Cândido Grzybowski

 

Neste contexto de novo ciclo de violência, com destruição e morte de inocentes civis, na guerra sem fim entre Palestina e Israel, vale a pena refletir sobre a incapacidade das iniciativas multilaterais diante de situações como esta, que dizem respeito à humanidade como um todo. Afinal, todas e todos convivemos com este longo drama sem solução à vista. Em princípio, como concepção, o multilateralismo deveria ser um modo de negociar e agir coletivamente ao nível dos Estados para evitar guerras e destruições como esta. Foi isto que inspirou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), como um embrião de uma constituição mundial de direitos e princípios comuns, depois daquela carnificina e destruição da II Guerra Mundial. Mas o que se pratica de fato é um multilateralismo  fraco.

Em termos geopolíticos predomina a polaridade, que limita e até inviabiliza o multilateralismo. Isto vai das guerras à mudança climática, passando por uma multiplicidade de destruições e violências, como o  racismo, as barreiras contra migrações, a escandalosa desigualdade no mundo e as exclusões que sofrem certos grupos humanos, com muralhas e fortalezas nas fronteiras construídas pelos mais fortes e ricos. O multilateralismo não tem poder diante da globalização neoliberal imposta pelas grandes corporações capitalista em nome do livre mercado. E aí não temos como avançar para taxar as transações financeiras e combater os paraísos fiscais, para impedir os extrativismos destrutivos e poluidores e proteger a biodiversidade, para parar o tráfico de armas e de gente, para avançar na descarbonização da base da vida que temos e buscar uma virtuosa transição energética, para enfrentar a poluição dos mares, oceanos e a pesca predatória.  Multiplicam-se os espaços e fóruns multilaterais sobre estas questões específicas, mas prevalece sempre a polaridade e o poder imperial.

A questão do momento, reveladora da polaridade contra a humanidade e o planeta, é o que está acontecendo naquela situação de apartheid e genocídio explícito na guerra entre Israel e o povo palestino, em resposta aos ataques do Hamas. Afinal o apartheid e o genocídio são políticas declaradas dos atuais governantes de extrema direita de Israel, mas não podem ser tratados nos espaços multilaterais, por causa do poder imperial dos EUA. O que aconteceu na semana que passou no Conselho de Segurança da ONU, nas negociações e votação  em busca da necessária saída humanitária, proposta pelo Brasil, voltada especificamente para proteger a população civil palestina daquele enorme gueto que é a Faixa de Gaza, confinada e atacada sistematicamente, sem ter como se refugiar ou sir, é patético. Bastou o veto dos EUA para inviabilizar o acordo.

Os exemplos são muitos. Em situação atual diversa, mas também envolvendo um povo, na Ucrânia, sofrendo a invasão da Rússia, a relação geopolítica mundial é a determinante, não importando a destruição do país e a morte de civis. Esforços multilaterais são inúteis. Alguém pode pensar que a OTAN é uma espécie de organização multilateral. Na verdade ela é um tratado essencialmente militar envolvendo países estrategicamente comandados pelos interesses dos EUA. Claro, nesta guerra “terceirizada” para a OTAN, o que se está sendo reproduzida é a bipolaridade imperial dos tempos da guerra fria, pois a Rússia continua uma potência nuclear das mais armadas. Mais surpreendente de tudo é o realinhamento político e militar do bloco euro americano, sob liderança dos EUA,  praticamente inviabilizando o projeto de uma União Europeia pelos países europeus ocidentais.

De todos modos, devido ao poder de veto de cinco potências no Conselho de Segurança, a ONU – o maior organismo multilateral existente,  com  193 países – mostra como o multilateralismo aí praticado gera boas propostas e acordos, mas não são impositivos e no Conselho existe o poder de veto. Mesmo assim, a ONU é uma organização relevante, referência mundial, com muitos órgãos autônomos temáticos, fazendo bons diagnósticos dos problemas planetários, com propostas de medidas concretas, mas nunca impositivas, pois os interesses nacionais e  a geopolítica falam mais alto. O caso das grandes conferências temáticas é emblemático, pois se tornaram fóruns de referência planetária com a produção de diagnósticos relevantes, propostas e acordos. Algumas  se desdobram com realização periódica de encontros, as COPs (Conferência das Partes). A mais famosa, a COP das mudanças climáticas, vem avançando em acordos mas pouco ou nada em termos de implementação. Na COP não existe a regra do veto das potências, mas tudo depende de boa vontade dos governos, muitos alinhados com as grandes empresas petrolíferas, mineradoras, agronegócio e outros “donos” do mundo, que impedem avanços, apesar dos clamores das ruas, no mundo inteiro. A próxima COP das mudanças climáticas vai até acontecer no Qatar, para nada resolver de fato!

Enfim, esperar da ONU atual uma saída do impasse eterno da espada do veto como direito de cinco potências, é algo sem saída. Existem propostas e demandas de mudanças da ONU. Mas como fazer que sejam feitais tais mudanças? Hoje existem sinais novos apontando uma multipolaridade. Recentemente, ganhou destaque a ampliação dos BRICS, formando um conglomerado de grande peso em termos de população mundial, grandes civilizações, território, economia (petróleo, indústria, serviços, agricultura, minérios estratégicos para a transição energética...), com propostas que põem em questão a hegemonia do dólar nas transações mundiais e já tem o seu Banco de Desenvolvimento, alternativo ao BM. Mas cabe perguntar: não será a mudança de uma polaridade por outra, como tem sido nos últimos séculos, em que se forjou a colonização eurocêntrica moderna e deu lugar ao capitalismo? O pior é que as mudanças de polaridade anteriores foram com monumentais guerras. Na verdade, a moeda e os arsenais militares tem determinado até aqui a hegemonia no capitalismo.

O que fazer? Volto aqui à questão da última postagem: a necessidade de transformação sistêmica para salvar o planeta Terra e a humanidade. Trata-se  uma transformação ecossocial respeitando a multidiversidade de territórios e dos modos de viver, que seja capaz de dar lugar para todo mundo e todos os seres vivos, mantendo a integridade dos sistemas ecológicos do planeta, base natural do viver. De cima para baixo só poderemos esperar imposições homogeneizadoras das nações imperiais de  turno, sejam quais forem, segundo os interesses de suas classes dominantes. Mas aí, como encontrar saídas sistêmicas de baixo para cima, desde a diversidade de povos e de seus territórios, onde todo mundo caiba?

O certo é que não temos exemplos na história para nos inspirar. Sim, temos algumas de concepções e práticas como o bien vivir, dos povos indígenas, e o ubuntu na seio de povos africanos, e muitos outros, sempre em condições muito específicas, que podem nos ajudar como uma espécie de filosofia de cuidado com gente e natureza, de convivência e de compartilhamento. Mas as nossas necessidades hoje se multiplicaram pelo tamanho da população humana, densidade e desafios complexos, que exigem transição específica para cada situação e no todo, ao mesmo tempo. Temos, sem dúvida, um pipocar de iniciativas desde os territórios em que vivemos e estas podem nos inspirar muito. Aí é que entra a proposta de tecer as conexões de tal diversidade, fazer um tapete vibrante de vida sendo vivida e não ficar só no diagnóstico das mazelas e desafios a enfrentar. Este é o sentido do “tapete global de iniciativas” a partir dos territórios, pois comuns mesmo são os princípios, valores e concepções, mas o resultado só poderá ser um todo prenhe de diversidade da vida e do planeta. Isto é possível?

Bem, nunca a humanidade tentou tal caminho. Quando a diversidade prevaleceu, foi por falta de conexões, com certos modos de viver restritos a povos, que nem eram tão grandes como hoje. Quando algum se expandia, via conquista, guerra e comércio, normalmente se forjaram as civilizações e seus centros dominantes imperiais. O problema de hoje é que estamos imersos numa civilização global capitalista, neoliberal e financeirizada, no planeta como um todo. Bem, a gente poderia identificar alguns esforços no sentido de mais inclusão e de cuidado com gente e planeta, mas foram experimentos de nível nacional, em circunstâncias muito particulares, que o sistema imperial vigente deu um jeito de destruir. Lembro aqui a experiência do Chile, com Allende, e seu fim trágico, dando lugar a uma horrível ditadura militar.

Enfim, mais uma vez,  o caminho da mudança não existe, precisa ser construído.Temos ideias e experiências locais acumuladas em todos os países, construídas pacientemente e facilmente destrutíveis, pois sem grandes conexões entre si para se proteger mutuamente. Claro, já temos muita coisa conectada com foco em certos temas, como cidades, economia solidária, bens comuns, agroecologia, decrescimento, renda básica, extrativismo sustentável, gestão coletiva de territórios e água – para lembrar alguns - , que contam com movimentos, redes e fóruns do local ao mundial. São nossos laboratórios virtuosos. Tivemos também a experiência do Fórum Social Mundial, que se esgotou por não conseguir tecer politicamente a multidiversidade diante do capitalismo homogeneizador.  Mas temos uma tarefa gigante em termos de tecer os sentidos, propostas e direções comuns que nos conectam, construindo tudo com a maior participação possível, com democracia viva desde baixo. Partindo das especificidades ecossociais locais, suas propostas e os movimentos que as carregam,  a sua força cresce na medida em que se ampliam os  círculos de conexões, que podem se alargar de forma contínua. É este tipo de proposta que a Global Tapestry  of Alternatives nos propõe. Não é a solução, é um caminho possível de ser construído, minando o sistema por dentro, conquistando governos local, nacionais e... quem sabe?

Termino reafirmando o que é um dom da humanidade: viver, sonhar e agir, sem nunca desistir, por mais difícil que seja. Melhor opção que outra alternativa: acomodação e morte.

 

fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/

 


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