Pesquisa indica que radicalização política e centralidade do matrimônio compõe cenário que vulnerabiliza mulheres e meninas de forma crescente
Discursos discriminatórios na esfera pública podem inspirar ações individuais no contexto familiar/ Imagem: Freepik
O relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” chega à quinta edição trazendo dados inéditos sobre as distintas formas de violência contra meninas e mulheres brasileiras. O estudo, conduzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto Datafolha, mostra que a violência de gênero nos últimos doze meses atingiu o maior índice desde o início da série histórica, em 2016. Apesar disso, 47,4% das mulheres vítimas de violência grave no ano passado afirmam não terem feito nada diante da agressão sofrida. Mas 6% procuraram a igreja.
O diagnóstico, feito com base em autodeclaração, levanta a discussão sobre o papel dos espaços de fé na prevenção da violência e no acolhimento às mulheres. Ainda segundo a pesquisa, uma em cada quatro brasileiras sofreu agressão física por parte de parceiro atual ou ex-parceiro. Dentre as entrevistadas, 42,7% das mulheres que se identificaram como evangélicas sofreram violência ao longo da vida, contra 35% das que se identificaram como católicas.
Para Isabella Matosinhos, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mestre em Sociologia e graduada em Direito, a dinâmica marital proposta pelos casamentos cristãos pode ser uma oportunidade ou uma barreira para quebrar ciclos de violência doméstica. “No Brasil, é comum encontrar centros de acolhimento, inclusive com assessoria jurídica, em estabelecimentos religiosos. Isso pode acontecer tanto no catolicismo quanto nas religiões evangélicas. Mas formulamos hipóteses no sentido de que as religiões são muito firmes na questão do matrimônio, bem como sobre o papel da mulher no casamento.”
De acordo com o Boletim Especial do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), mulheres chefiam 50,8% dos lares brasileiros. Ainda assim, o discurso religioso inspira papéis de gênero definidos, em que as mulheres cumpririam funções de cuidado e os homens seriam vistos como provedores e última autoridade do lar. Nesse arranjo, a figura feminina estaria mais frequentemente submetida ao exercício da liderança masculina, o que explicaria, por exemplo, as queixas sobre estupro conjugal.
Os pesquisadores também sugerem que a proximidade das fiéis com líderes religiosos, no caso das mulheres evangélicas, pode ser um dos fatores que representam uma oportunidade ou uma barreira ao enfrentamento da violência. “Enquanto na igreja católica existe uma hierarquia, o relacionamento é mais distante, entre as evangélicas o pastor é mais acessível, seja para pedir conselho, conversar ou desabafar.” Para a profissional, essa relação poderia ajudar a quebrar o ciclo de agressões. Mas, na prática, a mediação funciona muitas vezes como barreira para o auxílio.
“A mulher é desestimulada a fazer a denúncia, a sair do relacionamento, justamente por causa da sacralidade do matrimônio. Ela é aconselhada a outras coisas, como a resignação e a oração para que o agressor mude seu comportamento. São conselhos que apenas fazem com que a mulher siga na situação de violência.” Por uma questão de metodologia e de quantidade da amostragem, não foram consideradas outras vertentes religiosas nesta edição do relatório.
Embora o Brasil preserve o Estado laico, sua população é majoritariamente cristã, sendo a religião evangélica a que mais cresce. O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que os evangélicos representam um terço da população (31%), com crescimento significativo em comparação ao censo de 2010, onde eram cerca de 22%. Projeções indicam que os protestantes podem ultrapassar os católicos a partir de 2032.
Não à toa, as campanhas políticas têm buscado adesão de líderes religiosos, com discursos públicos que acenam diretamente à população evangélica. O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública menciona a eleição de Bolsonaro como um dos fatores que também podem explicar, parcialmente, a alta da violência. Para os pesquisadores, políticos que normalizam discursos brutais ou que naturalizam condutas discriminatórias contribuem para o “caldo cultural que autoriza agressores” e licencia o comportamento autoritário e violento dos atores sociais, o que agrava os riscos para meninas e mulheres no espaço público e se reflete também na esfera intrafamiliar.
“O contexto de radicalização política, de maneira geral, influencia na violência, porque nessas gestões temos um desmonte de políticas de enfrentamento à violência de gênero. E isso repercute nas ações individuais. Outra hipótese é o efeito rebote: a cada direito conquistado, temos uma reação adversa de parte da sociedade que tenta barrar a consolidação desse direito. A gente viveu, na última década, uma explosão de conquistas feministas que se materializaram em forma de lei. Mas esse ganho de direito legislativo é contestado pelo discurso de formadores de opinião ou de tomadores de decisão que minimizam a pauta”, conclui Matosinhos.
Camila Caringe é jornalista e se dedica a cobrir assuntos de sustentabilidade ambiental, social e de governança no Brasil e no mundo. Acompanhe o canal ESG Insights no Instagram, //www.tiktok.com/@camila.caringe?lang=en" style="margin: 0px; padding: 0px; border: 0px; text-decoration: none; color: rgb(0, 105, 50); transition: color 0.3s ease-in-out;">Tik Tok e também no //www.youtube.com/@esginsights-cc" style="margin: 0px; padding: 0px; border: 0px; text-decoration: none; color: rgb(0, 105, 50); transition: color 0.3s ease-in-out;">YouTube.
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