Primeiro de uma série de textos escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio

 

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
 
"Meu corpo me lembra todos os dias, através das cicatrizes e das intensas dores das sequelas. Sinto medos profundos e irracionais a cada data que marca os meses passados do atentado" - Arquivo pessoal

 

Este é o primeiro de uma série de textos escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Há um ano, mais precisamente em 2 de maio de 2021, fui atacada a golpes de facão pelo homem com quem vivi por 18 anos. Aguardava o ônibus na parada após uma jornada longa de trabalho como técnica de enfermagem, quando ele me abordou simulando um assalto. Seu objetivo era me matar para ficar com o seguro de vida que fiz em nome dos nossos três filhos, os quais sustento sozinha e cujos nomes repeti inúmeras vezes, como um mantra, para manter-me consciente e ter forças enquanto aguardava o resgate, ensanguentada, no chão da calçada. 

Meu corpo me lembra todos os dias, através das cicatrizes e das intensas dores das sequelas. Tenho flashes do ataque, sinto medos profundos e irracionais a cada data que marca os meses passados do atentado. Ainda assisto as filmagens do crime, sinto essa necessidade, pois parece que uma parte de mim custa a acreditar. Não quero esquecer, quero que a dor suavize, quero meu direito de sentir e dar dignidade a essa história, por isso hoje eu falo: quando uma mulher se cala, muitas morrem. Não quero mais ser silenciada.

Leia também: Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil

Preciso dizer das violências cotidianas e sistemáticas que uma sobrevivente como eu sofre: da negligência do Estado à falta de empatia das pessoas. Chego a desconhecer a humanidade quando escuto perguntas como “por que ele fez isso?” ou “qual foi o motivo?”, olhares de julgamento que tentam justificar o injustificável. Parece que as pessoas não pensam para falar. Falam sem qualquer propriedade.

Estou perdendo os movimentos das mãos porque não há fisioterapeutas suficientes no SUS, não há linha de cuidado para vítimas como eu e sequer o seguro, que quase me custou a vida, foi pago integralmente. O tratamento a cada perícia do INSS é humilhante, e meus filhos não têm direito ao auxílio-reclusão, pois a renda do meu ex-marido, que se negava a pagar pensão, excedia o teto para a concessão do benefício. Esse dinheiro faz muita falta, temos sobrevivido com doações e ajuda de alimentos. Para que meus filhos não passassem fome, algumas vezes precisei fazer faxinas, mas, com as dores cada vez mais crônicas, trabalhar é uma possibilidade que se distancia. Estou me tornando uma pessoa com deficiência física após sobreviver a um ataque feminicida. Tive que reunir todos os meus recursos para mudar de estado, recomeçar a vida longe do lugar que me causa tantos gatilhos e que chegam a me impedir de andar pela rua sem ter uma crise de pânico.

:: A criminalização do aborto e as violências do patriarcado ::

Aceitei o convite para falar em uma rádio no dia que completou um ano da tragédia que marcou meu corpo e minha alma, e quão revoltante foi dar-me conta que estava sendo usada pelo apresentador do programa, um extremista bolsonarista que, após me interromper e anular minha fala inúmeras vezes, sugeriu que a solução era fomentar o acesso a armas de fogo para as mulheres. Um ano após ser violentada fisicamente, eu era violentada moral e simbolicamente. Me lembrou o tratamento recebido na delegacia da mulher quando, após muitas ofensas verbais, apanhei dele pela primeira vez. Não tive forças para pedir a renovação da medida protetiva, hoje me arrependo. Concluo que o senso comum é misógino e feminicida, por isso o Brasil só conta cadáveres. 

Contra a covardia da violência, a pedagogia da realidade: enquanto mulheres das mais distintas realidades sociais estão sob o cárcere do medo, homens nos matam movidos pela certeza da impunidade. Levam os filhos para a escola com os corpos assassinados das mães no porta-malas. Ao se defenderem, quantas mulheres como eu tiveram suas mãos decepadas?

Sair de um ciclo de violência não é algo que fazemos sozinhas. Às vezes, mesmo com recursos financeiros, o medo da morte fala mais alto e nos paralisa. Precisamos ser ouvidas de outra maneira, sentir que temos credibilidade e que as instituições funcionem. Só assim, das minhas cicatrizes nascerão asas.

*Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

***Leia mais textos como este na coluna Diálogos Feministas, do Brasil de Fato RS.

Edição: Katia Marko

 

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/11/dialogos-feministas-encontro-entre-uma-escutadora-e-uma-sobrevivente-de-feminicidio-parte-1

 


Inscreva seu email

Cfemea Perfil Parlamentar

logo ulf4

Aborto Legal

aborto legal capa

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Cfemea Perfil Parlamentar

logo ulf4

Tecelãs do Cuidado - Cfemea 2021

Violência contra as mulheres em dados

Rita de Cássia Leal Fonseca dos Santos

Ministério do Planejamento
CLIQUE PARA RECEBER O LIVRO (PDF)

marcha das margaridas agosto 2023

Estudo: Elas que Lutam

CLIQUE PARA BAIXAR

ELAS QUE LUTAM - As mulheres e a sustentação da vida na pandemia é um estudo inicial
sobre as ações de solidariedade e cuidado lideradas pelas mulheres durante esta longa pandemia.

legalizar aborto

Artigos do Cfemea

Mulheres do Distrito Federal se preparam para receber a Marcha das Margaridas. Cfemea presente!

Dezenas de ativistas do Distrito Federal se reuniram em Plenária para debater e construir a Marcha das Margaridas. A marcha já é um dos maiores eventos feministas antirracistas do Brasil.

Congresso: feministas mapeiam o conservadorismo

Pesquisa aponta: só mobilização pode superar conservadorismo do Congresso. Lá, 40% alinham-se ao “panico moral”; 57% evitam discutir aborto; 20% são contra atendimento às vítimas e apenas um em cada cinco defende valores progressistas

Eleições: O “feminismo” de fundamentalistas e oligarcas

Candidaturas femininas crescem no país, até em partidos conservadores. Se o atributo de gênero perde marcas pejorativas, desponta a tentativa de passar ao eleitorado uma receita morna de “defesa das mulheres” – bem ao gosto do patriarcado

A pandemia, o cuidado, o que foi e o que será

Os afetos e o cuidar de si e dos outros não são lugar de submissão das mulheres, mas chave para novas lutas e processos emancipatórios. Diante do horror bolsonarista, sangue frio e coração quente são essenciais para enfrentar incertezas, ...

Como foi viver uma Campanha Eleitoral

ataques internet ilustracao stephanie polloNessa fase de campanha eleitoral, vale a pena ler de novo o artigo que Iáris Cortês escreveu uns anos atrás sobre nossa participação em um processo eleitoral

Dezesseis anos da Lei 11.340, de 07/08/2006, Lei Maria da Penha adolescente relembrando sua gestação, parto e criação

violencia contra mulherNossa Lei Maria da Penha, está no auge de sua adolescência e, se hoje é capaz de decidir muitas coisas sobre si mesma, não deve nunca esquecer o esforço de suas antepassadas para que chegasse a este marco.

Como o voto feminino pode derrubar Bolsonaro

eleicoes feminismo ilustracao Thiago Fagundes Agencia CamaraPesquisas mostram: maioria das mulheres rechaça a masculinidade agressiva do presidente. Já não o veem como antissistema. Querem respostas concretas para a crise. Saúde e avanço da fome são suas principais preocupações. Serão decisivas em outubro. (Ilustração ...

Direito ao aborto: “A mulher não é um hospedeiro”

feministas foto jornal da uspNa contramão da América do Sul, onde as mulheres avançam no direito ao próprio corpo, sociedade brasileira parece paralisada. Enquanto isso, proliferam projetos retrógrados no Congresso e ações criminosas do governo federal

As mulheres negras diante das violências do patriarcado

mulheres negras1Elas concentram as tarefas de cuidados e são as principais vítimas de agressões e feminicídios. Seus filhos morrem de violência policial. Mas, através do feminismo, apostam: organizando podemos desorganizar a ordem vigente

Balanço da ação feminista em tempos de pandemia

feminismo2Ativistas relatam: pandemia exigiu reorganização política. Mas, apesar do isolamento, redes solidárias foram construídas – e o autocuidado tornou-se essencial. Agora, novo embate: defender o direito das mulheres nas eleições de 2022

nosso voto2

...