neias londrina

 

É um tipo de violência letal (assassinato) que afeta as mulheres por razões de gênero. Dizer que pessoas morrem por razões de gênero significa que a condição de ser mulher é o fator de risco à integridade física e à vida.

Isso ocorre porque vivemos numa sociedade que cria e naturaliza estruturas de desigualdades baseadas nas diferenças sexuais entre homens e mulheres (desigualdades de gênero), gerando relações de poder que coloca as mulheres em posição subalternidade e inferioridade.

É importante ressaltar que a distribuição desigual de poder é construída socialmente, portanto, está presente na cultura, nos discursos, nos símbolos e representações sociais, nas instituições, nas relações familiares e afetivas, nas relações de trabalho, ou seja, em todos os espaços e relações nas quais a opressão e a exploração estão baseadas no gênero.

Esses riscos ficam ainda mais evidentes e complexos se lhe forem agregados outros marcadores sociais de desigualdade, tais como raça/etnia, idade, classe social, sexualidades heterodiscordantes, deficiências e localidade.

Assim, feminicídios não são eventos isolados ou excepcionais e nem são neutros em relação à identidade das vítimas. Além disso, muitas vezes ocorrem em conexão com outras formas de violência resultante de uma continuidade de atos violentos que afeta a vida das mulheres de forma cotidiana, sendo o assassinato seu desfecho mais extremo.

A Convenção de Belém do Pará (Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), adotada em 9 de junho de 1994 pela Organização dos Estados Americanos (OEA), define a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada” (Artigo 1º).

A Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher (Resolução 48/104, A/RES/48/104), aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 20 de dezembro de 1993, também possui uma definição semelhante em seu artigo 1º.

O Brasil é signatário desses instrumentos e acordos internacionais que reconhecem direitos das mulheres com status de norma constitucional e tem o compromisso de criar mecanismos jurídicos e políticas públicas que promovam esses direitos.

É importante entender que o feminicídio inclui-se num contexto estrutural que resulta num modo letal de governança dos corpos das mulheres. Para a antropóloga Débora Diniz, a estrutura de poder denomina-se patriarcado e o regime político de governo da vida é definido pelo gênero. Os regimes de gênero estão presentes nas relações subjetivas, na determinação de papeis e funções, nas instituições e nas leis. Por isso, tipificar com nome próprio o assassinato de mulheres por razões de gênero como feminicídio é importante para que a sociedade reconheça e qualifique este fenômeno, sem tentar naturalizá-lo ou neutralizá-lo em tipos penais genéricos ou mesmo justificá-los como um “direito” do agressor ofendido em sua honra.

feminicidio Figura 1

Feminicídio é crime?

 

Desde 2015, o Código Penal Brasileiro classifica o feminicídio como uma das modalidades do homicídio e o define como aquele “cometido contra a mulher por razões dosexofeminino”. Isso ocorreu após a promulgação da Lei n˚ 13.104, de 09 de março de 2015, que incluiu o feminicídio como uma qualificadora do tipo genérico homicídio (Código Penal, art. 121, § 2º, VI e § 2ºA) e também especificou suas agravantes (Código Penal, art. 121, § 7º).

Na estrutura da legislação penal, é uma das formas graves de homicídio (homicídio qualificado), e por isso é um crime hediondo (Lei nº 8.072/1990, art. 1º, I), tornando o cumprimento da pena sempre em regime fechado e o condenado só poderá ter livramento condicional após cumprir 2/3 do total da pena.

Homicídio cometido contra a mulherpor razões do seu sexo:

Característica que gera a qualificadora do tipo penal. A lei penal considera expressamente que essas “razões” incluem as mortes resultantes de violência doméstica e familiar contra as mulheres (Lei nº 11.340/2006) ou as mortes por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Qualquer violência ou agressão que resulte na morte de mulheres é feminicídio?

 

Não é qualquer violência letal contra uma mulher que se classificará como feminicídio. Por exemplo, se uma mulher morre num acidente de trânsito criminoso ou num assalto, esses atos não configuram feminicídio, porque falta a característica central que define a condição feminina como um fator de precarização da existência.

Somente mulheres podem ser vítimas de feminicídio?

 

Sim, mas utiliza-se o termo mulher em sentido amplo, incluindo qualquer pessoa que assim se identifique ou que possui um corpo feminizado. Isso inclui as mulheres cisgêneratransexual ou transgêneras como as travestis ou qualquer outra expressão de gênero classificada como feminina.

Portanto, quando a lei define que feminicídio é o homicídio “cometido contra a mulher por razões do sexo feminino”, não devemos ter uma concepção reducionista, considerando somente o sexo biológico ou de nascimento. O sexo social ou identidade de gênero também deve ser levado em conta, já que muitas situações de menosprezo à condição feminina envolvem discriminações cruéis às orientações sexuais, identidades ou expressões de gênero femininas heterodiscordantes.

O quadro abaixo dá um panorama geral das vítimas nos contextos em que a violência letal é decorrente das desigualdades de gênero, segundo a legislação penal.

feminicidio figura2

 

Somente homens são autores ou agentes do crime feminicídio?

 

Não. Qualquer pessoa com mais de 18 anos pode ser autora ou sujeito ativo do crime de feminicídio desde que pratique a violência letal com as características feminicidas. O ato pode ser individual ou coletivo (concurso de pessoas). A omissão de quem sabia do risco e tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância também é punível. Por exemplo, uma mãe pode responder por feminicídio por não impedir ou denunciar as agressões sofridas pela filha adolescente perpetrada pelos irmãos adultos quando a garota se assumiu lésbica, resultando na morte da jovem (feminicídio familiar lesbofóbico).

Qual é a pena para o crime de feminicídio?

 

Na legislação penal brasileira, o feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, cujo ato é matar alguém intencionalmente. As qualificadoras envolvem diferentes situações ligadas aos meios utilizados, aos motivos e aos modos como o crime de homicídio é praticado e que geram maior reprovabilidade à conduta do agente ou essas situações deflagram maiores chances de ocorrer o crime. Portanto, a violência praticada por razões de gênero feminino é uma qualificadora.

A pena mínima para o homicídio qualificado é de 12 anos e a máxima é de 30 anos. No feminicídio a pena pode ser aumentada em até 1/3 se ocorrerem motivos agravantes previstos no art. 121, § 7º do Código Penal. Veja as agravantes no quadro abaixo:

feminicidio Figura2a

Quando o ato não resulta em morte, ainda é possível responder pelo crime de feminicídio?

 

Sim. Nesses casos há a figura do feminicídio tentado, que ocorre quando iniciada a prática criminosa, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente (Código Penal, art. 14, II). Se for configurada a tentativa de feminicídio, a pena pode ser reduzida de 1/3 a 2/3. Quando a tentativa deixa sequelas graves, o autor também pode responder por lesões corporais (Código Penal, art. 129).

 

O agressor pode ser absolvido do crime de feminicídio quando a mulher é infiel ou quando se sente desonrado pela conduta dela?

 

A tese da legítima defesa da honra foi utilizada como argumento jurídico para justificar o feminicídio e absolver os agressores durante décadas no Brasil. Esse expediente discursivo é exemplificativo da ampla conivência social e das instituições de justiça com as desigualdades de gênero. Sem qualquer base legal concreta, o argumento mobilizava, em favor dos assassinos, o forte sentimento conservador de proteção do casamento e da família manifestado na passionalidade do ato cometido pelo homem que não aceitava o fim da relação conjugal.

Considerava-se os homicídios nesses contextos como um evento isolado e desesperado do homem traído ou ofendido em sua honra. Nas demais relações, o agressor era o verdadeiro cidadão de bem: ótimo pai, trabalhador, honesto com seus deveres, ativo em sua comunidade. A tese também culpabilizava as vítimas, pois deduzia que estas “provocavam” o crime quando exigiam o fim do casamento ou quando eram infiéis. Esse argumento absolveu muitos agressores de serem punidos por seus crimes. O caso exemplar mais emblemático e que gerou um movimento de questionamento e contestação pelo movimento feminista e de mulheres no final da década de 1970, foi o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street.

Apesar da tipificação do feminicídio ter dificultado indiretamente a utilização desse tipo de tese, sua utilização só foi oficialmente proibida recentemente em decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF n. 779. Essa decisão deu interpretação conforme a Constituição a dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, para excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.

ADPF é a sigla para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, um tipo de procedimento que compõem o rol de ações do controle concentrado de constitucionalidade, por isso sua tramitação se dá diretamente no STF. A finalidade da ADPF é evitar e eliminar do ordenamento jurídico qualquer ato do Poder Público que atente contra preceitos fundamentais (Art. 1º da Lei 9.882/99).

A ADPF n.779 foi proposta pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista) alegando que não há uniformidade nas decisões de Tribunais de Justiça, que em alguns casos validam e em outros anulam vereditos do Tribunal do Júri em que se absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese da legítima defesa da honra. Argumentou também as divergências sobre a utilização da tese nas decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF). A decisão liminar foi publicada no Diário Oficial da União em fevereiro de 2021. A ação ainda não tem decisão definitiva, mas com a liminar, nenhum Tribunal do Júri ou Tribunal de Justiça pode aceitar absolvição de feminicidas com base no argumento da legítima defesa.

Referências

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Contribuíram na redação desse conteúdo:

Flávia Carvalhaes, psicóloga, professora do curso de Psicologia da UEL.

Martha Ramírez Gálvez, antropóloga, docente do Departamento de Ciências Sociais da UEL.

Marisse Costa de Queiroz, advogada, professora do Curso de Direito da PUCPR (Campus Londrina).