidade” dentro dos laços disciplinares do casamento ou do casal. Assim, os neoliberais chegaram ao casamento homossexual antes do movimento LGTBI. Quando os neoliberais defenderam o desmonte do Estado de Bem-estar Social, eles assumiram que os custos da reprodução social seriam suportados pela família – fundamentalmente pelas mulheres através do trabalho não remunerado, mas não só. Por isso apoiavam a sua existência, ela era imprescindível para implementar o seu programa político.
De fato, a ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power) e outros movimentos LGTBIQ começaram a clamar por saúde pública universal como resultado de sua luta contra o HIV. No entanto, como sintoma da derrota da esquerda naqueles anos, Cooper diz que se abandonou essa demanda para substituí-la pela inclusão de casais homossexuais na cobertura de seguros privados. Ou seja, poder acessar os direitos de saúde associados ao casal ou ao casamento mediante os seguros associados ao trabalho e outras coberturas familiares. Os horizontes encolheram.
A revolta fiscal devolve peso à herança
Outro elemento foi central para o fim do Estado de Bem-estar. A primeira vitória real da doutrina neoliberal foi um movimento popular da classe média-baixa conhecido como revolta fiscal. Em 1978, o milionário californiano Howard Jarvis organizou um referendo na Califórnia pedindo uma redução drástica nos impostos sobre propriedades. Este setor das classes médias o apoiou, recusando-se a financiar o Estado de Bem-estar e qualquer programa para ajudar as minorias. Foi um movimento de base que Reagan acabou capitalizando. A partir de então, políticos de todos os matizes assumiriam esse programa para restringir os gastos públicos. É o início do fim do Bem-estar e do triunfo neoliberal que acabaria se impondo em todo o planeta.
Essas políticas tiveram efeitos claros na redistribuição da riqueza: em 1983, a concentração da riqueza voltou aos níveis de 1962 e, no final da década, caiu para níveis comparáveis aos de 1929. E ela foi se tornando cada vez mais concentrada desde então. Mas também significou, como os conservadores sociais haviam advertido, um fortalecimento da família, colocando-lhe mais funções econômicas que substituiriam o Estado de Bem-estar Social. Eles defendiam que, ao contrário dos benefícios da Previdência Social, a riqueza investida em ações ou imóveis era hereditária e, portanto, serviria para reforçar os laços de dependência familiar. “Se os altos salários e a assistência social da década de 1970 pareciam desvincular a população da família privada e promover a proliferação de estilos de vida não normativos, a revalorização dos ativos, com seus laços com a casa própria, foi entendida como uma forma de disciplinar essas demandas dentro da lógica da herança”, diz Cooper. Hoje vivemos suas consequências. A estrutura de classes deixou de ser baseada principalmente no tipo de empregos e os salários baseiam-se na propriedade de ativos – financeiros ou imobiliários.
Hoje, porém, o neoliberalismo parece fadado a uma crise de legitimidade. Surgiram novos discursos que parecem questionar sua hegemonia, mas também novas incógnitas relacionadas ao surgimento de opções de extrema direita: o que pode substituir essa hegemonia neoliberal? A extrema direita do presente é uma alternativa a essa ordem, ou apenas sua fase autoritária para conter os mal-estares causado pelo próprio sistema?
Na realidade, o que os políticos neofascistas fazem bem é usar os medos causados pelas consequências do neoliberalismo sobre a vida coletiva para propor um retorno às formas idealizadas de família, raça e nação. Muitas vezes sem questionar os próprios princípios neoliberais. A esquerda não deve assumir esses discursos. O livro de Cooper nos fornece ferramentas para pensar a relação entre esta fase capitalista – ainda que em decomposição – e os valores familiares. A crítica tem que ser contra o neoliberalismo, mas também deve ser anticonservadora, e temos que ser capazes de entender quando ambas as tendências andam de mãos dadas e se reforçam para combatê-las melhor.
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