Após anos sendo escanteada e desmontada, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra volta a ser levada em conta pelo governo, em esforço combinado entre ministérios. Pesquisadora da Abrasco ajuda a entender o que está em jogo

 

Créditos: Secretaria Municipal de Saúde de Salvador

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Ionara Magalhães de Souza em entrevista a Gabriel Brito

 

O atrelamento de governos conservadores com um racismo ideológico no Brasil não é mera retórica. As presidências de Michel Temer e Jair Bolsonaro efetivamente rebaixaram ou mesmo eliminaram políticas públicas de redução das desigualdades raciais no país. E a saúde é um campo privilegiado para observar o reforço do racismo institucional neste período.

Não à toa, o governo Lula promoveu uma reorganização institucional para tentar recuperar o terreno perdido. A antiga Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi transformada em ministério, desempenha um papel de articulador de diversas políticas de equidade ao lado de outros ministérios e representantes do movimento negro foram alçados a importantes posições no governo.

Diante do novo quadro, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) produziu um número inteiro de sua revista voltado à Saúde da População Negra. “Com essa ação, a equipe editorial do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Abrasco considerou contribuir para o arcabouço de publicações científicas que tratam das iniquidades étnico-raciais na saúde, dos impactos do racismo na saúde da população negra e da necessidade de enfrentamento de uma epistemologia branca ou supostamente neutra”, explicou Ionara Magalhães de Souza, do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Abrasco.

Fisioterapeuta, mestre em saúde coletiva e especialista em desigualdades étnico-raciais, Ionara é autora, ao lado de Edna Maria de Araújo e Aloísio Machado da Silva, do artigo Tendência temporal da incompletude do registro da raça/cor nos sistemas de informação em saúde do Brasil, 2009-2018, que acompanha a evolução do processo de inclusão de dados de raça e cor nos prontuários dos usuários do SUS, estabelecida a partir da criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), em 2009.

Na entrevista ao Outra Saúde, Ionara explica a importância deste registro nas fichas de saúde dos brasileiros. “A discriminação de informações segundo raça/cor nos dados de saúde da população oportuniza traçar o perfil epidemiológico étnico-racial da população brasileira, construir indicadores, identificar necessidades específicas de cada grupo étnico-racial, acompanhar a evolução de desfechos de interesse, dimensionar e monitorar os impactos do racismo e avaliar a qualidade da atenção à saúde das diversas populações”, destacou.

A pesquisadora ressalta que a PNSIPN foi ativamente desmantelada nos governos anteriores. Além dos evidentes efeitos na vida dos mais pobres que a política de Estado mínimo reconhecidamente gerou, houve uma ativa predisposição em descartar a produção de conhecimento a respeito das desigualdades raciais.

“Tivemos, nesse hiato, governos conservadores, com agendas de desmonte das conquistas democráticas, não implicados com os direitos humanos e indiferentes à saúde da população negra, vide o desmantelamento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a extinção do Comitê Técnico de Saúde da População Negra. Tivemos profundos retrocessos nas políticas de igualdade racial no país”.

O hiato ao qual se refere é justamente em relação à produção informações sobre saúde da população negra. Isso porque em outubro passado o Ministério da Saúde publicou a segunda edição do Boletim Epidemiológico da Saúde Negra, cuja edição inaugural data de 2015. Não casualmente, a implantação da PNSIPN estagnou, especialmente nas regiões e estados mais pobres, justamente onde se encontram maiores proporções de população preta, parda e indígena.

“Paradoxalmente, essas regiões concentram dificuldades e iniciativas menos frequentes para o gerenciamento da qualidade da informação e, historicamente, apresentam pior qualidade de dados. Com efeito, a geração de dados deficitários, inconsistentes e não confiáveis inviabiliza a formulação de indicadores de saúde, a produção de estudos epidemiológicos e compromete a formulação de políticas públicas e a qualidade da atenção à saúde para populações historicamente vulnerabilizadas”, resumiu.

 

Desta forma, o elogio ao atual governo não é uma mera questão de ufanismo ou alinhamento ideológico. O governo Lula, ainda que sob limites de financiamento de políticas públicas que combatam as iniquidades sociais históricas, efetivamente promove uma agenda que deve produzir melhorias na vida e na saúde das maiorias sociais não brancas.

“Depois de 15 anos de instituída, acredito que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra encontra-se em novo ciclo, fase de implementação e avaliação. No novo governo Lula, estamos acompanhando ações jamais vistas. A saúde da população negra tem sido pautada no Plano de Governo , temos uma Assessoria para Equidade Racial em Saúde no Ministério da Saúde, temos observado um esforço no que diz respeito ao desenvolvimento de ações interministeriais, envolvendo o Ministério da Saúde, Ministério da Igualdade Racial e Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e provocando outros ministérios, a fim de transversalizar a pauta saúde da população negra”, sintetizou.

Confira a entrevista com Ionara Magalhães de Souza na íntegra.

Em linhas gerais, o que a revista Ciência e Saúde coletiva, em edição voltada à saúde da população negra, traz de novo aos debates e formulações críticas para as políticas de saúde pública?

O Dossiê Temático Saúde da População Negra propõe ampliar a visibilidade acerca das iniquidades étnico-raciais em saúde e fomentar redes de colaboração em nível nacional e internacional e, assim, fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e o Sistema Único de Saúde. Com essa ação, a equipe editorial do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Abrasco considerou contribuir para o arcabouço de publicações científicas que tratam das iniquidades étnico-raciais na saúde, dos impactos do racismo na saúde da população negra e da necessidade de enfrentamento de uma epistemologia branca ou supostamente neutra.

Essa edição provoca o racismo institucional que dificulta ou impede a difusão do conhecimento científico e tecnológico nessa temática. Muitos aspectos levantados no dossiê são abordados em dois boletins epidemiológicos lançados pelo ministério da Saúde. Das formulações críticas, destaca-se o posicionamento político mediante publicação dessas produções que ensejam a equidade em saúde.

Quais as motivações a respeito do seu artigo “Tendência temporal da incompletude do registro da raça/cor nos sistemas de informação em saúde do Brasil, 2009-2018?” Por que você faz o referido recorte de tempo e quais as descobertas essenciais reveladas no artigo?

Sou integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades na Saúde da Universidade Estadual de Feira (UEFS), onde desenvolvemos ações e produções científicas nessa perspectiva. Ademais, fui orientanda de Edna Maria de Araújo, reconhecida como um dos nomes que encamparam a luta pela saúde da população negra no país. Esse artigo compôs um dos trabalhos do doutoramento. A nossa expectativa consistia em contribuir, em alguma medida, para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). O período considerou o ano de implementação da PNSIPN que preconiza a inclusão do quesito cor nos instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados ou contratados com o SUS, a utilização do quesito cor para a produção de informações epidemiológicas, a fim de apoiar a gestão e aprimorar a qualidade dos sistemas de informação em saúde.

As questões essenciais do artigo consistem na possibilidade de dimensionamento das desigualdades étnico-raciais a partir do preenchimento do campo raça/cor, proporção de preenchimento ruim e grau de incompletude mais acentuado para algumas doenças e agravos e regiões. De modo geral, há uma tendência decrescente da proporção da incompletude do registro da raça/cor na maioria das doenças e agravos. No artigo, enfatizamos que o preenchimento do campo raça/cor não se trata de uma questão meramente técnica, mas política; buscamos problematizar o processo de coleta e registro de dados, evocar responsabilidades e, principalmente, destacar as consequências da incompletude e implicações do preenchimento do campo raça/cor para equidade em saúde.

Ademais, evidencia-se dificuldade na incorporação desses dados para o processo de gestão em saúde.

E qual a linha evolutiva deste preenchimento de dados de raça/cor?

Em linhas gerais, no período analisado, podemos afirmar que há uma tendência descrente da incompletude do quesito raça/cor nos sistemas de informação analisados, ou seja, denota-se melhoria no preenchimento do campo a partir da análise de tendência temporal.

Afinal, qual a importância da discriminação de informações de raça/cor nos dados de saúde da população? Como eles podem incidir na elaboração de políticas públicas?

Atrelado à obrigatoriedade e relevância do preenchimento, cumpre destacar a importância da desagregação dos dados por raça/cor nas análises epidemiológicas. Isso porque, pretos e pardos, embora constituam a população negra e apresentem similaridade em contextos socioeconômicos, experimentam diferenciais em algumas causas de morte, por exemplo.

A discriminação de informações segundo raça/cor nos dados de saúde da população oportuniza traçar o perfil epidemiológico étnico-racial da população brasileira, construir indicadores, identificar necessidades específicas de cada grupo étnico-racial, acompanhar a evolução de desfechos de interesse, dimensionar e monitorar os impactos do racismo e avaliar a qualidade da atenção à saúde das diversas populações.

Tais dados podem dimensionar as condições de saúde de grupos populacionais específicos e, assim, fundamentar políticas públicas na medida em que subsidiam as atividades de gestão, planejamento, programação, monitoramento e avaliação das políticas de saúde, atividades assistenciais; direcionam a alocação de recursos e o financiamento da saúde e, assim, contribuem para a efetivação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. Esses dados podem evidenciar a institucionalização do racismo nas práticas e serviços de saúde, revelar disparidades no acesso e na qualidade da assistência em saúde.

Seu estudo também revela disparidades regionais, com maior déficit de informações em regiões onde a proporção de negros, pardos, mestiços e indígenas é até maior. Por que isso ocorre?

Paradoxalmente, essas regiões concentram dificuldades e iniciativas menos frequentes para o gerenciamento da qualidade da informação e, historicamente, apresentam pior qualidade de dados. Com efeito, a geração de dados deficitários, inconsistentes e não confiáveis inviabiliza a formulação de indicadores de saúde, a produção de estudos epidemiológicos e compromete a formulação de políticas públicas e a qualidade da atenção à saúde para populações historicamente vulnerabilizadas.

No ano passado, o governo publicou a segunda edição do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, cuja primeira edição é de 2015. Como e por que, em seu entendimento, se dá esse hiato?

Tivemos, nesse hiato, governos conservadores, com agendas de desmonte das conquistas democráticas, não implicados com os direitos humanos e indiferentes à saúde da população negra, vide o desmantelamento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a extinção do Comitê Técnico de Saúde da População Negra. Tivemos profundos retrocessos nas políticas de igualdade racial no país. Inquestionavelmente, os maiores avanços no campo Saúde da População Negra ocorreram nos Governos Lula e Dilma.

Como avalia a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra neste novo governo Lula? Que ações o governo e o ministério da Saúde poderiam priorizar?

Depois de 15 anos de instituída, acredito que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra encontra-se em novo ciclo, fase de implementação e avaliação. No novo governo Lula, estamos acompanhando ações jamais vistas. A saúde da população negra tem sido pautada no Plano de Governo , temos uma Assessoria para Equidade Racial em Saúde no Ministério da Saúde, temos observado um esforço no que diz respeito ao desenvolvimento de ações interministeriais, envolvendo o Ministério da Saúde, Ministério da Igualdade Racial e Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e provocando outros ministérios, a fim de transversalizar a pauta saúde da população negra.

Nessa direção, em dezembro de 2023 foi criada a Portaria nº 2.198 que institui a Estratégia Antirracista para a Saúde, cujo Plano de Ação inclui o desenvolvimento de ações afirmativas, formação antirracista no âmbito SUS; produção e monitoramento de indicadores raciais nas ações de saúde, e o direcionamento de recursos com vistas à promoção da equidade em saúde. Pode-se destacar também a retirada do campo 99 (ignorado) dos sistemas de informação em saúde.

Mais recentemente, por meio do Decreto Nº 11.996, o Governo institui o Comitê Técnico Interministerial de Saúde da População Negra, ou seja, grupo interministerial para elaborar plano de ação, com vistas a fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, além de monitorar e avaliar políticas, ações e estratégias. Em suma, penso que temos um movimento impulsionador de fortalecimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra com ampliação das políticas de proteção social e enfrentamento das desigualdades raciais em curso.


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