Pesquisadora da USP entrevistou pacientes negras de centro de referência e concluiu que padrão eurocêntrico contribui para violência obstétrica
Jornal da USP - Publicado: 15/01/2025 às 17:44
Texto: Isabela Nahas*
Arte: Diego Facundini**
“As mulheres negras participantes da pesquisa acabaram por, dentre outras coisas, desocultar o racismo estruturado na proposta de parto humanizado”, disse a pesquisadora
Uma dissertação de mestrado feita na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP descobriu casos de racismo contra funcionárias e pacientes na Casa Angela, referência em parto humanizado localizada na zona sul de São Paulo. A Casa realiza apenas partos naturais e acompanha somente gestações de baixo risco. Fundada pela Associação Comunitária Monte Azul, uma organização não governamental que atua na região do M’Boi Mirim, a casa de parto atende pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Intitulada “Era uma longa caminhada para chegar até lá…” e “Lembra da mulher que ficou lá atrás?”: mulheres negras e a experiência em uma casa de parto humanizado na cidade de São Paulo, a dissertação traz relatos da própria pesquisadora, de pacientes e de funcionárias da casa, que denunciaram as violências contra mulheres pretas. A autora, Verônica Aline Matos Santos, conclui que “o conceito de humanização do nascimento é pautado no padrão de humanidade branca” e que a estrutura da instituição contribui para a ocorrência de casos de violência obstétrica contra mulheres negras.
Aline utilizou uma metodologia chamada escrevivência, proposta pela escritora Conceição Evaristo. Nessa metodologia, a autora e as outras mulheres negras que entrevistou relatam suas experiências pessoais para representar um coletivo. “A experiência de uma mulher negra, ainda que individual, acaba por falar, de alguma forma, da experiência coletiva de vida desse grupo. ‘Escrever é uma maneira de sangrar’, nas palavras de Conceição Evaristo”, diz a pesquisadora.
Parto humanizado para quem?
Parto humanizado é aquele em que a vontade da gestante é colocada em primeiro lugar, desde que não haja risco a ela ou ao bebê. Todos os procedimentos são previamente explicados e feitos apenas em caso de necessidade, ou a pedido da paciente.
As primeiras mulheres com quem Aline entrou em contato foram Helena* e Lilith*. Apesar da casa de parto ter como proposta uma experiência não violenta de gestação, ambas as mães, pretas, relataram ter sofrido violência obstétrica. Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar suas identidades.
Durante o parto, Lilith* foi atendida por uma equipe de enfermeiras, que não chegava perto dela, e um enfermeiro. Foi transferida para o hospital sem necessidade e, quando chegou, teve a bolsa de água quente, usada para amenizar as dores, puxada de sua mão.
“Eu não senti [que o parto foi] humanizado, teria que ser em todas as horas. Eu me senti um corpo.”
Lilith*, mulher negra, paciente da Casa Angela entrevistada pela pesquisadora
Já Helena* relatou que uma das funcionárias da equipe que realizou seu parto fez um exame de toque que a machucou. Ela sentia dor, pedia para que parasse, mas a funcionária continuava. Ela também não pôde escolher a posição em que iria parir. O tratamento humanizado se iniciou apenas quando uma doula apareceu. “Ela humanizou o parto humanizado”, disse Helena*.
“Eu fico matutando: será que era um procedimento desnecessário, só porque eu sou preta? Se eu fosse branca, ela faria o mesmo?”
Helena*, paciente da Casa Angela, entrevistada por Aline Matos
A própria pesquisadora teve uma experiência negativa na Casa Angela. Foi o que a levou de volta ao local durante a pesquisa, com o objetivo de descobrir se sua experiência havia sido semelhante às de outras mulheres negras. Aline conta que em sua primeira gestação, há 13 anos, não queria ser acompanhada em uma clínica tradicional. Descobriu a Casa por meio de contatos e se encantou. Foi bem atendida na maior parte do tempo, mas logo percebeu, por falas discriminatórias, que o local era frequentado em sua maioria por mulheres brancas e de classe média. Além disso, durante e após o parto ela se deparou com episódios de violência por parte da equipe profissional.
Ao perceber que sua bolsa amniótica rompeu, Aline ligou para a casa de parto e foi informada por uma enfermeira que ela não poderia parir no local por conta da presença de mecônio, a primeira excreção do bebê antes da ingestão de leite. Em alguns casos, ele pode ser eliminado ainda dentro do útero. Por intervenção da doula que a acompanhava, a coordenadora da Casa a orientou a procurar atendimento no hospital mais próximo, que era privado, para conferir se se tratava mesmo de mecônio.
Aline Matos, autora da pesquisa, mulher negra, advogada, militante de direitos humanos, educadora e mãe solo - Foto: Arquivo pessoal
“Com a confirmação, as médicas do hospital preenchiam uma guia de cesárea com urgência, fiz perguntas para ganhar tempo e ligamos novamente para a Casa Angela. Na ligação em viva-voz, a coordenadora perguntou sobre o resultado do exame de cardiotocografia e as médicas responderam que estava normal. Perguntou sobre a tonalidade do mecônio, se claro ou escuro, resposta: era claro. Afirmou, então, que não era caso para cirurgia cesárea pelo resultado do exame somado à coloração do mecônio, que por ser claro significava que fora feito recentemente pelo feto, algo até mesmo previsível para uma gestação que alcançava a 42ª semana”, lembra a pesquisadora.
“Assim que desligou, as médicas afirmaram que era caso para cesárea sim e que se o feto aspirasse mecônio poderia até mesmo vir a óbito, algo que não desejavam”
Aline Matos, autora da pesquisa, sobre sua experiência pessoal
No fim, Aline não deu o bebê à luz nem na Casa Angela, nem no hospital privado. Ela fez um parto normal em outro hospital público. Ao lembrar da experiência anos depois, durante o mestrado, Aline questionou o conceito de humanidade proposto pela casa de parto.
Mulheres negras correm maior risco de sofrer violência obstétrica
Segundo dados do projeto Nascer no Brasil, uma pesquisa nacional sobre partos realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de 2011 a 2012, mulheres pretas e pardas possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, ausência de acompanhante e peregrinação para o parto, que ocorre quando a gestante precisa passar por mais de um serviço de saúde em busca de atendimento. De 2022 a 2023, foi realizado o Nascer no Brasil 2, cujos resultados preliminares chegaram às mesmas conclusões com relação à cor de pele: quanto mais escura, pior o atendimento e maior a chance de sofrer violência obstétrica.
No artigo A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil, um grupo de pesquisadores da Fiocruz analisou os dados da pesquisa de 2012. Os autores concluíram que a falta de cuidados com as gestantes negras se deve, provavelmente, às ideias de que elas são mais resistentes à dor e de que são fisiologicamente mais “adequadas” para parir. Nenhuma das afirmações é comprovada cientificamente.
Os achados da Fiocruz encontram eco na dissertação de Aline Matos. Além das pacientes, a pesquisadora da EACH também conversou com profissionais com atuação na Casa Angela. Nice*, uma obstetriz branca, disse que a instituição não promove discussões sobre o impacto do preconceito racial para os funcionários. Dandara*, uma doula afro-indígena, afirmou ter presenciado vários casos de racismo, tendo sido demitida por se posicionar contra o preconceito.
“Pedi a abertura de um Fórum Antirracista na Casa para que todas as mulheres pretas pudessem expressar seus desconfortos, estranhamentos. Ouvi que antes de pensar em um fórum, tinha que cuidar da minha saúde mental. Fui demitida um dia depois.”
Dandara*, doula, em entrevista a Aline Matos
Segundo Aline, o conceito de parto humanizado da Casa Angela não considera as singularidades que mulheres negras e de origem periférica vivem. Além disso, a Casa se apresenta como adotadora de conhecimentos europeus, apesar de usar métodos de origem negra e indígena, como parir de cócoras. É o que a pesquisa chama de epistemicídio. O termo, criado pela filósofa Sueli Carneiro, se refere ao apagamento dos saberes de culturas como a africana e indígena, e à valorização de conhecimentos europeus e norte-americanos.
A pesquisadora ainda destaca a origem da casa de parto, que, apesar de ter sido construída em conjunto com a comunidade periférica da região, ignora essa parte da história. ”Sem o consentimento dessas mulheres [da periferia] não haveria possibilidade da história acontecer”, diz. Na seção do site da Casa que apresenta a história da instituição realmente não há nenhuma menção à participação dessas mulheres.
Parto sem racismo nem epistemicídio
Apesar da crítica, Aline comentou que o intuito da pesquisa não é tirar a credibilidade da Casa Angela, cujo pilar principal é a realização de partos que respeitam as gestantes. O que ela propõe é que a instituição dialogue com os movimentos sociais. “A pesquisa demonstrou que dentro da comunidade Monte Azul, na qual a instituição está, há forte construção de práticas comunitárias de cuidado à saúde integral e muito a ser aprendido pela Casa Angela”, afirma.
Ela também sugere a criação de uma ouvidoria independente, para que aquelas que sofrerem algum tipo de violência possam denunciar e receber o acolhimento necessário. “Se você observar nos relatos, uma das mães denuncia o que ela sofre, só que a denúncia dela fica dentro da organização, que deslegitima e provoca uma nova violência racista contra essa mulher, quando nega a história dela, mais uma vez”, afirma Aline Matos, que defendeu sua dissertação no Programa de Pós-Graduação Mudança Social e Participação Política da USP, sob orientação do professor Tiaraju D’Andrea.
O Jornal da USP entrou em contato com a Secretaria Municipal de Saúde para perguntar sobre as denúncias de racismo na Casa Angela. Por meio de sua assessoria de imprensa, a secretaria afirmou desconhecê-las. Disse também que “não pactua com nenhum tipo de preconceito ou discriminação e irá apurar os relatos apresentados pela reportagem. Se confirmados, medidas cabíveis serão tomadas”.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado