Quase lá: Impacto do clima nas religiões de matriz africana é tema de evento de Geledés em Bonn

Alterações climáticas estão afetando as práticas dos terreiros dos afrodescendentes, concluem as organizações que discutem a crise na Alemanha

Kátia Mello - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

Um importante debate foi instaurado no evento “Comunidades afrodescendentes: caminhos possíveis para enfrentar a crise climática”, promovido por Geledés -Instituto da Mulher Negra em parceria com a ONG Conectas e o Instituto de Estudos de Religião (ISER), e realizado nesta quinta-feira 6, na programação da Conferência sobre Alterações Climáticas, que acontece em Bonn, na Alemanha, entre os dias 3 e 13 de junho.

Em sua fala de abertura, Isabel Pereira, representante do ISER, entrelaçou os conceitos de fé e respeito à natureza ao discursar sobre o impacto climático nas práticas religiosas das comunidades afrodescendentes. No vídeo apresentado por ela, “Religiões de Matriz Africana e a relação com a natureza”, a ialorixá baiana Mãe Meninazinha de Oxum explica como o candomblé, através de seus orixás, reverencia os elementos da natureza.

Nesse mesmo vídeo, Mãe Beata de Iemanjá, que partiu para o Orun há sete anos, reforça a ideia de que os orixás são a própria natureza. Ressalta ainda como os fenômenos extremos climáticos, como as grandes enchentes, destroem as plantações de ervas utilizadas nas práticas das religiões de matriz africana.

Isabel ainda explanou a iniciativa do ISER conhecida como “Fé no Clima”, que tem como objetivo engajar lideranças religiosas para a conscientização de suas comunidades de fé no enfrentamento à crise climática, reunindo religiosos, ambientalistas e representantes dos afrodescendentes e povos originários para o debate sobre justiça climática.

Já Hannah Balieiro, diretora-executiva do Instituto Mapinguari, direcionou sua fala à região Amazônica ao lembrar que para além das comunidades indígenas, este também é um território da população negra, uma vez que nele residem muitos quilombolas. “Cerca de 31 por cento da população quilombola (do Brasil) encontra-se na Amazônia”, ressaltou Hannah. “Precisamos olhar para esta população e a preservação de seus direitos”, acrescentou. Hannah também mencionou a plataforma “Amazônia Terra Preta”, em que entidades de afrodescendentes se reúnem para tratar dessas questões no país.

Ao analisar o impacto climático nas populações afrodescendentes, Letícia Leobet, assessora internacional de Geledés, destacou a situação de mulheres e crianças afrodescendentes, que, segundo ela, enfrentam os piores efeitos da crise, apesar de serem a menor parcela a causá-la. “As práticas discriminatórias baseadas em raça e gênero, as normas socioculturais, os mitos e as leis geram impactos desproporcionais nas mulheres e crianças afrodescendentes. Elas são excluídas dos recursos necessários para adaptação e privadas do acesso a oportunidades, bens e serviços devido ao racismo sistêmico, independentemente de sua posição na pirâmide social, tornando-se mais vulneráveis a perdas e danos”, apontou Letícia.

Assim como as demais palestrantes, Letícia sublinhou a intolerância em relação às práticas religiosas de matriz africana com seus impactos nas comunidades de terreiro, sujeitas constantemente a intolerâncias e discriminação. “Esses espaços sagrados, onde se preservam e se celebram as religiões de matriz africana, muitas vezes estão situados em áreas vulneráveis a desastres ambientais. A localização em zonas de risco não é acidental, mas sim um reflexo das políticas urbanas e ambientais que ignoram ou deliberadamente prejudicam essas comunidades, reforçando a exclusão histórica e sistêmica que sofrem”, disse ela.

Letícia ainda evidenciou que o sistema econômico global “aprofunda desigualdades, racismo sistêmico, injustiças de gênero e degradação ambiental nos territórios vulnerabilizados”.

“Muitos dos atuais planos para corrigir as emissões globais, como as NDCs e os planos nacionais, repetem padrões de desigualdades sociais sistêmicas. O uso de energias renováveis, como os biocombustíveis, afeta a segurança alimentar e ameaça os direitos das mulheres afrodescendentes, quilombolas e de terreiro”, disse ela.

Para fechar o evento, Angela Ebeleke, da República do Congo e co-facilitadora das negociações sobre gênero e clima da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, conhecida como UNFCCC, ressaltou o desempenho de Geledés neste campo, evocando a organização a expandir sua atuação na adoção de linguagem nos documentos em aprovação em Bonn em apoio aos direitos da população afrodescendente. “É preciso levar (essa questão) para outras pessoas, para que sua voz seja ouvida por diferentes representantes de outros países, seja entendida por eles e colocada no documento final da ONU”, disse ela no encerramento.

A conferência de Bonn é considerada uma pré-COP, já que promove reuniões técnicas que discutem as agendas prioritárias que serão apresentadas e encaminhadas nas Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Nesta direção, Geledés apresenta na UNFCCC uma cosmovisão afrocêntrica, na qual estão assentadas as expressões de matriz africana, assim como a cosmovisão indígena, que têm como princípio que a humanidade faz parte da natureza e não como seres superiores que dominam a natureza.

 

Leia abaixo o texto na íntegra da assessora internacional de Geledés, Letícia Leobet:

Comunidades afrodescendentes: Caminhos possíveis para enfrentar a crise climática

Gostaria de começar saudando a ancestralidade de todas as pessoas presentes aqui ,e também de toda a população afrodescendente que advém do continente africano. A ancestralidade de cada pessoa da mesa e das pessoas presentes neste encontro.

É uma grande honra estar representando Geledés – Instituto da Mulher Negra neste espaço, pois para nós de Geledés – que trazemos em nosso nome a simbologia da irmandade e a luta coletiva – é muito importante estar neste espaço para discutir um tema que é crucial para a manutenção da nossa existência neste planeta.

Nós já sabemos e entendemos coletivamente que a crise climática afeta a todas as pessoas, mas precisamos aprofundar nossos entendimentos sobre a maneira desigual que ela atinge as pessoas. A população afrodescendente, em especial mulheres e crianças, enfrentam os piores efeitos, apesar de terem contribuído minimamente para causar essa crise. As práticas discriminatórias baseadas em raça e gênero, as normas socioculturais, os mitos e as leis geram impactos desproporcionais nas mulheres e crianças afrodescendentes. Elas são excluídas dos recursos necessários para adaptação e privadas do acesso a oportunidades, bens e serviços devido ao racismo sistêmico, independentemente de sua posição na pirâmide social, tornando-se mais vulneráveis a perdas e danos.

A definição de racismo ambiental se baseia no reconhecimento do Estado Racial e na ação institucional deliberada que resulta na exposição desproporcional das populações afrodescendentes e indígenas a condições ambientais degradantes. A população afrodescendente está desproporcionalmente concentrada em zonas de sacrifício globais – regiões perigosas e até inabitáveis devido à degradação ambiental.

O racismo ambiental e a intolerância em relação às práticas religiosas, embora manifestem-se de maneiras distintas, estão profundamente entrelaçados, contribuindo conjuntamente para a marginalização e a vulnerabilidade de comunidades afrodescendentes e de religião de matriz africana. O racismo ambiental refere-se às práticas e políticas que colocam desproporcionalmente as populações negras e pobres em áreas de risco ambiental, sujeitas a enchentes, poluição e degradação do solo. Essas comunidades são frequentemente negligenciadas pelas políticas públicas de planejamento urbano e infraestrutura, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social.

Simultaneamente, a intolerância em relação às práticas religiosas de matriz africana impacta severamente as comunidades de terreiro, cujas práticas culturais e espirituais são constantemente alvo de intolerância e discriminação. Esses espaços sagrados, onde se preservam e se celebram as religiões de matriz africana, muitas vezes estão situados em áreas vulneráveis a desastres ambientais. A localização em zonas de risco não é acidental, mas sim um reflexo das políticas urbanas e ambientais que ignoram ou deliberadamente prejudicam essas comunidades, reforçando a exclusão histórica e sistêmica que sofrem.

Essa dupla opressão não só ameaça a integridade física das comunidades, mas também mina suas tradições culturais e espirituais. A degradação ambiental pode levar à destruição de terreiros, locais sagrados e plantas medicinais essenciais para os rituais religiosos, resultando em perdas culturais e espirituais irreparáveis. Além disso, a violência simbólica contra essas práticas religiosas, que muitas vezes são estigmatizadas e criminalizadas, se intensifica quando combinada com a vulnerabilidade ambiental, criando um cenário de resistência e sobrevivência constante.

Portanto, para abordar adequadamente a justiça climática e racial, é crucial reconhecer e combater tanto o racismo ambiental quanto a intolerância em relação às práticas religiosas. Políticas públicas devem ser formuladas e implementadas com um entendimento profundo das interseções entre essas formas de discriminação, garantindo a proteção dos direitos territoriais, culturais e espirituais das comunidades afrodescendentes e de religião de matriz africana. Isso inclui a promoção de diálogos inclusivos, a proteção de territórios sagrados e a valorização de conhecimentos tradicionais na construção de soluções sustentáveis e equitativas para a crise climática.

Essa gama de  impactos racialmente díspares exigem uma reorientação fundamental das instituições políticas, sistemas econômicos e princípios legais para incluir justiça racial e prioridades de igualdade. A verdadeira justiça racial implica o fim do racismo ambiental e também adaptações, mitigações e estruturas de perdas e danos culturalmente sensíveis  que acabem com o racismo sistêmico embutido na economia global, hierarquias políticas e estruturas legais.

Nesse sentido, a presença de Geledés nesta conferência significa lutar para evidenciar que as economias globais precisam enfrentar o sistema econômico que aprofunda desigualdades, racismo sistêmico, injustiças de gênero e degradação ambiental nos territórios vulnerabilizados. Muitos dos atuais planos para corrigir as emissões globais, como as NDCs e os planos nacionais, repetem padrões de desigualdades sociais sistêmicas. O uso de energias renováveis, como os biocombustíveis, afeta a segurança alimentar e ameaça os direitos das mulheres afrodescendentes, quilombolas e de terreiro. Projetos solares, por exemplo, podem levar à apropriação de terras e à degradação ambiental, removendo milhares de famílias lideradas por mulheres afrodescendentes, quilombolas e indígenas, incluindo as comunidades de terreiro.

Esses processos precisam ser conduzidos com diálogo consistente com as comunidades, respeitando suas realidades culturais. Nós de Geledés temos promovido e provocado discussões profundas, proposições e embates para que haja reconhecimento do racismo ambiental presente no país e que isso reflita a nível global, além disso temos recomendado fortemente que:

Novos conceitos devem ser operacionalizados na proposição de enfrentamento da crise climática, de modo a reconhecer os modos de vida e saberes de diversos povos tradicionais. Por exemplo, os conhecimentos das comunidades de religião de matriz africana oferecem formas sustentáveis de interação com o meio ambiente que devem ser respeitadas, incorporadas e adotadas em maior escala nas políticas de combate à crise climática.

E que além disso, sejam considerados os conceitos e recomendações historicamente consensuados pela comunidade afrodescendente a nível global. Recomendamos a Declaração e Plano de Ação de Durban seja mencionada e referenciada nos processo de negociação, afinal se trata de um documento consistente que apresenta uma agenda climática construída em consenso com a sociedade civil afrodescendente. Além disso, é necessário aproximar as discussões sobre justiça climática às discussões sobre desenvolvimento sustentável, reconhecendo o compromisso de combater o racismo, todas as formas de discriminação, xenofobia e intolerância correlata, estigmatização e discurso de ódio por meio de cooperação, parcerias, inclusão e respeito à diversidade.

A crise climática exige um compromisso global com a justiça racial e a igualdade. Apenas por meio de uma abordagem inclusiva e equitativa, que respeite e valorize as contribuições das comunidades tradicionais de religião de matriz africana, poderemos construir um futuro sustentável e justo para todos.

Por fim, gostaria de ler um Itan que são as narrativas sagradas que contam a história da nossa ancestralidade como uma comunidade global,  através dos Orixas e seus feitos e que são fundamentais para a preservação da nossa cultura de matriz africana e e são arquétipos de nossa origem comum.

Itã de Oxóssi e a Floresta

Oxóssi, o Orixá da caça e protetor das florestas, sempre foi conhecido por sua habilidade em encontrar sustento para sua comunidade sem destruir a natureza. Em uma época de grande escassez, quando os recursos estavam se tornando cada vez mais escassos, Oxóssi foi chamado a encontrar uma solução para alimentar seu povo. Em vez de explorar excessivamente os recursos da floresta, ele decidiu ouvir os conselhos dos mais velhos e dos animais, seus companheiros espirituais.

Oxóssi entendeu que a floresta era um ser vivo e que seu equilíbrio era essencial para a sobrevivência de todos. Ele se retirou para o coração da floresta e, em meditação profunda, pediu orientação aos espíritos da natureza. Os espíritos lhe mostraram que a destruição desenfreada levaria à ruína não apenas da floresta, mas também de seu povo.

Guiado pela sabedoria ancestral, Oxóssi adotou práticas de caça e colheita sustentáveis. Ele caçava apenas o necessário para alimentar sua comunidade e sempre escolhia os animais mais velhos, permitindo que os mais jovens continuassem a procriar. Para cada árvore que era derrubada, Oxóssi e seu povo plantavam novas mudas, garantindo a continuidade da floresta.

Oxóssi também ensinou seu povo a utilizar todas as partes dos recursos naturais, evitando desperdícios. Os restos das caças eram utilizados para fertilizar o solo, e as árvores derrubadas eram substituídas por novas plantações que diversificavam a flora local.

Com o tempo, a comunidade de Oxóssi prosperou. A floresta se manteve saudável e abundante, provendo tudo o que era necessário para o sustento do povo. A harmonia entre a humanidade e a natureza foi restaurada, e Oxóssi foi reverenciado como o grande protetor da floresta e exemplo de sabedoria e equilíbrio.

fonte: https://www.geledes.org.br/impacto-do-clima-nas-religioes-de-matriz-africana-e-tema-de-evento-de-geledes-em-bonn/

 


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