No terceiro capítulo do 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx faz uma das análises mais agudas e instigantes que acabou cristalizando sua aura de intelectual. Logo no início deste capítulo, sugere que se os momentos seguintes à Revolução Francesa foram uma sequência de alteração de lideranças políticas que sempre acabavam dando um passo à frente; já na última década de 1840 teria ocorrido exatamente o inverso. 

A linha ascendente da Revolução Francesa levou à sucessão dos constitucionalistas pelos girondinos e, desses, pelos jacobinos, numa sequência de lideranças cada vez mais ousadas. Logo após a Insurreição de 1848 na França – que Marx e Eric Hobsbawn afirmaram ter sido o ano da maior onda revolucionária do planeta – o partido proletário foi traído por um partido democrático pequeno-burguês que, por sua vez, se apoiou num partido republicano-burguês que passou a apoiar o “partido da ordem”, que, por seu turno, se apoiou nas Forças Armadas, numa sucessão cada vez mais conservadora e até mesmo reacionária. 

Lembro de uma aula magna proferida por Florestan Fernandes num dos encontros da ANPOCS, a associação nacional de sociólogos (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais) em que criticou duramente quem adotava esta narrativa e análise de Marx sobre a ascensão de Luís Bonaparte na França para sugerir que a ascensão de Fernando Collor se dava em bases políticas semelhantes. Com efeito, numa leitura rápida e caricatural, o “bonapartismo” seria uma situação em que as classes sociais não conseguem esboçar qualquer capacidade de direção política geral da sociedade, dando lugar a um aventureiro que se apoiaria em classes com pouca identidade entre si, formadas por trabalhadores desesperados por um lugar ao sol (no caso, o lumpensinato francês). Collor, no caso, seria o aventureiro de ocasião. 

Fazer a transposição mecânica de análises de momentos históricos determinados para outro contexto completamente distinto seria temerário, dizia Florestan Fernandes. 

Ele estava certo. Porém, neste mesmo texto, Marx faz alusão à Hegel afirmando que “todos grandes fatos e grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes”. E, faz o complemento famoso: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. 

Assim, emprestarei a comparação feita por Marx sobre o ciclo ascendente do período logo seguinte à revolução francesa com o ciclo reacionário do período que sucedeu a insurreição francesa de 1848. 

A sugestão que faço é que se tivemos um período de ascensão e ousadia política nas duas últimas décadas do século XX, ocorreu exatamente o inverso nas duas primeiras décadas do século XXI. Se há algo parecido com o período analisado por Marx, seria possível sugerir que se trata de um início de século marcado pela farsa: duas décadas capengas, erráticas, mancas na sua incerteza. 

O ciclo virtuoso do final do século XX

Adécada de 1980 no Brasil foi marcada pelo fim da ditadura militar e a reconstrução das bases democráticas do país. O clima era de euforia nas artes, nos meios acadêmicos, na política, nas igrejas. Era como se o Brasil começasse novamente. Evidentemente que o passado “pressiona o cérebro” e acaba nos condicionando, mesmo que como memória, mas o fato é que o clima reinante era de convite à ousadia.

O debate era intenso e um dos registros que guardo na memória era o anfiteatro da USP lotado, com alunos sentados no chão e outros debruçados nas janelas pelo lado de fora, para assistirem uma aula de Marilena Chauí. Recordo do imenso sucesso da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, de Arrigo Barnabé, da retomada do movimento Armorial, da revista Rádice e do imenso debate sobre sexualidade que acabou transbordando na TV Mulher. Era um momento tão instigante que um simples estudante universitário poderia chamar um debate sobre um filme, como Eles não usam Black-Tie, e teria um TUCA inteiro lotado, tendo no palco atores, diretores de cinema e lideranças metalúrgicas. Tudo parecia possível. 

“No final da década de 1980 eram potências políticas que davam vida à sugestão de Antônio Gramsci de que é possível ser poder sem ser governo.”

E neste percurso ascendente, o improvável aconteceu. O Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) são criados num intervalo de três anos e já no final da década de 1980 eram potências políticas que davam vida à sugestão de Antônio Gramsci de que é possível ser poder sem ser governo. 

Acontece que toda esta explosão de ousadia e reconstrução do país tinha no mundo do trabalho assalariado e amplas identidades definidas por enormes plantas industriais os seus eixos aglutinadores. As organizações sociais e políticas deste período seguiam esta lógica: estruturas verticais, de massa, com forte unidade interna e estruturas de mando muito definidas a partir das direções, corpo administrativo e militância social. Os enormes paquidermes organizativos andavam de maneira coesa, com períodos precisos de debates e definição de estratégias e táticas que eram adotadas no período seguinte de maneira unitária. 

Havia uma amarra: o pacto da Nova República. Um pacto forjado pelo alto, entre a cúpula do MDB e o governo militar, tendo Tancredo Neves e Ulysses Guimarães como guardiões da transição política limitada. A Nova República estabeleceu um lugar para os militares e alto empresariado, garantindo avanços sociais nos limites políticos deste arranjo. O PT que, inicialmente criticou duramente este acordo pelo alto, ao longo dos anos 1990 foi se conformando aos seus limites. Foi tomado por um pragmatismo providencial na medida em que percebeu, nas eleições de 1989, sua real capacidade de vencer as eleições nacionais e dirigir o país. 

Este mundo do trabalho e essas identidades coletivas começaram a ser abaladas na segunda metade da década de 1990. As novas tecnologias desestruturam o mercado de trabalho e fragmentaram as identidades amplas da classe trabalhadora. Avançou o número de trabalhadores abandonados à sua própria sorte. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2023 já são 20,5 milhões de pessoas em ocupações com potencial de serem realizadas de forma remota, o que representa 22,6% do total de ocupados. Em 2022, 32,7% das empresas brasileiras afirmaram ter adotado o modelo home office no Brasil, de forma parcial ou total, segundo a FGV-IBRE. Esta nova configuração do mercado de trabalho ocorreu, em especial, nessas primeiras duas décadas dos anos 2000. 

A explosão dos protestos de junho de 2013

Afragmentação passou a ser a tônica do mundo do trabalho e é nesse sentido que 2013 foi a explicitação dos novos arranjos e percepções sociais pouco compreendidos até hoje. 

A marca dos protestos de 2013 foi a fragmentação. Não havia pauta unificada. Não havia uma organização central. As decisões eram tomadas em assembleias abertas que adotavam práticas horizontalizadas. Havia uma nítida desconfiança em relação aos partidos e todas as formas de tomada de decisão centralizada. O mundo fragmentado se apresentava à luz do dia e se confrontava com as organizações do século passado, apoiadas em identidades de massa, em estruturas unificadoras, em pautas sintéticas. 

Não por outro motivo, uma das palavras de ordem mais citadas nas manifestações de junho de 2013 era quase uma auto-identificação: “saímos do Facebook”. As redes sociais, ramificadas, sem qualquer centralidade visível, facilitavam os contatos diretos, afetivos, que se ramificavam a partir de “hubs”, aqueles disseminadores de informações e opiniões que espalham para outras comunidades virtuais o que muitos estão pensando. Uma multidão de “hubs” faz um trabalho miúdo e alastram notícias, a partir de sua credibilidade, por um campo cada vez mais complexo de teias e redes. O mais interessante é que os “hubs”, naquele momento, não se conheciam, não formavam um segmento coeso e seu trabalho era voluntário ou voluntarioso. 

“A participação organizada em 2013 foi pífia desta corrente de direita. Em 2013, uma página do MBL no Facebook se revelou um fracasso e foi extinta. O MBL só retornaria no final de 2014.”

Ocorre que paralelamente se formavam comunidades juvenis de extrema direita, iniciadas em 2005 no interior do Orkut. Financiados por empresários que trouxeram Rodrigo Constantino e Hélio Beltrão para motivar e orientar várias comunidades ultraliberais que ser formavam entre jovens, foram se articulando ao redor dos Institutos Liberais e organismos estudantis. A participação organizada em 2013 foi pífia desta corrente de direita. Em 2013, uma página do MBL no Facebook se revelou um fracasso e foi extinta. O MBL só retornaria no final de 2014. 

Tivemos, então, duas narrativas em curso: a das juventudes organizadas em inúmeras comunidades virtuais que saem às ruas em 2013 demandando uma miríade de pautas e se confrontando com as formas de organização centralizadas e processos de decisão que se estreitavam. Também havia, em 2013, uma forte crítica aos gastos públicos canalizados para os grandes eventos esportivos que eram dirigidos por grandes empresas de especulação imobiliária. Inúmeros eventos e pesquisas realizados em universidades públicas contabilizavam os gastos e desvios de recursos públicos, além de ações que afetavam negativamente a vida de trabalhadores ambulantes que trabalhavam ao redor dos estádios de futebol, bairros periféricos que foram atingidos por obras viárias que interligavam aeroportos aos centros comerciais e campos de futebol, e toda sorte de populações vulneráveis afetadas pela gentrificação urbana e reordenamento do espaço público do período.

Os governos petistas foram surpreendidos por 2013, assim como as articulações extremistas de direita que estavam em curso desde 2005. Há muitos registros e análises a respeito, mas gostaria de citar dois estudos. 

Um deles é a tese de doutorado de Flávio Henrique Calheiros Casimiro, intitulada A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo, publicado em livro pela editora Expressão Popular, que atualiza as reações e articulações do alto empresariado brasileiro na formação do que Paulo Rabello de Castro denominaria de tomada de “consciência de classe”. Este livro retrata e analisa toda mobilização e investimentos do alto empresariado brasileiro para conformar o que, no século XXI, dará lugar à organização juvenil que explode em 2015 nas manifestações pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff.

 

Outro estudo importante para compreender o movimento paralelo às manifestações de 2013, neste caso, da extrema direita juvenil, é a coletânea organizada por Camila Rocha e Esther Solano intitulado As direitas nas redes e nas ruas: a crise política no Brasil, também publicado pela editora Expressão Popular. No capítulo escrito por Camila Rocha são identificadas as lideranças juvenis de direita que gradativamente se articulam ao redor da candidatura a deputado estadual paulista de Paulo Batista e que somente no final de 2014 passam a ter uma organização robusta que lhes confere condição política para organizar grandes manifestações de rua.

Rodrigo Constantino, Bernardo Santoro e Fábio Ostermann tiveram papel relevante na organização desta rede ultraliberal juvenil. Os dois primeiros reestruturaram o Instituto Liberal do Rio de Janeiro adotando este viés militante e Ostermann, por sua vez, se dedicou à organização da militância ultraliberal com a criação do Instituto Ordem Livre e o Estudantes para a Liberdade. Santoro relata: “eu conhecia todo mundo do Instituto de Estudos Empresariais, do Instituto de Formação de Líderes, da Fundação Friedrich Naumann, das tentativas de partidos liberais em formação, Partido Novo, Partido Federalista, Líber, eu era presidente do Líber na época.“

A espiral reacionária do século XXI

Assim como a Revolução Francesa criou uma espiral politicamente ascendente que teve um refluxo na última década de 1840, quando se criou uma espiral política reacionária, 2013 parece ter sido o momento final da ousadia política iniciada na década de 1980, porém, já como marca da exaustão e da mudança de paradigma de mobilização social. 

A partir de 2014, e mais nitidamente a partir de 2015, um outro ciclo político foi se forjando, o ciclo reacionário. 

Marx sugere que as organizações mais à esquerda que foram derrotadas na insurreição proletária de 1848 foram dando lugar às lideranças mais conformadas e brandas, cedendo espaço às tramas mais à direita, de conservadores ao reacionarismo militar. 

Teria ocorrido algo similar a partir de 2014? Teríamos perdido uma oportunidade de aggiornamento das esquerdas brasileiras após a mudança de estrutura do mundo do trabalho neste século?

Parece que sim. Se entendermos 2013 como um momento emblemático de uma expressão política do século XXI, parece mais nítida a oportunidade perdida. 

Logo após as manifestações de junho daquele ano, houve uma escalada de violência e perseguição contra várias lideranças dos protestos que ocorreram durante três semanas de junho, envolvendo 600 municípios e 4 milhões de manifestantes. 

“Durante a Copa Mundial de Futebol, as lições aprendidas com os mercenários foram aplicadas em algumas capitais, principalmente do centro-sul do Brasil, como o famoso ‘caldeirão de Hamburgo’.”

Em 2014, policiais brasileiros foram aos EUA para serem treinados pelo grupo mercenário que na época se chamava Blackwater – e hoje, Academi -, que atuou nas guerras do Iraque e Afeganistão. Ex-funcionários da Blackwater foram acusados de terem matado 17 civis iraquianos no massacre da praça Nisour, em 2007. Na penúltima semana de abril, um grupo de 22 policiais militares e agentes federais brasileiros voltou de um treinamento de três semanas no centro da Academi em Moyock, na Carolina do Norte. O curso foi patrocinado pelo governo dos EUA e fez parte de uma série de ações de intercâmbio entre as forças policiais dos dois países.

Durante a Copa Mundial de Futebol, as lições aprendidas com os mercenários foram aplicadas em algumas capitais, principalmente do centro-sul do Brasil. O famoso “caldeirão de Hamburgo”, em que manifestantes são cercados por forças militares e durante horas ficam imobilizados, sem água ou comida, até que, humilhados, são liberados em fila indiana. Isso foi executado em Belo Horizonte, São Paulo e outras localidades. 

Paíque Duques Santarém, militante do Movimento Passe Livre (MPL), relata a perseguição judicial sofrida pelos militantes, após os protestos de 2013: “entre 2013 e 2015, quem participou dessas manifestações foi intensamente reprimido. A gente passou o ano de 2014 inteiro respondendo a um inquérito sem fato determinado. Ele envolvia dezenas de militantes que eram chamados recorrentemente para depor na Polícia Civil”, afirma Paíque em recente entrevista à Agência Pública.

Lideranças perseguidas e mobilizações atacadas pelas polícias sugere que perdemos uma chance de uma nova forma de fazer política emergir, marcada pela polifonia e miríade de pequenas comunidades juvenis. Essa nova forma de expressão de massas poderia ter amadurecido e renovado a política nacional. 

“Foi a partir deste desmantelamento que a articulação paralela de jovens de direita e extrema direita, alimentados pelo imaginário libertariano, para se espraiar pelo país a partir do final de 2014.” 

Foi a partir deste desmantelamento que a articulação paralela de jovens de direita e extrema direita, alimentados pelo imaginário libertariano (ultra-individualista, egocêntrico, que nega o papel do Estado e da ordem pública democrática, fazendo apologia do direito individual de uso de armas, da propriedade privada, justificando a desigualdade social em virtude dos talentos e ambições individuais), ganhou musculatura e financiamento empresarial para se espraiar pelo país a partir do final de 2014 e, em especial, de 2015 em diante, surfando na onda macarthista desfechada pela Operação Lava Jato. 

A farsa da onda reacionária

Então, retornamos à farsa, nesta segunda encenação das ondas invertidas de processos ascendentes e progressistas para, em seguida, surgirem ondas reacionárias com mesma intensidade e vigor que a anterior. 

O vigor da onda ascendente dos anos 1980 e 1990 foram limitadas ao pacto da Nova República que, mais adiante, sofreu abalos e investidas pela direita. Os governos lulistas (de Lula e Dilma Rousseff) pareceram frear a reação da direita brasileira. Contudo, nesse mesmo período, insinuava-se, sem alarde, uma articulação juvenil de direita e extrema direita financiada justamente pelas organizações empresariais que questionavam as bases da Nova República plasmadas na Constituição de 1988. Esta articulação desabrochará em 2015 e gerará tal comoção nacional que levará ao impeachment de Dilma Rousseff e às ofensivas do governo Temer e do Congresso Nacional para impor a desmontagem dos sistemas de defesa e garantia dos direitos sociais do país, desaguando na tragédia do governo fascista de Jair Bolsonaro. Uma farsa da onda reacionária que será contida com as eleições de 2022 e com a resposta institucional ao ato terrorista de 08 de janeiro de 2023.

2013, neste percurso, pode ser compreendido como o estertor da onda progressista inaugurada na década de 1980. Não como o desaguadouro do movimento surgido com a Nova República, mas como sua negação, retomando parte da ousadia dos movimentos sociais daquela década. Lembremos que aqueles movimentos surgidos nas últimas duas décadas do século XX eram anti-institucionalistas, pregavam a radical autonomia frente aos governos e partidos e adotavam uma agenda de radicalização da democracia e controle social sobre as políticas públicas. Algo que ressurgiu nos discursos difusos de junho de 2013. 

O que parecia uma mobilização potente, possivelmente foi um suspiro final da onda progressista iniciada na transição democrática. Suspiro sufocado em plena democracia, sob comando de um partido progressista que governava o país pela terceira vez consecutiva. 

Novamente, a farsa desta similaridade de sequências históricas surpreende. 

Dez anos depois, temos que ao menos analisar com profundidade o que foram os protestos de junho. Temos que aprender as lições e compreender a polifonia que emerge numa sociedade profundamente fragmentada e ressentida com as estruturas de poder que nem mesmo consultam os cidadãos sobre as pautas mais urgentes e sensíveis. 

Nada garante que a explosão de 2013 ressurja em outras bases. Por isso, talvez seja a hora de revisitarmos aquelas manifestações que atordoaram o país. 

 

Sobre o autor

 

é sociólogo e trabalha com educação e gestão participativa. Também preside o Instituto Cultiva.

fonte: https://jacobin.com.br/2023/06/nao-podemos-condenar-junho-de-2013-por-causa-da-reacao-conservadora/