Céli Pinto (*)

Outro dia ouvi, em um blog de política, um entrevistado chamar os autores dos atos de violência em Brasília, organizados no acampamento bolsonarista acantonado em área privativa das Forças Armadas, de guerrilheiros.

Levei um susto. Realmente um susto. Não há dúvida de que há um limite tênue entre os conceitos terrorista e guerrilheiro. Ambos podem ser usados de acordo com a conveniência de cada grupo político ou dos governos de plantão. Mas isto não esgota o tema, nem legitima que se nomeie atos de violência da forma como bem desejarmos, especialmente se formos profissionais da área das Ciências Humanas. Temos responsabilidades com nossas opiniões. 

No caso dos atos de bandidagem que acontecem em Brasília, não estamos de forma alguma frente a atos de guerrilha. Uma guerrilha se concretiza em exércitos irregulares, clandestinos, às vezes com pequeno número de pessoas que lutam contra um estado opressor.

As ações de guerrilha no Brasil, durante a ditadura militar, são bons exemplos. Sem entrar no mérito relativamente ao acerto ou ao erro estratégico, a tomada de decisão pela luta armada, por parte de grupos que se opunham à ditadura, estava determinada pelo fechamento de qualquer possibilidade de disputa política. Colocados na ilegalidade, a todos que lutavam contra a ditadura só restavam o exílio ou a clandestinidade da guerrilha. 

A guerrilha do Araguaia, a mais conhecida delas, mas não a única, era imbuída da crença de que, a partir das zonas rurais mais distantes do país, os revolucionários seriam capazes de levar o povo camponês a lutar contra a ditadura militar. O resultado é o que se sabe: foram dizimados pelo Exército, muitos já rendidos e depois mortos. As autoridades brasileiras civis e militares, em mais de três décadas de regime democrático, nunca se ocuparam em esclarecer esta matança. Isto tem um custo muito alto para o país.

Houve guerrilha na Argentina, no Chile, na Bolívia, na Colômbia, muitas inspiradas pela utopia representada na figura de Che Guevara para as esquerdas da América do Sul. Como diria Bobbio, esta era uma atitude “típica dos Estados nos quais existem profundas injustiças sociais e onde a população está disposta a lutar por mudança. “  (BOBBIO, N. Dicionário de Política. v.1. Brasília: UNB, p.517.)

De forma distinta, a grande mídia, em especial a Globo, tem se referido aos atos atuais como terroristas. O termo se aproxima mais do que vem acontecendo, ainda que seja necessário considerar algumas nuances.

Não sou especialista na área, nem encontrei uma definição de terrorismo que me satisfizesse plenamente, mas arrisco apontar algumas características: o terrorismo se concretiza em atos de violência contra estados, na maioria estrangeiros, e provocam grande quantidade de mortos e feridos entre a população civil.  Os atos de violência são frutos de decisões dentro de organizações bem estruturadas, muitas vezes com a proteção e financiamento de países interessados em desestabilizar governos inimigos. 

Desconsiderando as confortáveis teorias da conspiração, possivelmente o ato terrorista mais espetacular e bem organizado da história foi o atentado às torres gêmeas, em Nova York, em 2001. Ali há todos os elementos de um ato terrorista internacional: treinamento; fanatismo; alto poder financeiro; o atingimento do inimigo mais poderoso; alto poder de destruição; grande número de mortos civis, que morreram apenas porque estavam naquele local, naquele momento.

Portanto há uma distância entre guerrilha e terrorismo, mesmo sem entrar em questões de ordem ideológica. 

No Brasil, um episódio de terrorismo foi registrado no fim do governo militar, conhecido como o Atentado do Rio Centro. Aconteceu no dia 30 de abril de 1981, quando militares do Exército e a Policia Militar do Rio de Janeiro planejaram explodir uma série de bombas durante um espetáculo musical onde havia 20 000 pessoas, em um ato comemorativo ao Dia do Trabalho. Como é sabido, uma das bombas explodiu dentro do carro ocupado pelos militares, matando um e deixando outro gravemente ferido.

O terrorismo à brasileira teve uma característica rara: o Estado militar  promoveria uma grande tragédia contra sua própria população, para atacar o próprio Estado, cindido entre duas forças: uma mais afeita a um processo lento de retirada de cena e outra de linha dura, que pretendia fechar ainda mais a ditadura vigente. 

Isto posto, a pergunta que se impõe é: como caracterizar o momento que estamos vivendo no Brasil, quando bandos queimam veículos, sem que a polícia esboce qualquer reação repressora; quando um individuo que já frequentara comissões no Congresso Nacional tenta explodir um caminhão de querosene de aviação; quando acampamentos bem financiados ocupam áreas militares próximas aos quarteis sem que as Forças Armadas se incomodem?

Certamente as pessoas que estão em frente aos quarteis ou diante do Forte Apache em Brasília têm pouca capacidade de organizar ações violentas, ou até de manejar bombas e armas de grosso calibre. São fanáticos religiosos, alguns muito primários, militares aposentados ou pensionistas de militares. Gritam slogans muitas vezes sem sentido, chamam por Bolsonaro, rezam e, em desespero, até invocam por extraterrestres. Tudo isto seria cômico se não fosse trágico.

 Não é crível que o atual governo não esteja, aliado a setores do empresariado e do agronegócio mais atrasados, dando suporte a estas tentativas terroristas.  Assim como em 1981, alguns setores das Forças Armadas devem estar contrariados com esta esbórnia, mas não possuem, pelo menos até a posse do novo presidente, poder para se colocar contra esses atos. Situação semelhante deve ter vivido a Polícia Federal frente ao vandalismo no dia da Diplomação do novo presidente da república e seu vice. 

O atual governo Bolsonaro e suas forças civis e militares se calam. Exatamente por isso, consentem e incentivam este episódio de terrorismo à brasileira, bastante semelhante ao que aconteceu em 1981.

Lula assumirá, no próximo domingo, as tarefas do novo governo. Como sabemos, elas são hercúleas, mas uma – pouco falada, ainda que muito importante – é a de redemocratizar o país. É de praxe, e conveniente, afirmar que as instituições estão funcionando e que a democracia está garantida.  Repito: é de praxe! Lula já passou 590 dias preso, por ordem de um indivíduo que se mostrou, logo após, completamente amoral, e as instituições, como de praxe, estavam funcionando!  

A democracia brasileira foi destroçada. A vitória de Lula foi quase um milagre frente à quantidade de ações ilegais, para impedi-la. O bolsonarismo (com ou sem Bolsonaro) não é um movimento político, é uma célula fascista implantada no Brasil. Devemos, sim, temer o terror. Temos espaços para reorganizar o país dentro do seu aparato legal, mas não podemos considerar normal a existência de grupos afeitos a ações de caráter terrorista. 

O governo do novo presidente não pode deixar isto para trás. Não se trata de vingança política, mas de exercer a justiça dentro de um estado democrático de direito. Se isto não for feito, não nos recuperaremos. Nunca.

 

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

 

fonte: https://sul21.com.br/opiniao/2022/12/terrorismo-a-brasileira-por-celi-pinto/

 


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