‘Casas-bioma’, que oferecem 35 vagas, representam um passo intermediário do projeto de construção de moradia indígena nas imediações do campus Pampulha
Todo ano, paralelamente ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a UFMG realiza um vestibular suplementar para estudantes indígenas. As vagas são destinadas exclusivamente àqueles que vivem nas aldeias, em alguma das centenas de comunidades autóctones distribuídas pelo Brasil.
O objetivo desse processo seletivo é possibilitar que jovens indígenas aldeados possam se formar na UFMG e levar o saber adquirido de volta para as suas comunidades, de forma a servir ao seu povo como dentistas, médicos, enfermeiros, agrônomos, advogados, biólogos.
É a própria comunidade que oferece à UFMG a comprovação do pertencimento do aluno à sua etnia: em alguma medida, em razão disso, acaba sendo também a própria comunidade que escolhe, entre os seus, aqueles que deverão se capacitar no saber ocidental para fazê-lo transitar com responsabilidade em seu território.
Um dos grandes desafios dessa inovação – ainda exclusiva de algumas poucas instituições federais de ensino brasileiras, como a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – é a questão da moradia: como esses alunos vêm de realidades comunitárias muito distintas das que são experimentadas nas grandes metrópoles e não têm familiares nem conhecidos nas cidades onde ficam os campi das universidades, eles acabam demandando uma atenção diferenciada para se situar na chamada “cidade grande”. As três moradias indígenas inauguradas pela UFMG na última sexta-feira, dia 18, surgem como trunfo para colaborar nessa aclimatação.
Denominadas “casas-bioma” pelos próprios moradores, essas moradias foram especialmente planejadas para serem ocupadas pelos estudantes oriundos desse vestibular suplementar. Três foram inauguradas na última sexta: a Casa Cerrado, nos limites entre os bairros Serra e Centro, onde vivem atualmente nove estudantes indígenas; a Casa Amazônia, no bairro Liberdade, habitada por outros nove alunos; e a Casa Caatinga, no bairro São Luiz, onde vivem sete discentes. Juntas, as três moradias podem receber até 35 alunos.
A Casa Cerrado busca servir aos alunos que cursam graduação na Faculdade de Direito e no campus Saúde, enquanto as casas Amazônia e Caatinga – onde ocorreu a cerimônia de inauguração desta sexta – situam-se no entorno do campus Pampulha, sede do principal complexo de prédios e cursos da UFMG.
A TV UFMG também acompanhou a cerimônia de inauguração na Casa Caatinga. A reportagem esteve, ainda, nas casas Cerrado e Amazônia, onde conversou com seus moradores. Assista ao vídeo.
Jenipapo, urucum e barro branco
“Estamos aqui para pintar este espaço de jenipapo, urucum e barro branco”, provocou Guilherme Manuel Silva Oliveira, indígena do povo Pankararu, de Pernambuco, em seu pronunciamento no evento. Estudante de Odontologia, ele fala em nome do coletivo indígena que se formou na UFMG no âmbito do vestibular suplementar e da luta das diversas etnias indígenas brasileiras por melhores condições de vida, seja nas universidades, seja em seus próprios territórios. “Vimos a necessidade da criação desse coletivo para trabalhar pela nossa permanência e pelo senso de coletividade, em nossa organização social”, disse ele ao Portal UFMG.
“No nosso coletivo, nós temos hoje alunos do povo Xakriabá, daqui de Minas, dos Pataxó de Minas e dos Pataxó da Bahia, do povo Pankararu, de Pernambuco, do povo Potiguara, da Paraíba, do povo Tupiniquim, do Espírito Santo, dos povos Atikum e Pankará, de Pernambuco, do povo Tukano, do Amazonas, do povo Tikuna, do Amazonas, do povo Kaxixó, daqui de Minas. É um coletivo que cresce cada vez mais, e cresce com força, na busca pela demarcação de um espaço”, afirmou ele. “Quando estamos entre os nossos, isso flui mais”, acrescentou o estudante, quando perguntado sobre a importância de uma moradia em separado para os seus povos.
“O nosso objetivo não é apenas entrar na Universidade, mas entrar pela porta da frente, poder se manter aqui com dignidade e também sair com dignidade – sair com uma vitória para a gente e para o nosso povo”, afirmou Guilherme, destacando a importância de contar com um espaço em que se possa praticar cerimônias e rituais. “Para nós, que saímos do nosso território e deixamos nossas aldeias, nossas casas, é muito importante chegar aqui com a segurança de encontrar um lugar para ficar com dignidade junto aos nossos.”
Casa para quem é de casa
Na celebração da inauguração, realizada na Casa Caatinga, alguns dos moradores fizeram um ritual, alternando-se entre as etnias. Guilherme Pankararu foi um dos que conduziram a cerimônia, entoando uma série de cânticos – ele, em português, os demais em línguas indígenas.
Nos seus cantos, o estudante dizia coisas como “Quando eu venho da minha aldeia, eu venho mais tinta vermelha: aldeia, aldeia, aldeia, meu caboclo, aldeia”; “Estava na mata, tirando mel, olha que chegou, foi Pankararu”; “Passarinho está cantando, passarinho está cantando: canta, passarinho”. De fato, enquanto a celebração ocorria no quintal da casa, onde há plantas, terra e visão do céu, era possível ver e ouvir os pássaros que voavam em torno da residência – uma experiência que seria difícil em um prédio de apartamentos.
“É por essas e outras que não dá para a gente hospedá-los em um apartamento tradicional”, justificou o vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira, que esteve diretamente envolvido com a viabilização das novas moradias. “É preciso um espaço diferenciado como este. É um acolhimento que precisa ser feito”, definiu. As casas-bioma foram concebidas com o intuito de possibilitar que os indígenas pudessem trazer um pouco do próprio território para dentro da Universidade, daí a opção por casas com quintal, em vez de outros tipos de construção.
Segundo Alessandro, o empenho agora é por ampliar esses espaços, sem perder de vista o padrão de qualidade alcançado. “Sabemos que a demanda é ainda maior”, disse.
Ao inaugurar as residências, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida destacou também a importância do trabalho da Fundação Mendes Pimentel (Fump) na viabilização do projeto. “Sem essa intervenção da Fump, seria muito mais difícil para a UFMG realizar esse projeto. A UFMG tem conseguido atender às diversas demandas justamente por contar com uma fundação que se dedica exclusivamente a executar as ações prioritárias no campo dos assuntos estudantis – em especial, as ações na área de assistência estudantil”, lembrou.
E acrescentou: “Essa inauguração, particularmente, só foi possível porque a UFMG conta com uma fundação capaz de executar as políticas que são definidas pela Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae).” Diferentemente da antiga casa, situada no bairro Planalto, provisoriamente ocupada pelos estudantes indígenas que ingressavam pelo vestibular suplementar em Belo Horizonte, as três novas moradias integram oficialmente o complexo de moradias universitárias da UFMG. “São lugares institucionalizados”, enfatizou a reitora.
O sonho da grande moradia indígena
“A UFMG tem um padrão de moradias universitárias que é elogiado no Brasil inteiro. Essa moradia precisava, de uma maneira ou de outra, se estender até vocês”, declarou a professora Licínia Maria Correa, pró-reitora de Assuntos Estudantis (Prae), dirigindo-se aos estudantes. “O foco sempre foi estar aqui com dignidade. Portanto, este é um momento especial para nós, ainda mais porque é o resultado de um trabalho coletivo”, pontuou. Licínia lembrou particularmente o trabalho da gestão anterior da Prae, conduzida de 2014 a 2022 pelo professor Tarcísio Mauro Vago. “Isso é uma conquista nossa”, disse. O sonho, contudo, é ainda mais ambicioso que um conjunto de casas-bioma.
A reitora Sandra Goulart informou que voltou ao radar da Universidade o plano de construir uma nova moradia estudantil na Avenida Antônio Carlos, na área que a UFMG detém quase em frente à entrada principal do campus Pampulha – uma casa que seria destinada exclusivamente aos estudantes indígenas da UFMG (oriundos do programa de vagas suplementares e dos chamados “cursos de alternância”, a Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) e a Licenciatura em Educação do Campo, o Lecampo). “Desde 2014, a UFMG tem um sonho: construir uma moradia indígena. Em razão dos cortes de recursos, ainda não foi possível realizá-lo. Mas hoje damos aqui um passo nessa direção: a criação de um espaço específico para os indígenas da UFMG. É um passo pequenino, mas é um passo, dentro de um sonho que é nosso. A verdade é que, com os cortes, veio um período muito difícil para a Universidade, e a gente não pôde – ainda – realizar este sonho. Mas a gente ainda vai realizar. Eu estou otimista”, disse a reitora.
Guilherme Pankararu afirmou que o sonho não é só da Universidade, mas, sobretudo, dos próprios estudantes. “A nossa ideia é que fosse uma moradia na mesma perspectiva arquitetônica das moradias da Avenida Fleming, mas que fosse, ao mesmo tempo, uma moradia diferenciada, que nos acolhesse e nos remetesse ao nosso território, à nossa casa”, idealizou.
Além das três casas indígenas ora inauguradas, a UFMG conta com quatro moradias universitárias, todas geridas pela Fump: as moradias Ouro Preto I, II e III, na Avenida Fleming, no bairro Ouro Preto, em Belo Horizonte (que, somadas, oferecem 1.014 vagas), e a moradia Cyro Versiani dos Anjos, em Montes Claros (108 vagas).
Vagas suplementares
O programa de vagas suplementares para estudantes indígenas foi instituído na UFMG em 2012, conectado à noção de direitos indígenas incluída na Constituição Federal de 1988, que põe fim à tutela e ao preceito integracionista que vigorou na política indigenista do Estado brasileiro. Nesse sentido, a política assumida pela UFMG baseia-se no reconhecimento, no respeito e na preservação da cultura indígena, inclusive em contexto urbano, o que implica gerar oportunidades, também na “cidade grande”, para a manutenção das práticas de sociabilidade coletiva próprias desses povos.