Não é suficiente que os hegemônicos de sempre permaneçam nas posições de comando

 

FLÁVIA OLIVEIRA

 

Foi Sueli Carneiro, filósofa, líder do movimento de mulheres negras, referência de todas nós, que me apresentou, anos atrás, a “Cotistas desagradecidos”, artigo contundente do jornalista e historiador Tau Golin, em defesa de uma então embrionária política de ações afirmativas em favor do acesso de pobres, negros e indígenas às universidades públicas. Golin expunha a contradição de grupos sociais historicamente beneficiários de cotas — em particular, colonos estrangeiros brindados com porções de terras no Rio Grande do Sul — se levantarem contra sistema assemelhado em prol de brasileiros historicamente vulnerabilizados. Em suma: cotas para uns, outros que lutem.

Revivo a ideia de Golin para tratar do fenômeno da hora na política brasileira, os cotistas apegados. Muito já se falou — e mais ainda escrevi — sobre a crescente cobrança por representatividade de segmentos tornados invisíveis nos espaços de poder político, econômico, corporativo, artístico, cultural, midiático. Há décadas, mulheres, negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+ qualificaram-se, elencaram pautas, enfileiraram diagnósticos e propostas para assumir assentos e empunhar canetas.

Há demanda por políticas públicas. E urgência por protagonismo. Significa que não é suficiente que os hegemônicos de sempre permaneçam nas posições de comando. Para onde se olhe, mulheres e negros são maioria na população e fração no poder. Na segunda metade do século XX, as brasileiras tomaram os bancos escolares e chegaram à virada do milênio com analfabetismo menor e escolaridade maior que a dos homens. Nas últimas décadas, as cotas nas universidades ampliaram o total de pessoas negras com curso superior.

Aumento da qualificação e consciência das barreiras de gênero e raça à inclusão levaram à cobrança objetiva de mulheres, negros e indígenas por representatividade. No mundo corporativo, multiplicam-se estudos que revelam quanto a diversidade é amiga da satisfação no ambiente laboral, da inovação e da rentabilidade. McKinsey é uma empresa de consultoria que, ano após ano, atesta em relatórios globais e latino-americanos quanto ambientes diversos em posições hierárquicas (gerência, diretoria, presidência, conselho) aumentam a produtividade e a permanência de colaboradores, enriquecem estratégias, potencializam lucro.

Companhias comprometidas com os princípios de ESG (sigla em inglês para responsabilidade ambiental, social e governança) desenvolvem e aplicam programas de equidade de gênero e raça, tanto por convicções morais e justiça social quanto por sobrevivência em mercados cada vez mais competitivos, formados por consumidores cientes da agenda de nosso tempo. Na política, mundo afora, candidatos prometem — e eleitos aplicam — paridade ou representatividade robusta em seus gabinetes, de Joe Biden a Emmanuel Macron, de Gabriel Boric a Gustavo Petro. Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, eleito em 2015, nomeou 15 homens e 15 mulheres para seu ministério. Numa entrevista coletiva, um jornalista indagou o motivo da paridade.

— Porque é 2015 — ele respondeu.

Às vésperas de 2023, o protagonismo feminino e negro, que faria bem ao Brasil no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, parece empacado. O presidente eleito, ora diplomado, não prometeu paridade. Escolhido pela maioria do eleitorado negro, feminino, indígena, sinalizou formação de ministério diverso. Até aqui, minimamente. Na primeira leva de ministros, apresentou cinco homens. Pelo menos oito mulheres apareciam como ministeriáveis em três dezenas de pastas: Simone Tebet, Marina Silva, Izabella Teixeira, Gleisi Hoffmann, Esther Dweck, Nísia Trindade, Izolda Cela, Maria Laura da Rocha.

Até aqui, a cantora, produtora cultural e empreendedora social Margareth Menezes foi anunciada na Cultura. Nísia, presidente da Fiocruz, deve ser confirmada na Saúde. Simone passou semanas como marisco na guerra entre o mar da indicação partidária do MDB e a cota pessoal de Lula. Izolda e Maria Laura foram preteridas por homens na Educação e nas Relações Exteriores. Margareth é negra, Flávio Dino, futuro ministro da Justiça, pardo.

Aqui não se trata de contestar a capacidade dos quadros masculinos preferidos pelo presidente. Mas de questionar por que mulheres e negros, igualmente capacitados, são preteridos e secundarizados? Por que figuras que já estiveram em posições de poder insistem em mantê-las, em vez de abrir espaço ao novo que, não raro, defendem em discursos de palanque? Comportam-se como se funções públicas numa sociedade — diversa, repito — fossem direitos adquiridos.

Aos cotistas apegados, recomendo o desapego. Um homem branco, ainda que capacitado e antirracista, não substitui uma pessoa negra, igualmente qualificada, em sua vivência. Assim como não é equivalente a uma mulher ou a um indígena —nem a um LGBTQIA+, se heterossexual for. A construção de uma sociedade diversa, democrática, equânime também depende da consciência (generosa) sobre a hora de se levantar da mesa e deixar outros se sentar.

Ninguém haverá de entrar, se quem está dentro não sai. Avesso do bom demais da canção de Dominguinhos e Nando Cordel.

 

fonte: https://www.geledes.org.br/protagonismo-feminino-e-negro-no-novo-governo-empaca/

 


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