A mesma lógica que destrói Gaza, que ameaça Teerã, que ergue muros nos Estados Unidos, é a que seca rios, queima florestas, envenena os mares

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
 
 

Manuela d’Ávila (*)

 

Falar de guerra, qualquer guerra, é mais do que tomar um lado. É enxergar o que há por trás da fumaça, é perceber a engrenagem que transforma o mundo num campo de batalha permanente. A pergunta que nos move não é só “por que eles fazem guerra?”, mas também “por que nós resistimos?” E essas perguntas não são iguais. A guerra deles não é pela vida. É pela ordem que destrói: destrói corpos, destroça territórios, esfarela democracias, devasta o planeta.

Nossa luta nasce de outro lugar. Do lugar de quem insiste em existir apesar deles. De quem protege aquilo que eles tentam reduzir a cinzas, a lucro, a estatística. Compreender isso é romper com a ilusão de que os conflitos são isolados. Gaza não é só Gaza. O Irã não é apenas o Irã. A violência política nos Estados Unidos não é apenas “lá”. Está tudo conectado. É o mesmo sistema, um império multifacetado, com frentes de ataque distintas, mas que colidem no mesmo corpo: o nosso. E, felizmente, com múltiplas frentes de resistência.

A pergunta não é abstrata. É profundamente política. É urgente. É histórica. E, tristemente, atual. Por que os homens fazem guerra? Porque a lógica que estrutura este mundo só se sustenta destruindo. Destrói vidas, destrói lares, destrói florestas, destrói o tempo e a própria ideia de futuro.

O que vemos em Gaza não é apenas um genocídio, embora o seja. É a face mais cruel da colonialidade moderna: esse pacto imundo que moldou o mundo à força: ocupando, explorando, expulsando, matando. E transformando isso tudo em geopolítica, em “segurança nacional”, em “direito à defesa”. Os bombardeios que arrasam hospitais, escolas e campos de refugiados em Gaza não são desvios da norma. São a norma. A barbárie, neste mundo, é uma engrenagem legalizada.

E agora, Netanyahu quer mais. Quer incendiar não só Gaza, mas todo o Oriente Médio. Não se trata apenas de religião ou rivalidades étnicas. É sobre energia. Sobre petróleo. Sobre cercar a China. Sobre sufocar os Brics. Sobre manter o Sul global ajoelhado. Atacar o Irã é mandar um recado: “O mundo ainda é nosso. Quem ousar, será esmagado”.

E Trump? Do outro lado do oceano, ele não apenas observa, ele ensaia sua própria guerra. A violência crescente nos Estados Unidos não é uma coincidência. É a outra face do mesmo monstro. A deputada assassinada dentro de casa. A perseguição violenta a latinos, negros, mulheres, indígenas. É a guerra interna de um império em colapso. É o terror voltando-se contra si mesmo. É a lógica da guerra exportada ao mundo retornando como necropolítica doméstica.

Quando Trump ameaça entrar no conflito no Oriente Médio, ele não fala só por alinhamento com Israel. Fala por Wall Street, pelo complexo industrial-militar, pelo lucro que sangra.

Bombas lá, balas cá. Gaza em ruínas, favelas sitiadas. Oriente Médio em chamas, fronteiras americanas com campos de detenção. Tudo dentro do mesmo roteiro: o da destruição como modelo de gestão.

E esse roteiro tem nome. Tem cor. Tem gênero. Tem território. É o roteiro colonial, patriarcal, racista, capitalista. Um roteiro escrito com o sangue de gerações. E o patriarcado não é coadjuvante, é uma engrenagem central. A masculinidade imperial é funcional à dominação global. É irmão da racialização do mundo. Primo da mercantilização da vida. É cúmplice da devastação ambiental.

E se alguém ainda pensa que tudo isso está distante, olhe em volta. O Brasil também sangra. E como. O feminicídio nos transforma em território de extermínio. O genocídio da juventude negra é política pública permanente. No campo, indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais são caçados como se ainda estivéssemos nos tempos da capitania. Nossas cidades viraram arenas de sobrevivência. Tudo interligado. Tudo parte de um mesmo sistema que reduz a vida a descarte e a terra a mercadoria.

A mesma lógica que destrói Gaza, que ameaça Teerã, que ergue muros nos Estados Unidos, é a que seca rios, queima florestas, envenena os mares. A crise climática não é colateral: é a guerra em outra frente. É o ataque final da ganância contra os limites da Terra. É a tentativa desesperada de manter um modo de vida que já apodreceu, que já não serve, que nunca serviu para nós.

O que Netanyahu faz com mísseis, o que Trump faz com ódio, o que CEOs fazem com contratos e relatórios de lucro, são partes do mesmo monstro. O monstro da acumulação, que quer mais, sempre mais, mesmo que custe a vida. E quem paga essa conta? Os corpos racializados. Os corpos empobrecidos. Os corpos migrantes. Os corpos femininos. Os corpos periféricos. Os nossos corpos.

Gaza queima, sim. Mas queima também o Pantanal. A Amazônia. A Califórnia. Queimam as vielas brasileiras. Queimam as aldeias incendiadas. Queimam as casas onde mulheres são assassinadas por homens que aprenderam, desde sempre, que podem tudo, até matar.

E quando os Estados Unidos fervem, com milícias armadas e crimes políticos, não é apenas crise institucional. É o império se retraindo com violência. É o desespero de quem vê o chão escapar. E quando isso acontece, tentam levar o mundo junto.

A pergunta, então, se transforma. Não é só: “por que os homens fazem guerra?”. É: “por que um mundo organizado para o lucro só funciona através da guerra?” E a resposta fere. Porque nos obriga a reconhecer que dentro deste modelo não há saída. Que pedir paz aos senhores da guerra é pedir silêncio ao que nunca nos ouviu. Porque a paz deles é a nossa morte.

Enquanto Gaza arde, enquanto as ruas americanas tremem, enquanto as florestas viram cinzas, enquanto os mares sobem, enquanto corpos negros tombam e mulheres são assassinadas nos seus próprios lares, o que está em colapso não é um governo. É um sistema. É uma ideia inteira de civilização.

Mas, e aqui mora nossa esperança mais radical, não há exército, nem algoritmo, nem muro, nem bomba, que contenha a vida quando ela decide florescer. Não há poder que resista ao levante de quem já perdeu tudo, e mesmo assim escolhe lutar.

Sim, eles fazem guerra. Porque a vida, quando escapa do controle deles, os assusta mais do que qualquer bomba. Mas nós, mulheres, povos do Sul, corpos que insistem em viver, fazemos outra coisa: fazemos vida. Fazemos futuro. Fazemos revolução. E é exatamente por isso que eles nos temem tanto.

(*) Jornalista, ativista, ex-deputada, mestre e doutoranda em Políticas Públicas

 

fonte: https://sul21.com.br/opiniao/2025/06/por-que-os-homens-fazem-guerra-por-manuela-davila/


Artigos do (e sobre o) CFEMEA

Recomendamos a leitura

Tecelãs do Cuidado - Cfemea 2021

Cfemea Perfil Parlamentar

Logomarca NPNM

legalizar aborto

nosso voto2

...