Em Carta Aberta, Fenatrad manifesta preocupação com propostas "inovadoras" que, de fato, atacam as trabalhadoras domésticas. "Foi preciso lutar quase um século para ter uma Emenda Constitucional que reconhecesse nossa categoria profissional e terminasse com nossa exclusão dos direitos trabalhistas."
CARTA ABERTA DA FENATRAD
Pedimos apoio para respeitar e fortalecer os direitos das trabalhadoras domésticas!
Ao governo federal, aos deputados (as), parceiros (as), apoiadores (as) e aliados (as),
Expressamos via esta carta aberta nossa preocupação diante do cenário atual de enfraquecimento dos nossos direitos, tão duramente conquistados. Foi preciso lutar quase um século para ter uma Emenda Constitucional que reconhecesse nossa categoria profissional e terminasse com nossa exclusão dos direitos trabalhistas. Ao completar quase 10 anos da aprovação da lei complementar 150/2015, que regulamenta essa mudança constitucional, notamos que ainda falta muito para nossos direitos sejam equiparados e efetivados.
Somos uma categoria de cerca de 6 milhões de trabalhadoras, segundo dados oficiais do DIEESE e IBGE, composta na sua grande maioria por mulheres negras, de baixa renda e de baixa escolaridade.1 Nossa luta é uma luta não só pela melhoria das condições de vida e de trabalho da categoria, mas também por justiça social, igualdade de gênero e de raça. Somos uma das principais categorias de mulheres trabalhadoras, e o trabalho doméstico continua sendo a maior fonte de emprego para as mulheres negras. Durante a pandemia, fomos consideradas “essenciais”, apesar dos altos riscos aos quais isso nos expôs. Vale relembrar que a primeira vítima de Covid-19 no Rio Janeiro, foi uma trabalhadora doméstica contaminada pela sua patroa, assim como o caso trágico da morte do menino Miguel em Recife que ilustra o descaso com nossas vidas. Notamos ainda que, desde a pandemia, o número de resgate de trabalhadoras domésticas em situação análoga a escravidão vem aumentando, totalizando 119 resgates entre 2017 e 2023.2
Fomos as primeiras a lançar a campanha “Cuida de quem te cuida!”, pedindo que nossos direitos sejam efetivados e nossas vidas protegidas, e colocando a pauta do cuidado como direito humano no centro das discussões. Muitos atores em nível nacional e internacional estão atualmente debatendo a economia do cuidado. No Brasil, a FENATRAD participou durante um ano do Grupo de Trabalho Interministerial sobre Cuidado, e da Câmara Técnica sobre Trabalho Doméstico, trazendo as demandas da categoria. Um Projeto de Lei foi enviado em julho de 2024 ao Congresso Nacional em vista de construir uma Política Nacional do Cuidado, e constatamos com certa surpresa nossa ausência dentro desse plano. Lembramos que somos a primeira categoria de trabalhadoras dentro da economia do cuidado, que geramos lucro e contribuímos para o desenvolvimento econômico do país, e que nós, também queremos ser cuidadas. Isso passa pela adequação da LCP 150/2015 à Convenção 189 da OIT, corrigindo as falhas na atual legislação e principalmente a discriminação contra as trabalhadoras por diária. Pedimos a equiparação e efetivação plena dos nossos direitos, nada mais, nada menos.
Temos hoje três preocupações principais: o aumento de trabalhadoras domésticas registradas como MEI (Microempreendedor Individual), o aumento de trabalhadoras domésticas exercendo na modalidade de diarista, e nossa invizibilização nas discussões sobre a economia do cuidado que abre brechas para uma maior fragmentação da nossa categoria.
1 – Trabalhadoras domésticas não são empreendedoras
Segundo dados disponíveis no portal do empreendedor, em agosto de 2024, já havia quase meio milhão de trabalhadoras domésticas cadastradas como MEI (297.426 atuando como diaristas, e 185.875 na função de cuidadoras de idosos).3 Estamos alertando sobre este problema há quase 10 anos, e pedimos que medidas sejam tomadas de forma urgente para reverter a tendência. A inscrição no MEI tira a trabalhadora doméstica do amparo da lei 150/2015; ela não tem direito ao FGTS, seguro desemprego, décimo-terceiro e férias remuneradas. Para se beneficiar dos direitos garantidos pela lei, ela precisa ser empregada, e não microempresa. Analisamos essa tendência como uma forma de desviar a lei, tirando a responsabilidade dos encargos sociais dos empregadores.
Ademais, uma trabalhadora doméstica na modalidade de diarista ou na função de cuidadora de idoso não pode ser considerada como uma empreendedora, ela tem um vínculo de subordinação direta com a família que a contrata, muitas vezes não pode definir seus horários nem seu salário, e exerce seu trabalho de forma contínua, caracterizando assim uma relação de emprego (LC 150/2015, artigo 1). Notamos também que o crescimento dos MEIs se amplificou com o aumento das agências e plataformas de trabalho, que muitas vezes obrigam as trabalhadoras a se cadastrarem como MEI. Pedimos que esses atores sejam devidamente fiscalizados e regulados, de forma a contratar as trabalhadoras domésticas conforme a lei 150/2015, e respeitando nossos direitos. Se nosso trabalho é essencial, nossos direitos também!
2 – Trabalhadoras domésticas por diária devem ter seus direitos equiparados ao resto da categoria
A lei 150/2015 permitiu avanços incontestáveis para as trabalhadoras domésticas, como jornada de trabalho, horas extras e adicional noturno, FGTS e outros direitos previdenciários. No entanto, ela contradiz a Convenção 189 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2018 e promulgada em 2024, no que diz respeito à situação das trabalhadoras domésticas por diária. A norma internacional estipula que os direitos nela garantidos devem se aplicar a todas trabalhadoras domésticas (C 189, artigo 1), independente da função exercida e do número de dias trabalhados. Nesse sentido, a lei brasileira discrimina a trabalhadora por diária, fazendo dela uma “autônoma” e jogando nela a responsabilidade das contribuições previdenciárias. Para essas trabalhadoras, a proteção da lei 150/2015 não se aplica.
Não à toa, o número de trabalhadoras domésticas por diária vem crescendo desde 2015, atingindo hoje quase metade da categoria (45%). Isso significa de forma concreta que essas trabalhadoras não têm direito a férias, FGTS ou seguro desemprego. A falta de proteção social foi um verdadeiro desastre durante a pandemia, jogando milhões de trabalhadoras na pobreza extrema. A tragédia se repete com as enchentes no Sul e seguirá se repetindo enquanto trabalhadoras domésticas por diária não tiverem direito à carteira assinada e nossa legislação não for aplicada.
Exigimos medidas imediatas para que a Convenção 189 seja implementada, e com isso, que as trabalhadoras por diária sejam incluídas na lei 150/2015 como qualquer outra trabalhadora doméstica. Não se trata de uma categoria aparte, segundo a Convenção 189, não existe diferença por número de dias trabalhados.
3 – Cuidadora em âmbito domiciliar é trabalhadora doméstica
Por fim, expressamos nossa preocupação com respeito a ausência da categoria trabalhadoras domésticas remuneradas no PL dos cuidados, que se refere de forma indefinida às “trabalhadoras remuneradas do cuidado” e “trabalhadoras não remuneradas do cuidado”. Entendemos que estaríamos incluídas nessa primeira categoria, porém, se não for explicitado, corre-se o risco de nós invisibilizar novamente. Precisamos de orientações claras na política nacional para que nossos direitos sejam respeitados.
A criação dessa nova categoria de “trabalhadoras remuneradas do cuidado” carrega também o potencial de dividir a categoria das trabalhadoras domésticas, retirando o cuidado de nossas funções e permitindo que qualquer profissional da área do cuidado se reconheça como categoria própria. Há anos alguns grupos e associações estão se mobilizando para uma regulamentação separada das cuidadoras de idosos. Lembramos uma vez mais que se a cuidadora de pessoas for contrata por uma família, ela é de fato trabalhadora doméstica, e já tem uma lei que a ampara e a protege. O trabalho doméstico, tal como definido na lei brasileira (LCP 150/2015) e na Convenção 189 se refere a qualquer tarefa efetuada na casa de outra pessoa em troca de uma remuneração, incluindo: cozinha, limpeza, cuidado com pessoas (idosas ou crianças), jardinagem, etc. Portanto, reafirmamos que as cuidadoras domiciliares pertencem a categoria das trabalhadoras domésticas, e qualquer tentativa de legislar em sentido contrário enfraquece nossos direitos e a nossa luta.
As trabalhadoras domésticas na função de cuidadora devem ter seus direitos respeitados, a exemplo do município de São Paulo onde existe uma convenção coletiva com piso salarial por função e um adicional em caso de acúmulo. Mas tirar as cuidadoras domiciliares da proteção da lei 150 e da representação sindical, com a ilusão de criar uma regulamentação melhor, não serve suas demandas por direitos e reconhecimento. Ao contrário, precisamos de políticas de valorização do trabalho doméstico, em todas suas funções, e de medidas que garantem um salário decente à todas nós.
Assim, pedimos executivo, o legislativo, o judiciário, as confederações e centrais sindicais brasileiras e internacionais, aos nossos parceiros e movimentos aliados apoio para:
- Implementar a Convenção 189, revisando e adequando a lei 150/2015 à norma internacional. Com isso, poderíamos, por fim, terminar com a discriminação contra a trabalhadora por diária e lhe garantir o direito a carteira assinada, assim como garantir a igualdade plena de direitos entre as trabalhadoras domésticas e as demais categorias;
- Controlar e fiscalizar os empregadores, as agências e as plataformas, os obrigando a atuar de acordo com a lei;
- Reforçar as medidas de combate ao trabalho doméstico análogo a escravidão, continuando as ações de resgaste e melhorando o acompanhamento das trabalhadoras resgatadas;
- Eliminar qualquer opção de cadastro no MEI para as trabalhadoras domésticas, sejam elas diaristas, mensalistas, cuidadoras ou exercendo em outras funções;
- Visibilizar a presença e importância das trabalhadoras domésticas na economia do cuidado, e garantir os direitos de todas as trabalhadoras que exercem nos domicílios de outras pessoas;
- Informar as trabalhadoras domésticas na função de cuidadora sobre seus direitos e evitar políticas ou medidas que dividem a categoria e fragilizam nossos direitos.
Nossas ações e parcerias se fundamentam nesses princípios. Pedimos apoio pela equiparação e efetivação dos nossos direitos, para um trabalho doméstico digno e decente.
Luiza Batista Pereira
Coordenadora Geral
Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD
1 Ver DIEESE (2023): https://www.dieese.org.br/infografico/2023/trabalhoDomestico2023.html
2 Ver nota do governo publicada em maio 2024: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Maio/resgates-em-acoes-de-fiscalizacao-do-mte-escancaram-trabalho-escravo-domestico-no-pais-1
3 Ver portal do MEI: http://www22.receita.fazenda.gov.br/inscricaomei/private/pages/relatorios/opcoesRelatorio.jsf
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