A médica Maria Cecília Conceição, primeira negra a atingir o topo da carreira na Marinha, falou ao CB.Poder dos desafios da vida militar e das oportunidades que as Forças Armadas abrem às mulheres

 

Isabel Dourado*
postado em 12/07/2023 Correio Braziliense
 (crédito:  Kayo Magalhães/CB/D.A Press)
(crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)

Primeira mulher negra a alcançar o posto de almirante — o mais alto da hierarquia militar da Marinha do Brasil —, a médica Maria Cecilia Barbosa da Silva Conceição participou, na terça-feira (11/7), do programa CB Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília. Em entrevista ao jornalista Carlos Alexandre, a almirante falou sobre o protagonismo feminino na carreira militar e a valorização das mulheres na Marinha. A promoção de Maria Cecília se deu em fevereiro, em cerimônia que contou com a participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Antes de Maria Cecilia, somente duas mulheres haviam alcançado o posto de almirante, a médica Dalva Maria Carvalho Mendes, em 2012, e a engenheira Luciana Mascarenhas da Costa Marroni, 2018. Na entrevista, a militar fala sobre meritocracia, machismo no meio militar e as dificuldades e barreiras que as mulheres enfrentam quando entram em territórios que eram exclusivos dos homens. Acompanhe os principais trechos.

Por que a senhora decidiu entrar na Marinha, em uma época em que essa não era uma opção para a maioria das mulheres?

A Marinha do Brasil é pioneira desde 1980 permitindo o ingresso das mulheres, inicialmente, no corpo feminino de auxiliares praças e oficiais que realizavam funções técnicas e administrativas. Com o tempo, esse espectro foi aumentando para o ingresso de mulheres em várias outras posições, em vários corpos, quadros e situações. O meu ingresso foi em 1995, mas, desde criança, já tinha esse sonho de ingressar na Marinha. Eu estudava em escola pública, e as escolas públicas naquele tempo formavam as crianças, tinha a disciplina de educação moral e cívica, e eu lembro que nós entrávamos formados. Tinha o hasteamento da Bandeira, o canto do Hino Nacional, e nós íamos para as salas de aula. Desde aquele momento, eu tinha vontade de ingressar na Marinha.

Não era em escola militar?

Não. Escola pública, civil, normal, no Rio de Janeiro. Depois disso, na adolescência, eu tive conhecimento do ingresso feminino, dessa possibilidade de participação. Foi muito comentado, eu lembro que as mulheres apareceram em capas de revistas, tudo foi muito divulgado. Mas o meu sonho mesmo era ser médica. Então, optei por continuar estudando e ingressar na faculdade de medicina. Eu sou intensivista. Quando ingressei na Marinha, em 1995, eu não sabia que existia a possibilidade da mulher servir como médica, com uma profissão na instituição. Eu ingressei, participei do curso de formação de oficiais e fui designada para (trabalhar em) hospital, dentro da minha especialidade. Com o tempo, a gente foi ganhando experiência, se comprometendo com a Força, ganhando outros postos.

A senhora é a terceira mulher a chegar no topo da carreira?

Terceira mulher a atingir o posto de almirante. A Marinha é pioneira nisso, também. A primeira, em 2012, foi a contra-almirante Dalva, uma médica também anestesista que chegou ao generalato. A segunda foi a contra-almirante Luciana, engenheira. Neste ano, eu fui agraciada com essa promoção. A carreira é uma meritocracia, você se desenvolve na carreira, tem a possibilidade de profissionalização, de capacitação, treinamento e vai galgando postos cada vez mais altos à medida que você tem o trabalho bem desenvolvido e é reconhecido pela instituição.

Como a senhora descreveria esse processo? Podemos chamar de abertura?

Eu acredito que a ideia, a vontade, já existia previamente desde a Segunda Guerra Mundial, quando mulheres foram chamadas para o atendimento, para serem as enfermeiras e trabalharem na Europa, para o atendimento dos soldados brasileiros durante a guerra. Depois, essa participação desapareceu, mas eu acho que a vontade da mulher sempre foi mostrar que ela era capaz de ingressar, e isso foi reconhecido em algum momento. Em 1980, o almirante de esquadra Maximiano da Fonseca, então ministro da Marinha, foi o patrono que favoreceu, brigou para que existisse a lei que possibilitou esse ingresso. Eu acredito que as coisas foram acontecendo naturalmente, as mulheres vão demonstrando a capacidade, demonstrando ao que vieram, que não podem ser só coadjuvantes, que elas têm que ser protagonistas nessa história.

A partir do ano que vem, a gente pode dizer que em todos os postos da Marinha haverá a presença de uma mulher?

Sim. Atualmente, as mulheres podem ingressar em todos os corpos, quadros, centros de instrução, cursos de formação de escolas, estão em todos os postos da Marinha. Esse ingresso operativo começou em 2014 com o ingresso das primeiras mulheres que entraram para a escola naval, onde elas se profissionalizam, se capacitam para o corpo da Armada e dos fuzileiros navais. No ano passado, já começaram a ingressar as mulheres das escolas de aprendizes de marinheiros e as adolescentes do Colégio Naval. Com 15, 16 anos, já podem ingressar e seguir uma carreira militar. Neste ano, está sendo preparado o ingresso das mulheres que farão os cursos de formação de soldados fuzileiros navais a partir de 2024. Então, atualmente, nas Forças, as mulheres têm a possibilidade de não só ingressar como de realizar uma carreira sólida, de excelência em uma instituição forte, significativa para suas vidas e fazendo o mesmo trabalho que os homens fazem de excelência durante toda sua carreira.

Na semana passada, o presidente Lula sancionou a lei que estabelece a igualdade salarial. Isso já acontece na Marinha?

Desde o primeiro ingresso, em 1980, foram garantidos que todos os direitos, os deveres, as oportunidades e as parcelas remuneratórias devem ser exatamente os mesmos para homens e mulheres. Um almirante da ativa, um contra-almirante da ativa, seja homem ou mulher, seja do corpo da Armada, do corpo de saúde, do corpo de engenheiros.

As Forças Armadas ainda são um ambiente predominantemente masculino. Como as mulheres estão mudando essa cultura?

O ingresso da mulher foi uma novidade nas Forças Armadas, que existem há séculos. Esse ingresso trouxe oportunidades para a mulher e a necessidade de adaptação não só das escolas, da estrutura física, dos alojamentos e dos vestiários. Tudo teve que ser adaptado para a recepção das mulheres. Como a forma de proceder, de interpretar e de conviver com as mulheres. Nós temos geneticamente o gene do cuidado, do feminino, temos esse perfil feminino e a preocupação constante das mulheres com as obrigações domésticas, preocupação com filhos. E conseguir equilibrar isso no ambiente de trabalho, onde se cobra muita dedicação e disponibilidade, às vezes é complicado. Eu lembro de uma vez que deixei minha filha na escola e ela pediu para eu retornar para participar de uma competição em que ela ia ser lutadora de judô. Eu fiquei de retornar no horário da luta e as implicações do dia não me deixaram chegar na hora exata. Mas eu acreditei que iria conseguir chegar, porque ela era do último ano e talvez não seria a primeira luta, e eu ia conseguir chegar a tempo. Eu corri, mas ela já tinha lutado, tinha ganho, eu não estava presente e ela ficou triste. Isso me deixou muito triste também. Então, é essa adaptação que a gente precisou fazer com a família, com os filhos.

A senhora fala desse dom, esse cuidado que a mulher tem em relação aos detalhes, à qualidade do equipamento, à saúde dos soldados. Por que a senhora acha que isso é importante?

É fundamental. A mulher adicionou esse comportamento, adicionou essa capacidade nas fileiras militares, faltava esse olhar feminino. Atualmente, as instituições militares estão crescendo, estão ganhando força justamente por conta da participação feminina, e a participação em todos os níveis dentro da instituição. Esse olhar feminino fazia falta e, agora, ele já está ganhando força e mostrando realmente a sua importância.

Existem questões delicadas não só na Marinha, no ambiente militar, que são o problema do assédio a mulheres e a questão do racismo. Como a Marinha trata disso?

A instituição repudia qualquer ato de descriminação, de racismo, qualquer coisa que se faça nessa esfera é considerada uma contravenção disciplinar, e o contraventor pode sofrer sanções. Passa primeiro por uma investigação, uma sindicância, para saber da ocorrência realmente daquele fato. Conforme o resultado da sindicância, o imputado pode sofrer sanção disciplinar militar e até mesmo, na esfera judicial, sofrer sanção criminal, porque é crime. Eu nunca observei nenhum fato desse na minha vida. Nunca testemunhei nem fui vítima de um ato desse. Se tivesse tido a oportunidade de presenciar ou de ser vítima de um ato desse, certamente teria a quem recorrer, e essa pessoa (o agressor) certamente seria punida.

Tanto em relação ao assédio quanto ao racismo?

Com certeza, mas nunca sofri nenhum tipo de descriminação na minha carreira.

Fale um pouco do seu trabalho como médica, no Ministério da Defesa, qual a sua prioridade?

Eu assumi o cargo de diretora do Departamento de Saúde e Assistência Social de uma secretaria que cuida das Três Forças. Na área da saúde, nós tentamos promover ações, programas para melhoria da qualidade de vida das pessoas, para melhorar as condições de saúde, oferecer situações de atendimento. Em relação ao serviço social, também dar condições ao militar, por exemplo, que vai ficar ausente da sua residência, vai participar de uma operação longa, que a pessoa precise de um apoio. O serviço social precisa estar pronto para dar o apoio à família do militar.

Qual foi o quadro que a senhora encontrou do ponto de vista da saúde dos militares? O que chamou sua atenção?

Essa evolução tem sido bem favorável, os militares, de modo geral, têm tido acesso a hospitais, ambulatórios, assistência médica e programas de assistência social. É sempre uma preocupação nossa ouvir a ponta, fazer pesquisas com a nossa própria tripulação para saber qual a dificuldade, qual momento eles precisam da nossa ajuda e qual ajuda eles precisam.

Estamos vindo de uma pandemia. Isso afetou as forças militares? Qual o seu olhar?

Essa preocupação é prioritária, o militar tem que ter rigidez física e mental para desempenhar a sua função. Isso tem sido uma preocupação. Durante a pandemia nós tivemos um aumento expressivo dos casos de psicose, depressão, ansiedade. Programas nesse sentido estão sendo desenvolvidos para acompanhar os militares não só previamente, antes do ingresso (na Força), como depois. Muitos casos aconteceram durante a pandemia. Na pandemia, eu tive a oportunidade de assumir o cargo de direção do Hospital Naval de Salvador, na Bahia, e tínhamos muitos militares com esse quadro de depressão e ansiedade. Recebíamos muitas notícias de pessoas que estavam morrendo e não sabíamos de que forma isso iria entrar no Brasil, quais necessidades, recursos, leitos, respiradores. Foi tudo muito rápido, difícil, atuamos numa guerra para poder desenvolver e dar as condições de atendimento que todos precisavam naquele momento. Muitas pessoas, realmente, acresceram de problemas psicossociais naquela época, e a gente continua trabalhando em cima dessas necessidades, desses programas, até hoje.

O que a senhora tem para falar às meninas que sonham em ingressar na Marinha?

Atualmente, a Marinha tem a possibilidade de ingresso em todos os níveis, desde adolescentes, no Colégio Naval, como quando saem no ensino médio. E outras que já têm o ensino técnico, profissionalizante completo, as recém formadas no ensino superior, todas têm espaço na carreira militar. É uma carreira atraente porque, independentemente do gênero, independentemente de todas as outras coisas, permite que você ingresse, desempenhe a sua função com eficiência, tenha a oportunidade de fazer um bom trabalho possa crescer profissionalmente dentro da instituição.

*Estagiária sob a supervisão de Vinicius Doria

fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/07/5108404-primeira-almirante-negra-da-marinha-mulher-tem-que-ser-protagonista.html

 


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