O potencial transformador da solidariedade contrasta fortemente com a solidariedade estreita e fechada da política de direita contemporânea.
Pedro Silva
Os objetivos da esquerda são impossíveis de alcançar sem um conjunto de propósitos. Os socialistas se organizam em torno da justiça econômica por um motivo: ela é a base essencial para a construção de um senso de solidariedade amplo o suficiente para impulsionar mudanças significativas na realidade.

Resenha do livro Solidarity: The Past, Present, and Future of a World-Changing Idea [Solidariedade: o passado, o presente e o futuro de uma ideia que muda o mundo] de Leah Hunt-Hendrix e Astra Taylor (Pantheon, 2023).
Logo após o tsunami de 2004, almocei com amigos no campo de refugiados de Jabiliya, no norte da Faixa de Gaza. Naquela época, o campo era densamente povoado e extremamente pobre, frequentemente sujeito a surtos de agitação que às vezes se tornavam violentos. Depois do almoço, um megafone e um sino tocando lá fora interromperam nossa conversa. Meus ouvidos se aguçaram, alertas para qualquer perigo potencial, mas meu anfitrião rapidamente retomou sua postura relaxada. Perguntei sobre a comoção. “Ah, eles estão coletando doações para as vítimas do tsunami”, ele me disse. “Está acontecendo em todo lugar.”
Fiquei — ingenuamente — atônito. Ali estavam pessoas com quase nada se organizando em apoio a quem tinha ainda menos. Anos depois, soube de uma doação semelhante, arrecadada pela Nação Choctaw, logo após a Trilha das Lágrimas, para aqueles que enfrentavam a fome na Irlanda. O ato é celebrado na música do cantor e ativista irlandês Damien Dempsey. “Nação Choctaw”, ele canta, “estou em dívida com vocês. Nação Choctaw, eu só quero agradecer.”
A solidariedade como compromisso é um marco fundamental para as ativistas Leah Hunt-Hendrix e Astra Taylor em seu livro Solidarity: The Past, Present, and Future of a World-Changing Idea. Um dos primeiros exemplos dessa ideia está registrado em um antigo poema hindu que afirma que “nascer é uma dívida”. A primeira menção escrita à solidariedade aparece no código legal do Imperador Justiniano, que estabelece uma dívida mantida in solidum como uma dívida mantida coletivamente. Isso significa, por exemplo, que se um grupo de agricultores se unir e um deles não puder pagar o aluguel devido a uma doença ou a uma safra ruim, os outros cobrirão a dívida.
O código legal de Justiniano, do início do século V d.C., também influenciou fortemente a jurisprudência francesa. Louis Bourgeois desenvolveu a primeira teoria abrangente da solidariedade, argumentando que cada um de nós “nasce em débito com a humanidade”. Essa ideia de solidariedade como uma dívida social impõe aos ricos uma responsabilidade particular de lidar com a desigualdade e agir em prol do bem comum.
A ideia da nossa dívida para com os nossos semelhantes é o início de uma jornada abrangente pelos anais da solidariedade. As autoras são ambas veteranas do movimento Occupy, e as lições dessa experiência são sentidas em todos os momentos. Hunt-Hendrix e Taylor demonstram que causas amplas ganham força real por meio da participação ativa de um grande número de pessoas. Elas também destacam que, sem visão e estratégia, os movimentos têm mais probabilidade de estagnar do que de progredir. A construção de movimentos, enfatizam, é um processo coletivo fundamentado em uma sacralidade secular que reconhece o valor inerente de cada ser humano.
O que há de tão divertido na amizade, no amor e na comunidade?
Em termos filosóficos, o livro se baseia fortemente em Émile Durkheim, o primeiro sociólogo, que escreveu extensivamente sobre o conceito de solidariedade. Os escritos de Durkheim deixaram um legado intelectual significativo e influenciaram os sistemas jurídico e social francês, refletindo seu compromisso com a construção da coesão social.
Embora tenha escrito numa época em que o impacto da Revolução Industrial e a exploração do trabalho pelo capital ainda emergiam, seus argumentos contra a alienação social parecem premonitórios na sociedade de consumo atual, com seu ethos de individualismo desenfreado. “Nada”, argumentou Durkheim ao analisar a ascensão do Estado moderno, “permanece além da massa fluida de indivíduos”. A contrapossibilidade, decorrente da solidariedade, é o que Hunt-Hendrix e Taylor propõem como “amizade, amor e comunidade”.
“A construção de um movimento é um processo coletivo fundamentado em uma sacralidade secular que reconhece o valor inerente de cada ser humano.”
Embora enraizadas em uma tradição socialista democrática, o chamado delas ecoa o anarquismo comunitário de John P. Clark, que defende uma “comunidade impossível […] na intersecção entre universalidade e particularidade […] desenvolvendo-se incessantemente”. É nessa evolução perpétua que encontramos significado em nossas relações uns com os outros e com o meio ambiente. Para Hunt-Hendrix e Taylor, atos de solidariedade devem ser sustentados por uma visão solidária para gerar a possibilidade de mudanças significativas, um processo que elas chamam de “solidariedade transformadora”.
O potencial transformador da solidariedade contrasta fortemente com a solidariedade estreita e fechada da política de direita contemporânea. No entanto, para aproveitar essas possibilidades, indivíduos e coletivos, como os sindicatos, precisam superar seus próprios interesses mesquinhos e se engajar em campanhas com impacto universal. Durkheim argumentou que a solidariedade “mecânica” operava em comunidades pequenas e homogêneas, enquanto a solidariedade “orgânica”, formada em sociedades maiores e mais complexas, tornou-se alcançável quando as diferenças econômicas e culturais foram harmonizadas para promover a coesão. Hunt-Hendrix e Taylor citam Audre Lorde, que argumentou que “devemos permitir uns aos outros nossas diferenças ao mesmo tempo em que reconhecemos nossas semelhanças”.
Hunt-Hendrix e Taylor reconhecem o poder das políticas identitárias no fomento de campanhas segmentadas. No entanto, para passar da ação coletiva para a política de massa, as autoras defendem um princípio unificador centrado na justiça econômica. Esse foco na experiência quase universal da exploração econômica permite que os movimentos se construam “aproximar em vez de expor publicamente”, cultivando um senso compartilhado de “nós”.
Para construir esse “nós” inclusivo, Hunt-Hendrix e Taylor citam o modelo de Saul Alinsky de “sem amigos permanentes, sem inimigos permanentes”. Elas oferecem um estudo de caso hipotético envolvendo uma congregação católica colaborando com um grupo feminista em uma campanha por salários dignos, apesar de estarem em lados opostos no debate sobre o aborto. O livro apresenta inúmeros estudos de caso sobre como essas alianças transformadoras podem operar efetivamente na prática.
Um exemplo notável ocorreu no inverno polonês de 1970, quando trabalhadores em cidades ao longo da costa do Báltico começaram a se organizar para demandar direitos. A mando da União Soviética, o exército polonês interveio para reprimir as greves dos trabalhadores, resultando nos massacres da “Quinta-feira Negra”. Horrorizados pela brutalidade, grupos de intelectuais, sindicalistas, artistas e líderes da Igreja Católica começaram a se organizar. Em última análise, essa organização lançou as bases para o movimento sindical independente da Polônia, Solidarność (ou Solidariedade). O Solidariedade originou-se parcialmente na repressão de 1970, mas levou décadas de determinação e articulação desorganizada para finalmente derrubar a República Popular da Polônia. O sucesso do movimento não aconteceu da noite para o dia, e havia muitos interesses complexos a serem explorados — lições que os militantes contemporâneos devem conhecer.
Caridade não é solidariedade
No Parque Zuccotti, Hunt-Hendrix conheceu um grupo de amigos com ideias semelhantes, que haviam herdado uma riqueza considerável, cada um buscando uma maneira de distribuir seus recursos para obter o máximo impacto em apoio a movimentos sociais. Hunt-Hendrix é francamente honesta sobre sua história familiar e a forma como sua riqueza foi conquistada por seus antepassados (spoiler: nem sempre com os mais altos padrões de integridade ética). Seu exame de consciência leva a uma crítica contundente às maneiras como os ricos usam a filantropia — alavancando a aparência de solidariedade e altruísmo — para impulsionar seus interesses setoriais e financeiros.
Um alvo dessa crítica é a Fundação Gates por conta de seus esforços para restringir os direitos de propriedade intelectual às vacinas contra a COVID-19. Outro exemplo flagrante de poder filantrópico é um mecanismo chamado Fundo de Doadores Orientados (DAF), que permite o armazenamento de ativos de capital longe de impostos em fundos “de caridade”. Os DAFs exigem que os doadores forneçam transferências anuais mínimas para causas de caridade, mas frequentemente esses fundos simplesmente transferem dinheiro de um DAF para outro. Por exemplo, a Fidelity Charitable, um DAF, arrecadou US$ 94 milhões em taxas por seus serviços em 2021, mas entre 2016 e 2021, enviou US$ 1,5 bilhão para outros DAFs, permitindo que os doadores recebessem deduções de imposto de renda para cada “doação”. Como contrapeso ao que ela percebe como desfaçatez da filantropia, Hunt-Hendrix ajudou a estabelecer a Solidaire, uma organização baseada em mobilizações comprometidas em fornecer apoio financeiro a causas radicais.
“Os ricos usam a filantropia — alavancando a aparência de solidariedade e altruísmo — para impulsionar seus interesses setoriais e financeiros.”
Após o Occupy, Taylor organizou um mutirão de quitação de dívidas por financiamento coletivo, com foco em apoiar estudantes do Corinthian College que haviam sido enganados e contraído empréstimos vultosos. O objetivo principal era conscientizar o público sobre o impacto devastador da dívida no desenvolvimento humano e defender soluções sistêmicas. Em 2015, o Debt Collective [Coletivo da Dívida] organizou uma greve estudantil.
Apesar dos inúmeros contratempos, o coletivo construiu lentamente um movimento que culminou no anúncio histórico de Kamala Harris de que o governo Biden perdoaria US$ 6 bilhões em dívidas de meio milhão de pessoas. Embora o resultado tenha ficado aquém da promessa inicial e tenha sido falho, proporcionou um alívio enorme para um grande número de pessoas. A vitória permitiu que os ativistas se concentrassem no financiamento do ensino superior como um direito, e não como uma transação de mercado.
Solidariedade e o “sagrado secular”
Olivro se baseia firmemente em uma perspectiva secular. No entanto, o capítulo final é dedicado à exploração do sagrado dentro de uma estrutura secular, denominada “sagrado secular”. As autoras estão claramente familiarizadas com as tradições religiosas, que fornecem grande parte da base ética global para a solidariedade, mas fazem questão de evitar qualquer coisa que soe como teologia. Há um espaço significativo para futuras abordagens da solidariedade a partir de diferentes tradições como meio de ampliar os movimentos sociais.
A defesa da “fraternidade para todos” pelo Papa Francisco baseia-se em anos de doutrina social católica, na qual a solidariedade é um princípio fundamental. Da mesma forma, o apelo do Alcorão por “uma comunidade entre vocês que clame pelo que é bom, incentive o que é certo e proíba o que é errado” é um apelo tão poderoso quanto o do Rabino Arik Ascherman, que arrisca seu corpo em defesa dos produtores de azeitonas palestinos, observando que “não há nada como sermos espancados juntos” para forjar laços de solidariedade.
A narrativa do livro conclui com Durkheim, cuja vida foi tragicamente interrompida por um coração partido após a morte de seu filho nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Em seus escritos posteriores, Durkheim defendeu um foco no sagrado, enraizado no valor intrínseco de cada ser humano. Hunt-Hendrix e Taylor argumentam que o sagrado secular é cultivado pela ação coletiva. No ato de se unirem, as pessoas imbuem de significado a luta contínua por justiça econômica e ambiental.
Com capítulos focados nos direitos das pessoas com deficiência, na domesticação do leviatã pelo Estado de bem-estar social e na análise do movimento antiglobalização e dos movimentos ecológicos liderados por indígenas, o livro é uma obra-prima da história dos movimentos sociais e de suas lições de organização. Sua análise da possibilidade e do compromisso da solidariedade é um tônico vital para os dias em que o mundo parece sombrio e que as coisas parecem que nunca vão melhorar.
Sobre o autor
Eóin Murray
é publicado na Open Democracy e na Electronic Intifada. Ele é coeditor de Defending Hope, um livro de ensaios de defensores dos direitos humanos palestinos e israelenses.
fonte: https://jacobin.com.br/2025/06/sem-solidariedade-a-esquerda-nao-tem-nada/