Quase lá: Explosão e potência do futebol feminino

Em contraste com as torcidas violentas, xenófobas e racistas, espetáculo das mulheres na Copa do Mundo garante ambiente seguro e menos tóxico que o masculino. Milhões de torcedores se atraem pela nova possibilidade de apreciar o esporte

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Publicado 28/07/2023 às 15:34

 

Por José Carlos Cueto, na BBC Brasil

Quando comecei a escrever esta reportagem, não conseguia parar de pensar nos verões de 2021 e 2022, quando em dois anos consecutivos a Inglaterra jogou e sediou as finais da Eurocopa masculina e feminina, respectivamente, no Estádio de Wembley, em Londres.

Na primeira, a masculina, a Inglaterra enfrentou a Itália. E o que começou como uma festa acabou sendo uma “vergonha nacional” devido aos milhares de torcedores embriagados, muitos também sob efeitos de drogas, que protagonizaram atos de violência e vandalismo e forçaram as entradas do estádio.

Essas imagens contrastaram fortemente com a celebração familiar, emocionante e sem incidentes que ocorreu no verão seguinte, quando a seleção feminina da Inglaterra venceu a Alemanha, conquistando um título histórico.

A Eurocopa 2022 confirmou a explosão de popularidade do futebol feminino desde a Copa do Mundo de 2019 na França, quebrando recordes de público e alcançando uma cobertura midiática que atraiu milhões de telespectadores.

Em todo o mundo, torcedores homens e mulheres estão se interessando cada vez mais pelo futebol feminino e, além de elogiar o ambiente mais seguro e festivo das arquibancadas, apreciam a qualidade e o espetáculo protagonizado pelas jogadoras.

Pode ser que o futebol feminino ainda tenha que crescer mais, e em vários aspectos, inclusive econômico, ainda existem lacunas significativas em comparação com a versão masculina.

Mas há muitas lições dentro e fora de campo que o futebol feminino pode ensinar ao masculino.

A disputa de uma nova Copa do Mundo, desta vez na Austrália e na Nova Zelândia, é um bom momento para mencioná-las.

Na final feminina da Eurocopa de 2022, 87.192 torcedores lotaram o Estádio de Wembley — batendo o recorde histórico de público para uma final da Eurocopa (feminina ou masculina)

Um futebol menos defensivo

O jornalista Tom Garry, do jornal britânico The Telegraph, cobre futebol feminino há oito anos.

E aponta vários aspectos que o diferenciam do masculino e que o tornam mais atrativo a seu ver, principalmente no futebol de seleções.

“As jogadoras, em geral, fingem menos quando recebem faltas e mostram mais espírito esportivo”, disse Garry à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

O especialista também observa que mais equipes tentam sair jogando desde a defesa controlando a bola, em vez de dar o famoso “chutão”.

“Há um percentual alto de equipes que apresentam atitudes menos defensivas, menos propensas a ‘estacionar o ônibus na frente do gol’.”

Para quem não sabe, essa expressão se refere a acumular muitos jogadores na defesa, o que é uma tática considerada extremamente defensiva.

Estefanía Banini é uma das estrelas da seleção argentina — ela joga como meio-campista do Atlético de Madrid, na Espanha

É seguro dizer que um jogo mais ofensivo costuma ser mais atrativo para o telespectador.

“Definitivamente, muitas equipes femininas colocam pressão para cima, jogam no ataque e tentam priorizar a técnica sobre o físico”, acrescenta Garry.

No entanto, há quem defenda que estas características do futebol feminino podem também se dever ao fato de que, em geral, é dito “menos profissionalizado”.

“Conceitos defensivos, estratégias para perder tempo e fingimento são ensinados nas academias. Muitas jogadoras seniores atuais não tiveram essa formação completa desde os 12-13 anos, como no caso dos homens”, concordam Garry e Christine Philippou, especialista em finanças esportivas da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido.

Por fim, Garry esclarece que são necessários mais dados e estatísticas para aprofundar essas observações.

Mais diversidade

Especialistas e organizações esportivas passaram anos incentivando mais diversidade nos conselhos de clubes e federações de futebol.

A FIFPRO, organização que representa mais de 65 mil jogadores de futebol em todo o mundo, pede mais empenho às estruturas do futebol.

“É crucial que tanto nosso conselho de administração — quanto os executivos de todo o futebol profissional — possam realmente se identificar com todos os jogadores e representá-los”, disse Jonas Baer-Hoffmann, secretário-geral da FIFPRO.

Segundo Philippou, esse problema é menos comum no futebol feminino graças à maior diversidade em seus conselhos de administração.

Uma diversidade que, de acordo com o especialista, contribui para encontrar novos públicos e ampliar os negócios.

“O futebol masculino deveria aprender que existe uma diversidade muito maior de torcedores interessados ​​no jogo que não se sentem incluídos em suas partidas, entre outras coisas, devido ao ambiente mais hostil”, afirma Philippou.

Devido ao maior amadurecimento do mercado de futebol masculino, majoritariamente formado por homens, “perdeu-se a noção de vender o produto para novos públicos”.

“Mas o futebol feminino está mostrando que há outro grande grupo demográfico interessado que não estava sendo atendido”, acrescenta.

A atenção ao futebol feminino tem crescido exponencialmente nos últimos anos.

Durante a Copa do Mundo de 2019 na França, a audiência média ao vivo atingiu 17,27 milhões de telespectadores, o dobro dos 8,39 milhões registrados na Copa do Mundo de 2015 no Canadá, segundo dados da Fifa.

Um crescimento que Philippou atribui, entre outros fatores, ao que acontece nos escritórios.

“Quanto mais vozes diversas houver nas tomadas de decisões e quanto mais os conselhos se assemelharem à diversidade de seus torcedores, mais e melhores decisões poderão ser tomadas a favor deles”, explica.

Estádios lotados para assistir às partidas internacionais de futebol feminino são uma imagem cada vez mais frequente

Ambiente menos tóxico

Felizmente, episódios extremos como o da Eurocopa de 2021 na Inglaterra não se repetem sempre que há uma final, mas as partidas de futebol masculino continuam sendo um território hostil para muitos, com frequentes insultos racistas, sexistas e misóginos.

“São comportamentos que por muito tempo assumimos como parte do futebol, mas na versão feminina estamos vendo que não precisa ser assim”, diz Stacey Pope, professora associada do Departamento de Esporte e Ciência do Exercício da Universidade de Durham, no Reino Unido, à BBC News Mundo.

Pope analisou a percepção dos torcedores das seleções masculina e feminina da Inglaterra, um dos países com maior profissionalização do futebol feminino.

“Os entrevistados sentiam que este é um espaço mais amigável para as famílias e muito mais acolhedor para mulheres, crianças e torcedores LGBT”, diz Pope sobre os resultados.

Para os entrevistados, o ambiente do futebol feminino é muito mais seguro — com menos vulgaridade, embriaguez e agressões físicas e verbais que às vezes sofriam no ambiente do futebol masculino.

Uma investigação independente concluiu que a violência semeada por milhares de torcedores durante a final da última Eurocopa masculina esteve muito perto de causar mortes

O futebol feminino é uma indústria em crescimento, e mais pesquisas deste tipo ainda são necessárias para tirar conclusões mais gerais, mas Paola Kuri, analista mexicana que acompanha tanto o futebol feminino quanto masculino, corrobora as descobertas de Pope.

“No futebol masculino, há episódios de ódio e racismo que não vemos no futebol feminino, onde prevalece um ambiente de movimento social mais respeitoso e, mais do que as cores, também se celebra a oportunidade e a luta das jogadoras”, diz Kuri à BBC News Mundo.

Em sua busca por mais profissionalização e investimento, os analistas também alertam que o futebol feminino deve se precaver contra “erros” do futebol masculino que eventualmente podem prejudicar sua popularidade.

Philippou dá como exemplo a distância econômica entre os clubes de elite e os pequenos, o que impacta o nível das competições. “No futebol feminino, já se começa a notar naqueles clubes poderosos que abriram grupos femininos, embora não no mesmo nível que no masculino”.


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