"O direito ao uso da cidade é negado às pessoas em situação de rua, principalmente quando são expostas pelo poder público a ações de retiradas de pertences, ocasionando a perda de documentos, de medicamentos e de outros recursos, através das ações de equipes de 'limpeza e zeladoria' das prefeituras".
O artigo é de Veridiana Farias Machado, publicado por CartaCapital e enviado pela Assessoria de Comunicação do BrCidades para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Veridiana Farias Machado é Bióloga, Educadora Social, Graduanda em Psicologia, trabalhadora da Área Técnica de Saúde da População em Situação de Rua na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre – RS e colaboradora da Rede BrCidades.
Eis o artigo.
A Organização Mundial da Saúde definiu o conceito de saúde, no ano de 1946 [1], como um estado de bem-estar físico, mental e social, não apenas como ausência de doença ou enfermidade (OMS, 1946). Neste sentido, a condição de ter saúde faz relação direta com qualidade de vida. Desde então, o Ministério da Saúde (MS) brasileiro tomou este conceito como base e passou a considerar as iniquidades sociais como determinantes na saúde da população.
Iniquidades são carências socialmente determinadas pela privação às condições básicas para viver. Para se ter uma vida considerada saudável, o MS considera um conjunto de bons hábitos combinados [2]: boa alimentação, acesso à água potável e de qualidade, exercícios físicos regulares, horas de sono satisfatórias, bom convívio social e a autoestima. Ligado a isso, está o acesso a bens materiais e às políticas públicas: moradia digna, transporte, trabalho, renda, cultura, lazer, esgoto tratado, saúde, previdência social, educação e outros. Ao considerarmos tudo isso, fica a pergunta: como é possível ter saúde no Brasil quando se vive em situação de rua?
Segundo o Decreto 7053/2009 que institui a Política Nacional para esse público [3], a população em Situação de Rua é definida como “o grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular, que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia”.
As pesquisas censitárias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não incluem esse público, por não terem metodologia para isso. De acordo com o levantamento realizado pelo Observatório de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua [4], (OBPopRua/POLOS-UFMG, 2024), o número de pessoas registradas no Cadastro Único do Ministério da Cidadania e Combate à Fome somam, em 2024, 300.868 pessoas vivendo nas ruas do Brasil. O levantamento também identificou que 69% dessas pessoas são negras. Uma observação a se fazer é que nem todas as pessoas vivendo nas ruas estão cadastradas, o que pode sugerir uma subnotificação.
A maior parte das pesquisas nacionais e regionais sobre o perfil das pessoas em situação de rua no Brasil aponta a predominância da raça/cor preta entre elas. Pouco se fala nessa questão, mas sabemos que o Brasil foi um dos últimos países da América Latina a abolir a escravidão. A elite escravista da época, antes de assinar a Lei para libertar os escravos, criou duas outras leis. A primeira proibia os mesmos de serem proprietários de terras, a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, Lei de Terras; enquanto a Lei 10.639/03 impedia o acesso à educação formal. Dessa forma, além de olhar para a situação de rua como um fator de precarização da vida, produzida pela desigualdade social entre classes, não há como deixar de associá-la com o racismo estrutural histórico no Brasil. A população negra e a população em situação de rua seguem em grande desvantagem para os indicadores, não só de saúde, em nosso país.
Esta herança faz com que as pessoas em situação de rua tenham alta prevalência de agravos em saúde, altas taxas de óbitos por doenças, as quais já não colocam mais em risco a população que vive com melhores condições de vida. Segundo os dados do Ministério da Saúde[5], a população em situação de rua possui 54 vezes mais riscos de se contaminar por tuberculose. Geralmente, essa doença está associada a outros agravos como HIV/AIDS, entre outros, o que provoca altos índices de mortalidade neste público. Os serviços de saúde estão organizados para uma dinâmica da população domiciliada e ainda apresentam muitas dificuldades para o atendimento de quem vive nas ruas. Este público costuma sofrer diversos preconceitos e violências, que lhes causam baixa autoestima e dificuldades para o autocuidado. O uso abusivo de álcool e outras drogas pioram essa realidade. Condição que causa aumento do preconceito e entraves para serem acolhidas nos serviços da rede de proteção social e de saúde.
Cotidianamente, o direito ao uso da cidade é negado às pessoas em situação de rua, principalmente quando são expostas pelo poder público a ações de retiradas de pertences, ocasionando a perda de documentos, de medicamentos e de outros recursos, através das ações de equipes de “limpeza e zeladoria” das prefeituras.
É preciso que o Brasil conheça, reconheça e inclua essa parcela da população nos programas de distribuição de renda e na oferta de bens e serviços. Hoje, não temos mais leis que proíbam alguém de ser proprietário, mas enquanto aumenta o número de pessoas em situação de rua, aumenta também o número de prédios públicos abandonados e ociosos, por anos a fio, na maioria das cidades do Brasil. As barreiras continuam a apontar para as questões raciais e de diferenças de classes sociais para a manutenção e o aumento da situação de rua em nosso país. Assim, não há saúde que seja possível!
Fontes
[1] Link disponível clicando aqui.
[2] Link disponível clicando aqui.
[3] Link disponível clicando aqui.
[4] Link disponível clicando aqui.
[5] Link disponível clicando aqui.
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- "A desigualdade é um problema de saúde pública". Entrevista com Richard Wilkinson
- As urgências da saúde da população negra
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