Projeto baseado em pesquisa em andamento na USP rompe com estereótipos femininos comuns para trazer novas representações feministas de mulheres
Jornal da USP - 5/11/2024 às 17:22
Mary Anning (1799-1847) descobriu o primeiro fóssil de ictiossauro de que se tem notícia – Imagem: Natural History Museum/Wikimedia Commons
Mary Anning era uma menina de 12 anos quando fez uma descoberta que mudou a história da ciência. Ela viveu no começo do século 19 em uma região litorânea do Reino Unido, que hoje é conhecida como Costa Jurássica. Foi lá que, em 1811, Mary encontrou o primeiro fóssil de ictiossauro, um réptil marinho extinto há milhões de anos. A descoberta ajudou cientistas a fazerem as primeiras descrições dos dinossauros, mas o nome de Mary permaneceu esquecido por muito tempo. A história de Mary Anning é a primeira na nova temporada do podcast para crianças Conta! Conta! Conta!, produzido pela Cia. Ruído Rosa. A temporada será toda dedicada a histórias protagonizadas por meninas e mulheres e está totalmente conectada com uma pesquisa de doutorado em andamento na USP.
Anna Carolina Longano é doutoranda do Programa de Mudança Social e Participação Política da EACH- Foto: ciaruidorosa/Instagram
Cofundadora da Cia. Ruído Rosa, a artista, escritora e pesquisadora Anna Carolina Longano tem se dedicado a duas tarefas. De um lado, pesquisar as representações hegemônicas de mulheres na cultura e na mídia, questionando efeitos negativos sobre as vidas de mulheres e meninas. De outro, produzir uma dramaturgia infantil feminista. Esse segundo objetivo já estava presente em seu primeiro livro publicado, Dia de Mudança, de 2018. Durante o doutorado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a ideia frutificou e deu origem ao projeto A Heroína da História. A nova temporada do podcast Conta! Conta! Conta! faz parte desse projeto, que tem o apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativa do Governo do Estado de São Paulo e do Ministério da Cultura do Governo Federal, por meio da Lei Paulo Gustavo.
“Eu faço um doutorado totalmente interdisciplinar. Então, eu misturo a minha experiência como artista, como escritora, como escritora feminista”, diz Anna Carolina, que é estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP) da USP, sediado na EACH. Ela integra o ProMuSPP desde o mestrado e já teve outras produções culturais premiadas desenvolvidas a partir de seus trabalhos no programa. “A partir do momento que eu falo (que) vou escrever ou trazer outras representações de mulheres, representações feministas de mulheres, eu estou ali me propondo a realizar com a minha arte uma mudança social”, completa.
No caso do podcast, além das histórias serem protagonizadas por meninas e mulheres, as representações das personagens também questionam apagamentos e estereótipos femininos comuns. Entre eles, o da beleza, o da obediência e o do sofrimento para ajudar outras pessoas. “No primeiro episódio dessa temporada, trazemos a história de uma pesquisadora superimportante que foi apagada por anos. No episódio 15, contaremos uma relação de afeto e cuidado entre avó e neta; no 16, contaremos a história de uma menina criada na selva; no 17, as histórias questionam os estereótipos das princesas… e por aí vai”, explica a artista.
Todas essas histórias são baseadas em livros infantis publicados por editoras brasileiras. O episódio Mary Anning e o pum dos dinossauros, por exemplo, é uma adaptação do livro escrito por Jacques Fux e ilustrado por Daniel Almeida, publicado pela Companhia das Letrinhas. Os episódios podem ser acessados gratuitamente em qualquer plataforma de áudio e contam com recursos de acessibilidade.
Capa do episódio sobre Mary Anning do podcast Conta! Conta! Conta! – Imagem: ciaruidorosa/Instagram
A mulher ideal e a mulher feminista
O projeto A Heroína da História compreende uma série de ações para difundir os resultados da pesquisa acadêmica de Anna Carolina. Além do podcast, as ações incluem atividades com educadores e sessões de contação de histórias. A ideia é, por meio da arte, questionar a maneira como mulheres e meninas costumam ser representadas em nossa cultura. “Para mim sempre foi muito difícil me achar nessas representações ficcionais das mulheres. Então, a partir disso eu comecei a me perguntar onde estávamos representadas”, conta a artista e pesquisadora.
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No doutorado, sob a orientação da professora Marília Velardi, Anna Carolina analisa como duas representações hegemônicas das mulheres aparecem nas artes, na cultura e no jornalismo do Brasil entre as décadas de 1950 e 1980. Para construir sua análise, a pesquisadora utiliza materiais diversos e se apoia nas teorias produzidas pelo feminismo brasileiro, em especial pela corrente do feminismo antipatriarcal. Apesar de recortar um período da segunda metade do século 20 para sua análise, Anna Carolina não se prende apenas a esse momento e viaja no tempo conforme o necessário para dar conta do recado.
Uma das representações hegemônicas analisadas é a da “mulher ideal”: a mãe e dona de casa obediente ao marido, que se ocupa dos afazeres domésticos e do trabalho de cuidado, nenhum dos quais costuma ser considerado realmente como trabalho. A outra representação é a da mulher feminista, retratada pela imprensa brasileira durante o período como “a feia, a mal-amada, a grossa”.
Segundo a artista, essas duas representações hegemônicas têm servido para barrar as lutas das feministas por direitos, reforçando ideias machistas sobre qual seria o lugar da mulher na sociedade. Nessa noção de mundo patriarcal, seria um lugar longe do espaço público, longe da política e longe dos grandes acontecimentos que viram manchetes de jornais. “Conforme a gente vai vendo a atuação das feministas no Brasil, isso vai ficando cada vez mais evidente”, afirma.
“Se a gente pega a origem de várias sociedades patriarcais, inclusive a nossa brasileira, vai percebendo o quanto as leis foram feitas para proteger, no início, aquela figura do patriarca e, depois, o patriarcado se instaura como um sistema. Então, a gente vai conseguindo ver como a representação da mulher ideal, por exemplo, vai impactando no que a gente vai conseguir de direitos trabalhistas. (Tem) a própria questão da mãe ideal. Se toda mulher tem que ser mãe, por que vamos discutir sobre os corpos das mulheres e o direito das mulheres de serem ou não mães, de fazerem ou não aborto?”, questiona.
Anna Carolina Longano atualmente está na etapa final do doutorado. A defesa de sua tese na EACH está prevista para dezembro.